Emma Seligman fala sobre inspirações e desafios da comédia “Shiva Baby”

“Escreva sobre o que você conhece” é uma recomendação comum a cineastas em início de carreira, e que a roteirista e diretora canadense Emma Seligman resolveu seguir. Em Shiva Baby, seu primeiro longa-metragem, ela buscou inspiração em suas próprias experiências para contar a história de uma protagonista jovem, judia e bissexual que tenta entender seu lugar no mundo. E a recomendação se provou certeira: lançado no ano passado, já em tempos de pandemia, Shiva Baby foi uma das sensações dos festivais de Toronto e South by Southwest e chega nesta sexta-feira (11), ao catálogo do MUBI.

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Shiva Baby amplia a narrativa do curta homônimo que Seligman escreveu e dirigiu em 2018, quando era aluna da Tisch, a escola de artes da Universidade de Nova York. Foi durante os estudos universitários que ela entrou em contato com o SeekingArrangement, um controverso serviço de relacionamentos que conecta jovens mulheres, muitas delas estudantes, aos chamados sugar daddies, homens ricos e mais velhos que oferecem presentes e dinheiro em troca de companhia e/ou relações sexuais. Conhecida como sugaring, a prática também foi incluída na trama de Shiva Baby, que se desenvolve a partir do inesperado encontro de Danielle com seu sugar daddy durante a shivá, como é conhecido o período de luto dos judeus.

E se a ideia de misturar ritual religioso com trabalho sexual pode parecer incômoda, a intenção da diretora era justamente essa. “Queria contar a história de uma jovem mulher que tem de confrontar ou encarar as diferentes versões de si mesma que foi pressionada a ser”, contou Emma Seligman, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Combinar partes da sua vida que não se misturam muito bem – como a vida sexual ou profissional com a vida familiar – é algo que pode criar muito contraste e desconforto. A ideia partiu daí.”

Seguindo outra recomendação comum a cineastas estreantes, Seligman ambientou Shiva Baby em apenas um dia e usou praticamente só uma locação: a casa em que amigos e familiares se reúnem após um enterro. O cenário único causa certa claustrofobia, e o design de som e a trilha sonora remetem a filmes de terror, ajudando o espectador a sentir a intensa ansiedade de Danielle (Rachel Sennott). Para ela, a reunião no shivá é desafiadora e desconfortável mesmo antes da chegada de seu sugar daddy. Longe de atender às expectativas da comunidade e de seus pais, a jovem ouve repetidos questionamentos sobre seu futuro, sua aparência e seus relacionamentos, enquanto observa a amiga e ex-namorada Maya (Molly Gordon) transitar tranquilamente pelos cômodos e contar aos convidados sobre sua bem encaminhada carreira de advogada.

Na entrevista a seguir, realizada via Zoom, Seligman fala ao Mulher no Cinema sobre as inspirações do filme, sua experiência com o sugaring, o desafio de filmar em locação única e o que aprendeu ao dirigir um longa-metragem aos 24 anos, trabalhando com atores mais velhos e experientes do que ela. “No início, tive a Síndome de Impostora e senti muito medo”, contou. “Depois, entendi que é meu trabalho dizer o que eles têm de fazer.”

Assista ou leia a entrevista com Emma Seligman sobre Shiva Baby:

Shiva Baby não é um filme autobiográfico, mas parte de algumas experiências e situações da sua própria vida. O que te inspirou a contar essa história?

O filme é baseado em um curta que dirigi na faculdade, e quis ambientá-lo em um universo que conhecesse muito bem para que fosse mais fácil escrever o roteiro. O que me inspirou foi contar a história de uma jovem mulher que tem de confrontar ou encarar as diferentes versões de si mesma que foi pressionada a ser. Combinar partes da sua vida que não se misturam muito bem – como a vida sexual ou profissional com a vida familiar – é algo que pode criar muito contraste e desconforto. A ideia veio daí.

O filme é uma comédia que às vezes parece um terror ou um thriller psicológico, tanto por causa do trabalho de câmera quanto pela trilha sonora e o design de som. Como estes diferentes elementos se combinaram e o que você buscava?

Os thrillers me atraíram porque estava nervosa quanto a conseguir manter a plateia interessada em um filme que se passa em uma única casa e em um único dia. Assisti a vários filmes que conseguiram fazer isso e a maioria tinha muita tensão. Queria deixar o público com ansiedade, e comunicar que a ansiedade da Danielle é a coisa mais importante do filme. Ela não tem muitos momentos consigo mesma, ou com pessoas com as quais pode falar honestamente sobre seus sentimentos, então queria que o filme fosse tão tenso quanto seu cérebro. Mostrei várias referências à diretora de fotografia [Maria Rusche], incluindo Krisha, o primeiro longa de Trey Edward Shults, mas também filmes de John Cassavettes e thrillers como Cisne Negro. Fiz o mesmo em todas as etapas do filme, e sem dúvida também com a trilha sonora.

Falando um pouco sobre a locação, que casa era aquela? Você conhecia os donos? Assistindo ao filme, parece que vocês tiveram bastante tempo para se preparar. Ou não?

Curiosamente, esta foi uma das únicas coisas para as quais de fato tivemos tempo! Não conhecíamos os donos, encontramos a casa no Airbnb, mas foi como se alguém tivesse nos abençoado. Ela estava no Brooklyn, em Nova York, tinha o número certo de cômodos para que cada ator tivesse seu lugar, era exatamente como eu imaginava e ainda tinha donos maravilhosos, que nos deram bastante tempo para estudar o espaço. Fiz um cenário com Lego baseado na planta do primeiro andar, e a partir dele a diretora de fotografia e eu planejamos as cenas. Também pudemos ir até a casa algumas vezes e tivemos uma semana lá dentro com os produtores. Eles puderam nos dizer o que conseguiríamos ou não fazer – se poderíamos ter um plano geral do cômodo com vários figurantes, se precisaríamos trocar para close-ups ou combinar tomadas, já que não podíamos ter todos os atores, todos os dias, para planos gerais com todo mundo. Por sorte, tivemos tempo para preparar tudo isso.

Rachel Sennott e Danny Deferrari como Danielle e Max em “Sugar Baby”

Um aspecto importante do filme é que Danielle faz sexo por dinheiro, mas não precisaria fazer. A história poderia ser bem diferente se você tivesse inserido o trabalho sexual como necessidade, se a Danielle fosse uma estudante pobre, que está sofrendo muito. Da forma como você fez, abre-se uma discussão interessante sobre sexualidade, e sobre como a sexualidade está ou não ligada à autoestima. Gostaria que você falasse um pouco este elemento do filme.

Acho que a grande questão da Danielle – que também era a minha grande questão, e acabei colocando nela – é a questão da autoestima. É descobrir um modo de a autoestima existir além da validação sexual, ou do empoderamento sexual, seja lá o que isso signifique. De forma geral, quando uma jovem mulher descobre esse poder, é um momento de êxtase, porque você não tem nenhum outro poder no mundo, ou pelo menos ainda não descobriu nenhum outro poder. Mas aí você percebe que esse poder tem limites e não pode resolver tudo.

Senti que eu e muitas das minhas amigas estávamos passando por esse momento durante a universidade. E percebi que o SeekingArrangement e a prática do sugaring contribuíam para isso. A cultura do sexo casual já é parte da universidade, o sexo já parece uma transação. O SeekingArrangement e o sugaring provocavam o fascínio de uma situação estruturada na qual era quase garantido que você ia conseguir validação, que estava lá para você se sentir admirada. Para ganhar dinheiro também, é claro. Mas havia um apelo nessa consistência. Se no final você se sentia bem ou não, se suas necessidades eram preenchidas, se te trazia empoderamento ou validação – isso já é outra história. Mas foi algo que me atraiu e atraiu minhas amigas.

Essa era a única perspectiva de trabalho sexual com a qual eu podia me relacionar de forma pessoal. Não venho da situação de precisar desesperadamente do dinheiro, e não me sentiria autêntica escrevendo dessa forma. Ao mesmo tempo, havia algo de interessante em contar a história de uma profissional do sexo que não fosse tão desesperadora, triste e deprimente, mas que também não embelezasse demais as coisas.

Molly Gordon e Rachel Sennott como Maya e Danielle em “Sugar Baby”

Ainda vemos poucos protagonistas bissexuais como Danielle. Você é bissexual, e queria saber: algum personagem do cinema ou da TV foi importante para você, pessoal ou profissionalmente?

Acho que a série Transparent, de Joey Soloway, influenciou Shiva Baby de forma geral, em termos de tom, histórias e temas, mas também porque havia muita fluidez sexual na série. Logo de cara, uma das irmãs é abertamente bissexual, todo mundo sabe e ninguém nem diz essa palavra. Isso me impactou. Ao longo dos anos houve alguns momentos e personagens queer em dramas investigativos ou programas adolescentes como The O.C. e Grey’s Anatomy, e também Schit’s Creek e AtypicalAcho que a televisão fez um trabalho bem melhor no que diz respeito a retratar fluidez sexual, talvez em parte porque há mais tempo para desenvolver as histórias com os diferentes parceiros. Foi lá que encontrei maior estímulo para retratar personagens bissexuais.

Você é uma diretora muito jovem, que estava trabalhando com atores mais velhos e mais experientes do que você, e que em alguns casos eram cineastas também. Sei que no cinema há uma hierarquia muito clara: você é a diretora, logo, é quem dá as direções. Mas imagino que em alguns momentos você tenha tido de impor suas opiniões ou dizer “não” a ideias que não considerava boas. Foi algo que você teve de aprender a fazer ou foi algo natural?

Foi muito difícil [risos] Sendo jovem, mulher e canadense, meu instinto natural não é o de me impor. Foi um aprendizado que veio em ondas. No início, tive a Síndrome da Impostora e senti muito medo. Na noite anterior à filmagem começar, liguei para uma amiga, também jovem e cineasta, e falei: “Não posso fazer isso”, “esses atores não vão me ouvir”, “nada disso faz sentido”. O que ela me disse foi o que aprendi durante o processo: que é meu trabalho dizer o que eles têm de fazer, e que eles esperam que eu faça isso. É simplesmente a minha função. Mas foi algo que tive de ir trabalhando. O terror inicial passou rápido, mas tive dificuldade em entender o quanto deveria colaborar e o quanto deveria impor minha visão. Sou bastante teimosa, e no fim das filmagens estava meio frustrada e dizendo “não” para tudo, principalmente para Polly [Draper, que interpreta a mãe de Danielle]. Gosto muito dela, mas ela também é cineasta e tem muitas opiniões. Ela sempre chegava ao set com novas ideias e sugestões, e no fim das filmagens eu apenas queria encerrar tudo. No entanto, as contribuições que deixei ela fazer, e que realmente mudaram a direção das coisas, deram muito certo. Então é difícil: você quer deixar espaço para que as cenas possam mudar, crescer e evoluir, mas como saber em que momento estão te diminuindo e em que momento você deve realmente ouvir? Acho que essa foi a coisa mais difícil de entender enquanto dirigia, e imagino que vá continuar sendo difícil.

Rachel Sennott como Danielle em “Shiva Baby”, de Emma Seligman

Você fez um filme sobre universos que conhece bem, o que é uma recomendação comum a diretores estreantes. O que gostaria de fazer daqui para frente, em termos de temas ou gêneros cinematográficos? Ou seu interesse é continuar explorando histórias como a de Shiva Baby?

Gostaria de experimentar tudo. Quero fazer filmes de terror, faroeste e ação, mas também quero continuar a contar minhas pequenas histórias centradas em personagens. Inicialmente só conseguia me imaginar fazendo filmes sobre personagens judeus, queer e mulheres. Depois, percebi que isso é meio que ensinado às cineastas mulheres, ou que inconscientemente passamos a acreditar que só podemos contar histórias com as quais tenhamos algum tipo de identificação pessoal. No último ano, me diverti pensando em livros, reportagens ou outras coisas que não são judaicas nem queer, que não têm nenhuma conexão direta comigo, mas às quais posso olhar com a minha perspectiva. Estou muito aberta, espero fazer o máximo que puder.

Já tem algum novo projeto em desenvolvimento?

Rachel [Sennett, atriz que interpreta Danielle] e eu estamos trabalhando em um roteiro e conversando com alguns produtores. É uma comédia adolescente, mas bem mais exagerada, sobre duas meninas nerds e queer que fundam um clube de luta na escola para tentar conquistar as líderes de torcida que saem com os jogadores do time de futebol. Tem sido divertido escrever, vamos ver o que acontece.

Que conselho você daria às mulheres que querem trabalhar no cinema?

Não tenham vergonha de pedir dinheiro [risos] Se você não tiver recursos, não vai conseguir realizar seu projeto. No caso de Shiva Baby, chegou um momento em que começamos a perguntar para pessoas aleatórias se elas queriam investir no filme. E foi assim que conseguimos o financiamento: com várias pessoas fazendo pequenos investimentos. Não sei como é a situação no Brasil em termos de apoio do governo e de bolsas, mas nos Estados Unidos você tem de buscar o dinheiro você mesma. Então acho importante não ter vergonha de pedir, e ter parceiras que também estão bastante envolvidas no projeto, e que vão ficar no seu pé para você não desistir e te manter otimista. Não tenha medo de ouvir que está sendo ousada demais ou que está pedindo demais. Os homens fazem isso o tempo todo, então acho importante pedir o quanto você quiser. Ou até mais.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema. Os leitores do site têm direito a 30 dias de acesso grátis ao Mubi – clique aqui para saber mais e se cadastrar.

Foto do topo: Sharon Attia

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