Ponto de vista é questão central em “Retrato de Uma Jovem Em Chamas”

A diretora francesa Céline Sciamma sabe abordar temas por vezes ásperos com notável delicadeza. Fez isso em seu longa de estreia, Lírios d’Água, falando da descoberta do amor e da sexualidade no conturbado período da adolescência; no aclamado Tomboy (2012), que mostra a transgeneridade no contexto da infância; e repete o feito em Retrato de Uma Jovem Em Chamas (2019), seu filme mais recente.

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Ambientado na França do século 18, o longa conta a história de Marianne (Noémie Merlant), uma pintora contratada para fazer o retrato da jovem Héloïse (Adèle Haenel). Assim como a mão da moça, a tela será entregue em um casamento arranjado, a contragosto da própria noiva. Por isso, o quadro deve ser feito em segredo, o que obriga Marianne a se passar por companheira de caminhadas de Héloïse para observá-la cada vez mais atentamente com o objetivo de concluir a obra.

É assim, a pinceladas no estilo rococó e intensas trocas de olhares, que o filme constrói a aproximação das duas e revela a metáfora do fogo no título. Cada encontro é uma faísca para essa paixão arrebatadora e impossível, que arde durante os dias contados de liberdade que ainda restam a Héloïse e tiram o sono de Marianne, já que o fim da pintura significa, também, o fim da relação entre elas. Talvez, por isso, quem assiste tende a ficar duas horas com os olhos vidrados na tela, oscilando entre tensão e excitação.

Roteirizada e dirigida por Sciamma, a produção era uma das fortes candidatas à Palma de Ouro no Festival de Cannes desse ano. Se ganhasse, seria o segundo filme sobre homoafetividade entre mulheres a vencer o prêmio. O primeiro — e único até agora — foi Azul É a Cor Mais Quente (2013), polêmico longa do diretor Abdellatif Kechiche. Com uma cena de sexo explícito com duração de 13 minutos e várias controvérsias, sobretudo em relação ao trato com as atrizes, o filme tem, hoje, seu objetivo questionado.

Retrato de Uma Jovem Em Chamas, que acabou levando o prêmio de Melhor Roteiro e a Queer Palm em Cannes, nem de longe terá esse problema. Pode-se discutir se o filme é sobre amor ou liberdade, coragem ou desistência, mas é provável consenso que, assim como na pintura, o ponto de vista, aqui, faz toda diferença. Não por acaso o frame, em cinema, também é chamado de quadro. Sciamma “pinta” a partir de um ponto de vista feminino, feminista e lésbico. Cabe a repetição: faz toda diferença.

“Retrato de Uma Jovem Em Chamas” abriu a 27ª edição do Festival Mix Brasil em novembro.

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Este filme passa no teste de Bechdel-Wallace. Clique para saber mais.“Retrato de uma Jovem em Chamas”
[Portrait de la jeune fille en feu, França, 2019]
Direção: Céline Sciamma
Elenco: Noémie Merlant, Adèle Haenel, Luàna Bajrami.
Duração: 121 minutos


Isabela Lisboa é atriz, jornalista e produtora de conteúdo. É criadora da Lesbicult, uma página sobre mulheres lésbicas e bissexuais na cultura.

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