“Zona de Exclusão” faz retrato corajoso de crise humanitária na Europa

Dois acontecimentos movimentaram a carreira internacional de Zona de Exclusão, filme de Agnieszka Holland que estreou nesta quinta-feira (18) nos cinemas brasileiros. Primeiro, a conquista do Prêmio Especial do Júri na edição mais recente do Festival de Veneza; depois, a feroz campanha contra o longa que foi promovida por líderes de extrema direita da Polônia, país natal da diretora, conhecida por obras como Colheita Amarga (1985), Filhos da Guerra (1990), O Jardim Secreto (1993) e A Escuridão (2011).

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O prêmio e os ataques refletem a relevância política do filme, que aborda a crise humanitária na fronteira entre Polônia e Belarus. Em 2021, o governo polonês, dominado pelo partido nacionalista Lei e Justiça (PiS), acusou Aleksandr G. Lukashenko, presidente de Belarus desde 1994, de tentar desestabilizar a União Europeia facilitando a imigração ilegal. O país oferecia uma rota aérea para refugiados vindos sobretudo da África e do Oriente Médio, que a partir de Minsk tentavam chegar por terra às nações que integram o bloco europeu.

A Polônia então instalou uma longa cerca de arame farpado, reforçou a guarda na fronteira e decretou uma zona de exclusão na qual estava proibida a entrada de qualquer pessoa, incluindo jornalistas e ativistas de organizações humanitárias. Neste local, guardas forçavam os imigrantes a voltar a Belarus, que, por sua vez, usava seu próprio exército para forçá-los de volta ao território polonês. A prática, que em inglês é chamada de pushback, deixou milhares de pessoas (incluindo mulheres e crianças) presas em um vai e vem violento e ilegal. A Polônia encerrou a zona de exclusão em 2022, quando finalizou a construção de um muro de aço, mas grupos como a Human Rights Watch alegam que os pushbacks continuam acontecendo.

É neste contexto que se desenvolve a trama de Zona de Exclusão, escrita por Holland em parceria com Gabriela Lazarkiewicz e Maciej Pisuk. As primeiras imagens do filme – uma tomada área da floresta localizada entre Polônia e Belarus – são as únicas que têm cor. Os tons de verde gradualmente dão lugar à fotografia em preto e branco que, segundo declaração da diretora ao site Vulture, busca conectar Zona de Exclusão “ao passado, à Segunda Guerra Mundial e ao cinema documental”, na primeira sugestão de que, para Holland, a crise migratória europeia não ecoa apenas questões do presente.

Da floresta somos transportados para dentro de um avião prestes a pousar em Belarus. Ali, a professora afegã Leïla (Behi Djanati Atai) conhece um senhor sírio (Al Rasho Mohamad) que viaja com o filho Bashir (Jalal Altawil), a nora Amina, (Dalia Naous) e os três netos, um deles ainda bebê. Leïla foge do Taleban e planeja pedir asilo na Polônia, enquanto a família síria foge do Estado Islâmico e tem a Suécia como destino final. Juntos, eles desembarcam em Minsk e seguem de carro em direção a um futuro melhor.

Bastam dez minutos de filme para que as promessas de liberdade e segurança comecem a desmoronar. Primeiro, os refugiados são abandonados perto do território polonês e cruzam a fronteira a pé. Depois, enfrentam frio, chuva, falta de água e de comida, até finalmente serem capturados pelos guardas da Polônia e forçados a passar por debaixo do arame farpado que os leva de volta à Belarus.

Holland encena diversos pushbacks, numa repetição que ajuda a transmitir o desespero e a exaustão dos refugiados (fictícios e reais) diante de uma situação sem saída. Mas a diretora também insere novos personagens, como Jan (Tomasz Wlosok), um guarda atormentado pelos atos brutais dos quais participa, e  Julia (Maja Ostaszewska), uma terapeuta que, após testemunhar situação trágica, torna-se ativista de uma organização humanitária que oferece comida, atendimento médico e orientação legal aos refugiados.

Imagem do filme “Zona de Exclusão”, de Agnieska Holland – Foto: Agata Kubis

A primeira metade de Zona de Exclusão impressiona pela intensidade. Holland rodou o filme no primeiro semestre de 2023, quando a crise estava menos aguda, mas ainda em andamento, e seu senso de urgência é tão evidente que rapidamente envolve o espectador. Com a ajuda da fotografia de Tomasz Naumiuk e do bom trabalho do elenco principal e coadjuvante, a diretora faz com que mesmo aqueles que não acompanharam a crise no noticiário sintam-se inseridos no olho do furacão.

Mas o ritmo cai na segunda metade, quando o ativismo de Julia passa a ser o foco principal. Ao dedicar especial atenção a ela, uma personagem bastante convencional, o filme deixa os demais protagonistas (especialmente os refugiados) fora de cena por tempo demais. Quando os reencontramos, já não nos sentimos tão conectados a eles, nem tão imersos no caótico mosaico de experiências que o filme inicialmente construíra muito bem. 

Por trás dos múltiplos núcleos e personagens está uma clara preocupação da diretora em evitar generalizações. Entre os ativistas, há os que atuam dentro das regras impostas pelo governo e os que querem ajudar os refugiados a qualquer preço. Entre os guardas, há os que sentem prazer e os que sentem culpa ao cumprir as ordens que lhe foram dadas. E mesmo a passividade diante dos abusos do Estado contra os imigrantes não é retratada como exclusiva de um único campo político.

Imagem do filme “Zona de Exclusão”, de Agnieska Holland – Foto: Agata Kubis

Holland também mostra como a resposta polonesa (e europeia) à crise migratória está ligada a questões de raça, classe e origem. O epílogo de Zona de Exclusão lembra que, menos de um ano depois, o mesmo governo nacionalista abriu as portas da Polônia a milhões de refugiados ucranianos, tratados de forma radicalmente diferente. As imagens da chegada desses imigrantes contrastam com as que o filme mostrara anteriormente – da mulher negra e grávida que os guardas atiram por cima do arame farpado ao homem que diz, num vídeo gravado por ativistas: “Meu único crime é ter o pior passaporte do mundo”. 

Zona de Exclusão estreou na Polônia apenas algumas semanas antes das eleições legislativas de outubro, nas quais o Lei e Justiça foi derrotado. O partido, que ainda ocupa a presidência, atacou o longa antes mesmo da primeira exibição em Veneza, quando o ministro da justiça, Zbigniew Ziobro, comparou a obra que não assistira a filmes de propaganda da Alemanha nazista que “mostravam os poloneses como bandidos e assassinos”.

Holland – que é neta de vítimas de Holocausto e filha de uma participante da Revolta de Varsóvia – tomou medidas legais contra o ministro, passou a andar com seguranças e não baixou o tom das críticas. A coragem e a energia da cineasta de 75 anos manifestam-se com grande força em Zona de Exclusão, um filme que, como outros de sua longa carreira, é irregular e imperfeito, mas também instigante.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

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