Amalia Ulman fala sobre “El Planeta”: “Manter as aparências é instinto humano”

“Uma comédia sobre despejo”. É assim que Amalia Ulman costuma descrever seu primeiro longa-metragem, El Planeta, coprodução espanhola-americana que chegou neste mês ao catálogo da MUBI. Sucesso de crítica desde que estreou no Festival de Sundance do ano passado, o filme quer provocar risos, e não lágrimas, com a história de mãe e filha que foram da classe média à ruína financeira e estão prestes a ficar sem teto.

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Diretora, roteirista, produtora e protagonista do longa, Amalia nasceu na Argentina, cresceu na Espanha e vive nos Estados Unidos. Antes de estrear no cinema ela já tinha uma bem-sucedida carreira nas artes visuais, trabalhando principalmente com performance, instalação e vídeo. Sua obra mais famosa é Excellences & Perfections, de 2014, que levou a revista americana Elle a chamá-la de “primeira grande artista do Instagram”. Durante cerca de seis meses, Amalia publicou em seu perfil fotos nas quais encarnava três populares personas femininas: cute girl, a garota de beleza padrão; sugar babe, a jovem sexy que sai com homens mais velhos em troca de dinheiro; e life goddess, a mulher centrada em saúde e bem estar. Milhares de seguidores passaram a acompanhar as transformações físicas e de estilo de vida de Amalia, até ela revelar que tudo se tratava de ficção. As fotos, na verdade, constituíam uma performance em três partes que refletia sobre imagem feminina, questões de classe e as identidades ficcionais que criamos para nós mesmos, especialmente na internet.

Todos estes temas estão presentes em El Planeta, um filme livremente inspirado na história real de Justina e Ana Belén, mãe e filha que acumularam uma dívida de quase seis mil euros em lojas e restaurantes de Gijón, a cidade espanhola onde Amalia cresceu. Durante algum tempo, e sobretudo no verão de 2013, a dupla enganou donos de estabelecimentos que confiavam nelas e deixavam que saíssem sem pagar pelo simples fato de aparentarem ser ricas. O caso permitiu que Amalia voltasse a explorar a ideia de “eu ficcional” – e desta vez, no cinema. Foram apenas 17 dias de filmagens, nos quais contou com uma equipe de cinco pessoas e um orçamento apertado. Para economizar com correção de cor, optou pela fotografia em preto e branco; e sem dinheiro para contratar bons atores, escalou a si mesma e a sua mãe, Ale Ulman, para os papéis principais. Ale não tinha nenhuma experiência prévia como atriz, mas era fã de cinema e se comprometeria profundamente com o projeto. “Foi minha mãe quem trouxe a história [das Beléns] para mim”, contou Amalia, em entrevista via Zoom ao Mulher no Cinema. “Ela adora esse tipo de narrativa e filmes com duplas excêntricas e anti-heroínas. Então, achei que era importante trabalhar neste longa com ela.”

Cena do filme “El Planeta”, dirigido por Amalia Ulman – Foto: Divulgação

Em El Planeta, Amalia e Ana interpretam Leo e Maria, mãe e filha que estão prestes a ser despejadas de seu apartamento em Gijón. As cartas na manga são poucas: Leo estudava moda em Londres e é claramente talentosa, mas as ofertas de trabalho que recebe pagam em “exposição” e não dinheiro. Por sua vez, Maria foi dona de casa a vida toda e agora, após a morte do marido, não tem a qualificação exigida pelo mercado, nem pode acessar a ajuda do governo, restrita a quem teve empregos formais.

Poderia ser o início de um melodrama, mas, em se tratando de “uma comédia sobre despejo”, o tom é bem-humorado. Enquanto esperam por seu destino, Leo e Maria aplicam pequenos golpes na tentativa de manter as aparências e usufruir de um padrão de vida bem acima do seu. Saem às ruas vestindo casaco de pele, mas se enrolam em cobertores na casa sem aquecedor; comem em restaurantes caros, mas não têm nada na própria geladeira; postam fotos com roupas e sapatos novos, mas devolvem tudo à loja dias depois.

O contraste entre riqueza e pobreza dá graça ao filme ao mesmo tempo em que abre espaço para o comentário político e social. As ruas estão cheias de lojas fechadas e vazias de pessoas jovens, retrato de uma Espanha impactada pela crise econômica e que oferece poucas perspectivas à população. Amalia diz conhecer bem a situação de suas protagonistas, pois ela e a mãe também foram despejadas de seu apartamento em Gijón anos atrás. “Queria ser realista em relação ao que você sente durante o processo de perder algo”, afirmou. “Você fica numa espécie de limbo: sabe o que vai acontecer, mas sente que não tem poder para mudar nada. Manter as aparências é um instinto humano: você fica esperando sua sorte virar.”

Leia os principais trechos da entrevista com Amalia Ulman:

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Antes de ser cineasta você já tinha uma carreira bem-sucedida como artista visual, e seu trabalho tinha algo de cinematográfico por lidar com vídeo, ficção, narrativa etc. Por que o cinema agora? Por que desta vez você quis fazer um filme de fato?

Sempre amei cinema, mas nunca achei que poderia fazer um filme. Cheguei a um ponto no qual estava trabalhando com tantos elementos cinematográficos que me pareceu a hora de tentar. Era meio contraprodutivo ter um trabalho tão “espalhado”. Sou uma pessoa só, então tudo levava muito tempo, e tenho uma deficiência na perna, o que faz com que seja mais difícil viajar para fazer instalações e coisas assim. No caso do filme, participei de um pouco de tudo: fotografia, figurino, cenários, locações. Foi muito bom poder juntar todos estes interesses em uma só obra. Acho que foi uma progressão natural. O modo como eu usava ficção nas artes visuais nem sempre era bem visto, então era hora de fazer cinema [risos].

Cena do filme “El Planeta”, dirigido por Amalia Ulman – Foto: Divulgação

O filme também toca em temas que já estavam presentes na sua obra, como questões de classe, o papel das aparências na sociedade e o modo como construímos uma imagem de nós mesmos para os outros. Por que estes temas te interessam?

Acho que é um interesse muito argentino [risos]. Acho que tem algo a ver com as raízes coloniais e o fato de todo mundo ser imigrante e ter a chance de criar uma nova história para si mesmo. Na Argentina há uma automitologia muito grande em relação a quem você é e de onde é sua família – mais do que em outros lugares, certamente mais do que na Espanha. Há um jogo muito grande com ficção e representação, com interpretar um papel. Então acredito que o interesse venha das minhas raízes argentinas, e tenha sido acentuado pelo fato de eu ter crescido como imigrante na Espanha. Acabei me atraindo especialmente por essa ideia de autoimagem, de como as pessoas se apresentam, de se encaixar [na sociedade].

As protagonistas de El Planeta estão quebradas, mas não estão procurando emprego, tentando economizar loucamente ou se redimir de alguma forma, e, sim, aplicando pequenos golpes e tentando manter as aparências. Você poderia ter feito um filme com o mesmo enredo básico, sobre o despejo de uma família, mas mostrado personagens desesperadas pelas quais sentimos muita pena. Por que optou por esta abordagem diferente?

Porque acho uma abordagem mais realista. Já estive na mesma situação e [posso dizer que] não há empregos na Espanha. Especialmente no caso da Leo, não é que ela não esteja procurando emprego, é que não existe emprego. Por isso dou atenção especial às [cenas que mostram] lojas fechadas, porque na Espanha você leva meses e meses para achar um emprego que paga mal. E até lá, o que você faz? Claro, as personagens têm ilusões de grandeza, são antiheroínas, cometem erros e são obviamente excêntricas, especialmente a mãe. Elas têm ideias estranhas sobre como sobreviver e fazer as coisas funcionarem. Mas queria ser realista em relação ao que você sente durante o processo de perder algo. Não acontece tudo de uma vez. Por um período longo, você fica numa espécie de limbo: sabe o que vai acontecer, mas sente que não tem poder para mudar nada. Manter as aparências para as outras pessoas é um instinto humano. Você fica esperando sua sorte virar, do tipo: “Tomara que eu consiga um emprego logo para que não tenha de pedir dinheiro na rua”. É uma transição muito estranha.

Cena do filme “El Planeta”, dirigido por Amalia Ulman – Foto: Divulgação

Ao mesmo tempo em que a abordagem é bem-humorada, há alguns momentos comoventes, como a cena em que Maria fala com alguém ao telefone sobre a possibilidade de ter de morar em um abrigo. Gostaria que você falasse um pouco sobre essa cena. Como foi o trabalho com sua mãe, que estava fazendo seu primeiro trabalho como atriz?

O principal, nesta cena, foi sermos honestas em relação à situação de lugares como Astúrias e ao que nós duas vivemos pessoalmente, em nossas vidas. É uma cena muito significativa, pois [vemos que] não se trata de uma mulher rica. É uma mulher que foi dona de casa a vida toda e que agora vai ter de ir para um abrigo. Isso é muito traumático e queria mostrar essa tensão. O escapismo é uma forma de lidar com o medo. As duas [mãe e filha] fingem uma para outra, mas sabem o que está acontecendo. É um pouco como os músicos que continuam tocando enquanto o Titanic afunda [risos]

Houve improviso durante as filmagens ou vocês foram bem fiéis ao roteiro?

De forma geral, tudo [o que se vê no filme] estava no roteiro, mas eu sempre deixava um espaço de 10% a 20% para o improviso. Sou uma pessoa muito visual: me importo mais com a fotografia e a emoção da cena do que com as palavras. Não sou muito apegada ao texto, então deixei o elenco improvisar um pouco. Mas não é um documentário ou nada do tipo. Tudo estava bem planejado.

Em entrevistas anteriores você mencionou que sua maior inspiração para El Planeta foi a Hollywood pré-código Hays, o que me pareceu interessante porque esta foi uma espécie de “era de ouro” para as atrizes no cinema americano. No início dos anos 1930, antes de a censura entrar com força, as personagens femininas podiam se divertir mais, ser menos perfeitas, fazer coisas tidas como “erradas”, justamente como as protagonistas do seu filme. A Hollywood pré-código foi uma inspiração nesse sentido de construção de personagens? Para você, era importante que as personagens femininas pudessem ser complicadas?

Sim. Acho que os filmes recentes que falam sobre questões de classe são muito melodramáticos, têm sempre o mesmo tom e buscam uma certa redenção para a plateia. É como se ao nos sentirmos mal estivéssemos fazendo alguma coisa, sendo que não estamos. Realmente há muitas personagens femininas incríveis no cinema pré-código, mas também há muita discussão sobre questões de classe. Muitos personagens estão passando por momentos difíceis e aplicando golpes, mas eles ainda são carismáticos, ainda são glamurosos, ainda são engraçados – e isso é muito importante. Eles podem estar comendo apenas pão há dois dias, mas ainda são engraçados. Acho que esta foi a grande inspiração para as personagens. Você pode ser pobre e ter inclinações artísticas. Não é porque você é pobre que necessariamente tem o sonho de trabalhar em uma fábrica [risos].

Cena do filme “El Planeta”, dirigido por Amalia Ulman – Foto: Divulgação

Falando em inclinações artísticas, a sua personagem, Leo, é interessada em moda e cria peças muito marcantes durante o filme. Fale um pouco sobre o trabalho de figurino.

Desenvolvi os figurinos com a Fiona Duncan, que é escritora e também fashionista. Ela entende muito de moda e conseguiu várias peças com jovens estilistas de Nova York. Era importante mostrar que Leo poderia fazer um trabalho legal se tivesse oportunidades e fosse devidamente valorizada. Conheço muitos jovens promissores que foram colocados em situações horríveis, uma atrás da outra, até terem um colapso e desaparecerem. Existe o mito do “trabalho duro”, mas não basta trabalhar duro. Às vezes você também precisa de ajuda, precisa não estar carregando trauma geracional. Não se trata apenas de você, mas também de suas circunstâncias, sua família, sua saúde. E dinheiro ajuda, embora não falemos muito sobre isso no mundo artístico.

Que conselho você daria para as mulheres que querem trabalhar no cinema?

Eu diria que, se você quer ser levada a sério, não apareça em frente à câmera. Infelizmente, sinto que muito do meu trabalho como diretora, roteirista e produtora é diminuído pelo fato de também aparecer no filme. Não quero dizer que as mulheres não devam [atuar e dirigir], mas isso sempre tornou as coisas mais difíceis para mim. O que é triste, porque quando homens atuam ninguém fala deles como atores – eles continuam sendo diretores. Também não estou querendo dizer que atuar é algo menor. É um trabalho muito difícil e um talento valioso, mas acho triste como às vezes parece que todo o meu outro trabalho desaparece quando apareço em frente à câmera. De repente, é a única coisa à qual as pessoas prestam atenção.

Mas você está dizendo que o trabalho de atriz é tão valorizado que ofusca as demais funções que a mulher pode ocupar no cinema, ou que o trabalho de atriz é tão desvalorizado que, ao assumi-lo, a mulher deixa de ser respeitada em suas outras funções?

Não, acho que tem mais a ver com a imagem feminina. As pessoas estão tão presas às imagens das mulheres que, uma vez que uma mulher vira imagem, perde muito controle, mesmo se ela tiver tido poder na criação dessa imagem. E a partir daí, todos os outros aspectos do trabalho dessa mulher são diminuídos. Não sei, talvez eu deva voltar atrás no que disse: talvez precisemos ter mais mulheres em frente às câmeras para lutar contra essa situação [risos] É algo que segue sendo um problema. Me sinto muito grata às pessoas que me respeitaram e me valorizaram no ambiente de trabalho, que me ouviram apesar da minha aparência. Sou pequena, feminina, mas essas pessoas levaram minha direção a sério, o que nem sempre acontece. Como mulher, você tem de se provar muito mais, porque o respeito não vem facilmente. As pessoas que não te conhecem supõem que você é a namorada de alguém, não falam com você durante a reunião de negócios até finalmente perceberem: “Ah, você é a diretora?”. Às vezes, até as próprias mulheres julgam outras mulheres e cobram mais delas do que dos homens. Então, acho que gostaria de ver as mulheres do cinema se apoiarem mais.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema. Os leitores do site têm direito a 30 dias de acesso grátis à MUBI – clique aqui para saber mais e se cadastrar.

Foto do topo: Alexi J. Rosenfeld/WireImage

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