Carol Duarte: “Para mim, cinema ainda tem muito mistério e descoberta”

Quando chegou ao set de La Chimera, filme da italiana Alice Rohrwacher que estreia nesta quinta-feira (25), a atriz Carol Duarte tinha A Vida Invisível, de Karim Aïnouz, como sua única outra experiência profissional no cinema. Os projetos têm algumas semelhanças: ambos têm a francesa Hélène Louvart na direção de fotografia, ambos são coproduções internacionais (Brasil e Alemanha em um caso; Itália, França e Suíça no outro) e ambos levaram Carol ao tapete vermelho do Festival de Cannes (A Vida Invisível venceu a mostra Um Certo Olhar em 2019 e La Chimera competiu pela Palma de Ouro no ano passado).

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No entanto, na trajetória de Carol os dois trabalhos são radicalmente diferentes. Para conhecer e interpretar Eurídice, a protagonista de A Vida Invisível, a atriz pôde contar com o roteiro do filme, com o romance que o inspirou e com o longo processo de preparação proposto por Aïnouz e pela diretora assistente Nina Kopko, que a fez mergulhar no passado, nos medos e nas relações da personagem.

Em La Chimera, Carol teve de encarar um território menos conhecido – e não apenas por se tratar de outro país. Para começar, o período de preparação foi especialmente curto, já que a escalação se deu perto do início das filmagens. Fotógrafa de todos os longas-metragens de Alice, Hélène recomendou o nome da atriz à diretora, que não buscava uma brasileira especificamente, mas também não descartou a ideia. Carol já falava um pouco de italiano e fez um teste pelo Zoom. Dez dias depois, estava na Itália, cumprindo a quarentena que, na época, era imposta aos brasileiros que chegavam ao país.

Quando finalmente se encontrou pessoalmente com Alice Rohrwacher, Carol percebeu que ela tinha seu próprio estilo de direção. Como os demais longas-metragens da diretora – Corpo Celeste (2011), As Maravilhas (2014) e Lazzaro Felice (2018) -, La Chimera é um filme que se revela aos poucos, e que deixa a narrativa repleta de espaços em branco a serem preenchidos (ou não) pelo próprio espectador. A história é ambientada nos anos 1980 e gira em torno de Arthur (Josh O’Connor), um arqueólogo inglês que se envolve com um grupo de ladrões italianos das regiões de Toscana e Úmbria. Seu trabalho é ajudar os ladrões a encontrar túmulos antigos dos quais possam roubar relíquias etruscas, que depois serão vendidas ao mercado de arte.

Carol interpreta Itália, uma brasileira que trabalha na casa de Flora (Isabella Rossellini), mãe da grande paixão de Arthur, Beniamina (Yile Yara Vianello). Conforme a jovem se aproxima de Arthur, alguns de seus segredos são revelados, mas nunca completamente explicados ao espectador. Da mesma forma, também a atriz brasileira se viu imersa em um processo de criação no qual nem todas as perguntas eram necessariamente respondidas.

“Eu também não sei de onde ela vem”, afirmou a atriz, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Posso te dizer o que criei sozinha, mas também não quis fechar muito, porque na medida em que fechava a Itália, e definia quem ela era, era ‘não, não defina’. Quando tinha certeza de como fazer a cena…não. Foi um processo na corda bamba, tentando entender o mundo da Alice e fazer com que a Itália estivesse o tempo inteiro entre comédia e drama.”

Carol Duarte em cena de “La Chimera”, filme dirigido por Alice Rohrwacher – Foto: Divulgação

Neste processo mais livre de construção de personagem, a referência que Carol estabeleceu para si mesma foi Giulietta Masina em Noites de Cabíria (1957). Itália é o contraponto de Arthur: uma jovem solar e cheia de energia que traz entusiasmo e novas possibilidades ao mundo do taciturno e melancólico protagonista.

Na entrevista abaixo, Carol conta mais sobre a experiência de atuar em La Chimera e reflete sobre como sua relação com o cinema mudou desde a estreia em A Vida Invisível. Aos 32 anos, a atriz já concluiu um terceiro longa-metragem (Malu, de Pedro Freire, exibido em Sundance) e se prepara para rodar o quarto (O Tempo da Delicadeza, de Eduardo Nunes). “Para mim, ainda há muito mistério e descoberta”, afirmou. “Cada projeto parece sair do zero, o que é maravilhoso e desesperador.”

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Os filmes da Alice Rohrwacher são daqueles que não explicam muito as coisas, preferindo deixar alguns espaços em branco ao espectador. No caso da sua personagem, por exemplo, ninguém explica porque ela saiu do Brasil, há quanto tempo, como ela foi parar naquela casa etc. Gostaria de saber se esses espaços em branco também estão presentes no momento de realização da obra. Ou seja, você interpretou a personagem sabendo mais ou menos o mesmo que a gente sabe quando assiste ao filme, ou o roteiro da Alice dá muito mais informações aos atores? Durante o processo de direção ela conversa com você para traçar a história pregressa da personagem, ou mantém as perguntas sem resposta?

Sua impressão é muito real: os filmes da Alice são mais poesia e beleza do que respostas. O que é lindo, porque fazer poesia no cinema é [fazer] cinema com c maiúsculo. Como é um filme de um certo realismo fantástico, as personagens precisam estar nesse mundo. E se eu respondo tudo sobre elas, elas não estão nesse mundo. Foi um processo bem novo para mim, que tinha feito apenas um outro filme. Em A Vida Invisível as personagens tinham gênese, tinham passado. Durante três semanas trabalhamos as relações entre elas, o lugar onde nasceram…foi um trabalho de construção de personagem um pouco mais tradicional e realista. Fui com essa experiência fazer o La Chimera e tomei uma invertida. Falei: “Não é sobre isso. Isso que tenho para oferecer não vai criar a Itália”. Era uma furada ir por esse caminho.

Eu e a Alice não tivemos muito tempo de preparação. Alguma coisa que fiz no teste tinha a ver com a Itália, e por isso ela me aprovou, mas a gente foi descobrir quem era ela mesmo juntas, no meio do caminho, ao longo das filmagens. A Itália é uma dessas personagens funâmbulas, que andam na corda bamba, porque ela não é nem cômica, nem dramática, mas ela também é cômica e dramática. E tem mistério. Posso te dizer que eu também não sei de onde ela vem [risos]. Posso te dizer o que criei sozinha, mas eu também não quis fechar tanto, porque na medida em que eu fechava a Itália, e definia quem ela era, era não, não defina. Quando tinha certeza de como fazer aquela cena…não. Então foi um processo na corda bamba mesmo, tentando entender o mundo da Alice, tentando fazer com que Itália estivesse nessa temperatura bem ambivalente o tempo inteiro. E não é muito simples estar sempre na corda bamba, porque tem hora que você quer pegar alguma coisa e definir. Mas aí vem um pouco de como eu me relaciono com os projetos, que é confiar no diretor. Não gosto de revisão de cena, não gosto de ver nada [que foi filmado]. Então eu confio. A construção junto com a Alice foi: “Eu confio, eu faço o que você está me pedindo”. E por mais que as pessoas achem que os filmes dela têm improviso, [na verdade] há muita coisa marcada, e é muito interessante como ela consegue fazer isso.

Carol Duarte e Josh O’Connor em cena de “La Chimera” – Foto: Divulgação

Como em outros filmes da Alice, muitos dos momentos mais significativos do La Chimera são aqueles em que não há muitos diálogos. Isso vale para as suas cenas também, e uma das que acho mais marcantes é aquela na praia, na qual a Itália se encosta ligeiramente no corpo do Arthur. Outros cineastas teriam colocado muitas falas naquela cena, mas a Alice opta apenas por mostrar aquela imagem de vocês dois. Como foi para você trabalhar esses momentos de dizer sem dizer que são tão importantes nos filmes dela?

São construções que não partem tanto da fala, mas da imagem produzida. Eu, como atriz, posso querer dar intenções [à personagem]. “Quero encostar, mas não encosto porque estou com medo”. Mas é mais simples [do que isso]. E acho que tem a ver com o modo como ela dirige. É na sutileza da direção de “você vai vir até aqui e encostar” que a coisa se revela. Eu não preciso, como atriz, narrar mais do que isso, porque sei que a imagem que ela está captando é tudo isso. Então é confiar mesmo na batuta dela. E a edição também faz o cinema acontecer. Um pouco antes dessa cena, havia outra, de muito diálogo, entre a Itália e o Arthur. E aí acho que ela [Alice] viu que não era mais necessário. Então [no corte final] só tem a gente caminhando, se olhando, não tem mais diálogo. Eu refleti muito sobre isso com o La Chimera, sobre como o roteiro é só um rascunho do que pode ser uma imagem. Quando li o roteiro da Alice, consegui imaginar que a paisagem que ela estava propondo na cena já era bastante coisa na cabeça dela. Percebi que não precisava ficar reforçando a Itália, que a imagem da Itália arrumando a cozinha já era o mundo da Itália.

O elenco deste filme inclui a Isabella Rossellini, que é um ícone do cinema e uma atriz italiana super experiente; o Josh O’Connor, um ator inglês mais jovem, que tem se destacado bastante; você, que é brasileira e estava no seu segundo longa na época das filmagens; e também muitos atores italianos profissionais e não profissionais. É típico da Alice, por exemplo, convidar os vizinhos dela para atuar. Como foi trabalhar com um grupo tão diverso?

Uma coisa muito importante [para o ator] é estar vivo em cena. E no cinema [isso às vezes é difícil porque] a gente repete muitas vezes o mesmo take com a câmera reposicionada. A espontaneidade do não ator tem um frescor muito grande. E a gente, que se profissionalizou e tem uma construção de personagem, precisa achar frescor na própria construção, na consciência absoluta do que a gente está fazendo. Então estar com não atores é delicioso porque tem esse “vivo” o tempo todo. E aí estar com a Isabella Rossellini foi uma honra muito grande. É uma atriz fantástica, com uma história fantástica que a precede, e foi delicioso estar em cena com ela. Nossas personagens têm uma ligação íntima, contraditória e louca, então a gente precisava ter uma cumplicidade. A gente quis se conhecer para entender um pouco cada uma, e conseguiu criar uma conexão muito legal. Ela é não só uma atriz incrível, como uma pessoa fantástica. Também foi muito legal estar com o Josh, pois tenho admiração pela escola britânica, que tem outra maneira de abordar a cena. E ainda com o Vincenzo Nemolato, um ator napolitano que tem outra temperatura e é mais teatral. Então foi muito diverso e muito rico para mim. 

Carol Duarte, Isabella Rossellini e Josh O’Connor durante as filmagens de “La Chimera – Fotos: Reprodução/Instagram

Vocês falavam que língua no set?

O Josh fala e entende um pouco de italiano, mas quando estávamos nós três [Carol, Josh e Alice] falávamos em inglês. Com a Isabella, [falávamos em] italiano, mas ela fala francês super bem e a fotógrafa é francesa, então de repente [mudava para o] francês e aí eu já não entendia mais nada. Com os atores que interpretam os ladrões de túmulo falávamos italiano, e o Josh às vezes entendia e às vezes não – e eu também, porque de vez em quando eles engatavam nos dialetos. Então era uma mistura, de acordo com quem estava no grupo.

La Chimera foi o seu segundo trabalho com a diretora de fotografia Hélène Louvart, mas o primeiro no qual vocês podiam se falar durante a filmagem, já que em A Vida Invisível você e a atriz Julia Stockler foram orientadas a conversar apenas com a equipe de direção. Foi diferente poder falar com a Hélène? O que você pode contar sobre a colaboração com ela, que é uma das fotógrafas mais importantes do mundo?

Gosto demais de trabalhar com a Hélène. Ela é fantástica, muito sensível, uma profissional admirável. Ela trabalha de um jeito que, para mim, parece uma dança. Em A Vida Invisível, por exemplo, ela criava umas luzes super loucas. Eu pensava: “Gente, ela está colocando verde aqui, como isso vai aparecer em cena?”. O filme tem essa exposição grande de luz e de calor, é um melodrama com uma fotografia bem diversa. E, de fato, a gente não podia se falar no set. No La Chimera, podíamos, mas, ainda assim, a Hélène é uma figura silenciosa. Por isso que falo que é uma dança. Ela é muito concentrada, tem uma equipe super competente e uma conexão muito grande com a Alice. Elas sempre fazem filmes juntas, então uma complementa a outra. Acho que eu e a Hélène temos uma intimidade muito própria. A gente não se fala muito. Quer dizer, a gente se fala. Depois da filmagem a gente conversava, falava da vida. Mas o diálogo de cena que a gente tem é bem louco, bem profundo, porque sei que a Hélène está aqui e está sacando tudo. É uma dança mesmo, um corpo muito próximo e alguém com quem tenho uma conexão mais íntima e mais instintiva, que não é no papo. 

Carol Duarte no set de “La Chimera” – Foto: Divulgação

Quando entrevistei você pela primeira vez, em 2019, você falou várias vezes sobre como o cinema era algo novo na sua carreira, que antes de A Vida Invisível você não tinha noção de como se realizava um filme e de quantas pessoas estavam envolvidas. E mencionou bastante, também, uma dificuldade muito grande de se ver em cena – que, aliás, já citou aqui na conversa de hoje – e de lidar com o fato de que, ao contrário da peça de teatro, que acontece e acaba, “o filme fica”. Cinco anos e alguns filmes depois, como está a sua relação com o cinema?

Ela continua assim [risos]. Agora já estou sabendo mais sobre o set e o ritmo de filmagem, mas isso também depende do diretor, que é quem dá a temperatura do set. Foi muito marcante ter começado minha carreira no cinema com o filme do Karim. Querendo ou não, A Vida Invisível foi um pouco base de comparação para o resto, e o Karim tem uma sacralidade no set – não pode celular, não pode falar com ninguém – que para mim, no meu processo, foi muito benéfico. Ao longo dos outros filmes, fui percebendo que cada projeto exige uma coisa. Como disse, a Alice não é uma diretora que vai pedir gênese de personagem, que não vai definir ou fechar tanto a personagem. Então para mim ainda tem muito mistério, muita descoberta. Cada projeto parece [começar] do zero, o que é maravilhoso e super excitante, mas também desesperador. Parece que você está sempre recomeçando, sempre prestes a um grande fracasso, a se jogar num abismo e falar: “Tchau, gente”. Nunca está ganho. Vou começar a filmar O Tempo da Delicadeza com o Eduardo Nunes e estou exatamente nesse momento de “não sei se vai rolar, mas vamos tentar”. Dá muito nervoso, sabe? Parece que não sei fazer isso. Mas eu confio. Confio na galera, confio no que já fiz e vamos nessa. 

Mas você sente que esse nervoso é mais especifico do cinema? Quero dizer, é um nervoso que você sente antes de interpretar qualquer personagem ou especialmente neste meio?

Sempre dá nervoso. Tenho muito nervoso antes de entrar em cena, acho que vou passar mal, dá uma queda de pressão. Mas quando entro, eu gosto. Parece que vai. Às vezes não vai, mas de alguma maneira, vai. O cinema me dá mais agonia. É o que eu te disse antes: “o filme fica”. E [fica] também como um retrato do meu momento como atriz. Não gosto de rever o que fiz porque penso que faria tão diferente, mas isso é super bobo, porque é o que era naquele momento. E sinto que o cinema tem uma característica mais rápida. Às vezes no teatro a gente ensaia mais, se pergunta mais, troca mais. O cinema é mais solitário, não tem um processo de criação tão longo, então sinto que tenho de dar um tiro de cem metros, tenho de estar pronta com mais precisão. E isso dá um pouco mais de insegurança. Mas acho que o tempo que se passou de A Vida Invisível para cá me deu mais tranquilidade para entender que o desespero é normal e que está tudo bem. 

Que conselho você daria para as mulheres que querem trabalhar no audiovisual?

Confiem em vocês, porque muitas pessoas vão te questionar. É um mundo duro em sua própria “feitura”, porque às vezes há pouco tempo de produção e porque dependemos de muita coisa para o trabalho dar certo. O nervoso que você passa pelo que há de incerto tem de valer a pena pela paixão que você tem, e pelo prazer de estar com pessoas que você acha legais. Às vezes não podemos escolher [com quem trabalhar], mas às vezes podemos, e é importante potencializar essas parcerias, estar com pessoas que confiam no nosso trabalho. Saibam que é um grande abismo, sejam fortes e tenham segurança. Os homens são muitos seguros de si, então acho que temos de estar mais seguras também.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

Foto do topo: Caio Oviedo/Divulgação

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