Nina Kopko foi diretora assistente de Karim Aïnouz em A Vida Invisível, filme premiado em Cannes que é o candidato do Brasil a uma indicação ao Oscar de filme internacional. Ela acompanhou todas as fases do projeto, dos primeiros tratamentos do roteiro ao último corte na filmagem, e foi parte fundamental do trabalho com o elenco encabeçado por Carol Duarte e Julia Stockler. Durante os processos de preparação e filmagem, Nina tirou fotos em uma câmera analógica. A convite do Mulher no Cinema, ela escolheu e comentou algumas imagens, que mostram um pouco mais sobre os bastidores de A Vida Invisível e as muitas mulheres da equipe. Todas as fotos desta página são dela, assim como o texto abaixo:
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Segue aqui uma seleção de imagens que fiz durante o processo de preparação e filmagens de A Vida Invisível.
Gosto muito de fotografar com a câmera analógica e sempre que lembro, ando com ela por aí. Acho que ela me ajuda a ver de forma diferente as cenas, sejam elas ficcionais ou reais. Sou péssima fotografando com celular ou câmeras digitais. O retorno imediato da fotografia me faz pensar na imagem em si, e não na situação viva diante de mim. Com filme, clico e esqueço da foto, até que semanas depois vou finalmente descobri-la revelada.
Assim, acabei fazendo um registro muito pessoal durante o filme, do meu lugar dentro do processo. Divido aqui algumas imagens com vocês.
Esse é um registro da sala de ensaio, onde eu conduzia um exercício corporal entre as personagens Eurídice (Carol Duarte) e Zélia (Maria Manoella Teixeira). Era importante criar tanto uma relação de intimidade e cumplicidade entre elas, como construir também o conflito, especialmente pelo fato de a Zélia tentar de alguma forma se tornar uma irmã substituta para Eurídice. Todo o nosso processo com o elenco do filme começava aqui, nessa sala de ensaio, onde estudávamos, experimentávamos e descobríamos as personagens.
Aqui, Julia Stockler se prepara para entrar em cena no set de filmagem. É o dia em que Guida volta da Grécia e tem o duro confronto com o pai. Era uma cena bastante complexa emocionalmente para a Julia, e a filmamos logo na primeira semana. O que aprendi nesse filme é que cada atriz e cada ator tem diferentes formas de acesso ao personagem e às emoções, e é função de quem faz a preparação de elenco identificar essas formas e propiciá-las para os atores. A Julia funciona muito bem assim: dentro da tensão do set, mas isolada em si mesma.
Aí um registro da Hélène Louvart realizando a magia da sua fotografia. Junto dela estão duas assistentes de câmera, a Renata Reis e a Mariana Tozatto. Atrás delas está o Ubiratan Guidio, microfonista, e o som também era capitaneado por uma mulher, a Laura Zimmerman. Tivemos também a Silvia Sobral na direção de produção, a Mariana Coelho e a Viviane Mendonça na produção executiva, a Marina Franco no figurino, a Rosemary Paiva na maquiagem, além de muitas mulheres nas mais diversas assistências. Era imprescindível que fossem olhares e mãos femininas que estivessem construindo essa história junto com o Karim Aïnouz.
Depois da sala de ensaio, nós também ensaiávamos as cenas nas locações, sempre que possível. Esse é o ensaio de uma cena que acabou caindo na montagem por conta do longo tempo de duração do filme. Sou uma grande fã dessas duas atrizes, Andressa Cabral (Amira) e Shirley Cruz (Leila), e foi uma baita honra poder trabalhar com elas. Essa é a locação onde Guida vai morar depois que sai da casa dos pais.
Outro ensaio em locação, com o Gregório Duvivier e a Carol Duarte. Nesse dia ensaiamos todas as cenas que acontecem no apartamento de Eurídice e Antenor. Primeiro improvisávamos, descobríamos as cenas no espaço físico, e depois Karim marcava a mise-en-scène. Eu gosto muito desse retrato, ele me dá a sensação de ser uma legítima foto antiga de algum álbum de família perdido. Outra coisa que me fascina no analógico é o risco do processo, não ter controle total sobre a fotografia, como essa luz que entrou e queimou parte da imagem.
Aqui, a Vanessa Noronha (coordenadora de transportes) e a Érika Cândido (primeira assistente de produção) sorrindo durante o trabalho de base de set. A equipe de produção, além de ser excelente na eficiência, tinha esse diferencial de estar quase sempre no melhor dos humores, mesmo com a correria e pressão típicas dessa área.
Flávia Gusmão veio de Portugal para viver Ana Gusmão (o sobrenome foi uma feliz coincidência). Ela e o António Fonseca (Manoel) chegaram ao Brasil faltando apenas alguns dias para a filmagem, então a nossa preparação com eles foi feita em sua maior parte por um processo virtual. Esse é um registro da primeira diária de filmagens, um momento de descanso e concentração para a atriz.
Nesse registro, Julia está a alguns segundos de começarmos a rodar uma das cenas mais difíceis para Guida no filme. A atriz escreveu em seu perfil no Instagram sobre esse momento: “Antes da cena é um momento de encontro com o que existe dentro de você e o mundo.
Essa é Ana Isabel Guimarães, pessoa fundamental para a construção da Eurídice no filme. Ela foi uma das professoras de piano da Carol, acompanhou as filmagens de todas as cenas em que a personagem toca, foi a dublê de mãos na cena da prova do conservatório e figurante na cena do casamento. Por sorte, Ana ainda é portuguesa, então, além de tudo que mencionei, ela também nos ajudou com certa pesquisa cultural para a composição da Eurídice, que é filha de portugueses.
A impressionante e dolorida cena da noite de núpcias teve uma preparação especialmente cuidadosa. Esse registro é do ensaio em locação, onde experimentamos várias ações e versões, até chegar no resultado filmado.
Essa foto me gera sentimentos contraditórios. Há certa fofura em como a atriz mirim Maria Carolina Basilio manuseia o aspirador de pó, com a destreza de um adulto, mas é também, para mim, um gesto terrivelmente triste. Ver a pequena criança ser treinada para ser uma futura dona de casa. Não importa quantas vezes eu veja o filme, essa micro-cena sempre me rasga ao meio. Tirei esse registro durante o momento que estávamos rodando. A câmera está dentro da cozinha, e eu acompanhava dentro de um quartinho nos fundos.
É bastante difícil acreditar que a Bárbara Santos nunca tinha feito cinema antes de A Vida Invisível. O trabalho que ela faz com Filomena é de uma potência enorme, uma presença inesquecível. Eu já era meio discípula distante da Bárbara, pois ela tem uma pesquisa profunda com o Teatro do Oprimido do Augusto Boal, algo com que venho flertando há algum tempo. Quando fui fazer o convite do filme para ela, tomando uma água de coco no Leme, tive sérias dificuldades para esconder essa admiração e certo nervosismo. E foi realmente um grande aprendizado trabalhar com ela. Aqui, vemos ela e Karim fazendo ajustes no texto antes de começarmos a rodar.
Essa é talvez a imagem-síntese do filme para mim: Eurídice, vestida de noiva, invisível nas sombras do dia. É um corpo cansado, o vestido parece pesar cem quilos. Terrivelmente desconfortável. E esse olhar, quase imperceptível, traz toda a marca da ausência de Guida. Uma vida inteira, juntas.
Nina Kopko é roteirista, diretora, montadora e preparadora de elenco.
Que maravilha!