Se 2015 foi o ano em que a discussão sobre a mulher no cinema chegou ao mainstream, 2016 era o ano de não deixar a peteca cair. “A desigualdade de gênero no cinema é o assunto do momento”, escrevi, 12 meses atrás, numa espécie de retrospectiva. “Precisa, agora, ser o assunto de sempre, até não ser mais assunto.”
A boa notícia é que a peteca de fato não caiu. Uma série de tendências que começaram nos últimos anos continuaram a todo vapor em 2016, em especial a disposição de mulheres da indústria cinematográfica em denunciar práticas machistas, oportunidades desiguais, diferença de salários e até casos de abuso sexual. Além disso, a cobertura de prêmios como o Oscar ou festivais como Cannes passou necessariamente por questões de gênero, tabus foram quebrados e passos importantes foram dados por organizações e indivíduos em diferentes partes do mundo.
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A má notícia é que falta. Falta muito. Desde a criação do Mulher no Cinema, em junho do ano passado, recebo muitas perguntas que supõem avanço. As coisas estão mudando? As mulheres estão ganhando espaço? As redes sociais estão ajudando? A nova onda feminista está se refletindo nas telas? Questões como estas, ou variações delas, se justificam pelo notável aumento do debate e da mobilização em torno da igualdade de gênero. Se falamos tanto sobre o assunto, algo deve estar acontecendo. Tanta preocupação na teoria deve estar causando algum efeito na prática.
Em geral, sempre respondi na linha do “ainda é cedo” – o debate cresceu, mas os dados não mudaram. E embora continue com a mesma opinião, 2016 deixa a sensação de que a mudança pode estar mais longe do que a gente pensa. Acontecimentos sociais e políticos deste ano, em especial a vitória de Donald Trump na eleição presidencial americana, mostraram que, a despeito da nossa percepção, ainda é preciso alcançar muita, muita gente.
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De certa forma, 2016 colocou a empolgação de 2015 em perspectiva e renovou o propósito de defender a igualdade de gênero nas telas e ir além do círculo de convertidos. Não se trata de assumir uma visão pessimista, mas de entender cada avanço pontual dentro de um contexto maior – e assim, resistir melhor. “Quero celebrar os triunfos reais e frutos de trabalho duro de alguém como Ava DuVernay”, escreveu a crítica Manohla Dargis, no New York Times. “Ao mesmo tempo, essas conquistas não devem ser vistas como se valessem para todas as mulheres diretoras, em especial às que integram minorias. Na verdade, a indústria precisa destes indivíduos excepcionais para que ajudem a mostrar o quão ruim é a situação.”
A peteca, portanto, segue em jogo – tanto em 2017 quanto nos anos seguintes. Abaixo, relembre os principais acontecimentos que marcaram 2016 para as mulheres do cinema:
Dispostas a falar – e a escrever
Jennifer Aniston, Renée Zelwegger, Mila Kunis, Gabrielle Union, Rose McGowan, Evan Rachel Wood, Chelsea Handler e Amber Heard foram algumas das atrizes que usaram cartas abertas e artigos na imprensa internacional para discutir diferentes aspectos da desigualdade de gênero: de cobranças estéticas e pressão quanto à maternidade a machismo no set e casos de abuso sexual. Outros temas que continuaram em pauta foram a diferença de idade e de salário entre atrizes a atores. Olivia Wilde, por exemplo, revelou ter sido considerada “velha demais” para fazer par romântico com Leonardo DiCaprio, que tem quase 10 anos a mais do que ela; Elizabeth Banks, para ser par de Tobey Maguire, apenas 16 meses mais novo. Na questão dos salários, Gillian Anderson e Robin Wright falaram publicamente sobre como tiveram de batalhar para receber o mesmo cachê de David Duchovny e Kevin Spacey em Arquivo X e House of Cards, respectivamente.
Apoio à Maria Schneider, uma década depois
Em um ano com tantos depoimentos de mulheres, foi a declaração de um homem a que gerou maior comoção. Em novembro, ressurgiu na internet um vídeo de 2013 no qual o diretor Bernardo Bertolucci afirma que ele e o ator Marlon Brando não informaram a atriz Maria Schneider (1952-2011) sobre a cena de estupro em O Último Tango em Paris (1972). Artistas e espectadores usaram as redes sociais para manifestar choque e horror – uma reação justa, porém tardia: a própria Schneider comentou sobre o caso em 2007, dizendo ter se sentido violentada e, posteriormente, enfrentado depressão, problemas com drogas e tentativas de suicídio. Um lembrete de como, muitas vezes, a voz da mulher não é suficiente.
Caça-Fantasmas e o horror da internet
O lançamento da versão de Caça-Fantasmas com elenco feminino expôs o pior do machismo na internet. A proporção do boicote e o nível de agressividade foram muito além dos provocados por outros remakes, e os ataques racistas contra a atriz Leslie Jones, que recebeu ofensas no Twitter e teve seu site invadido por hackers, elevaram o horror a outro patamar. Uma bilheteria sólida, mas não arrasadora, impediu que Caça-Fantasmas passasse uma mensagem inequívoca a Hollywood de que o público quer ver mulheres em comédias e filmes de ação. Ainda assim, valeu a pena: pudemos ver quatro atrizes (três delas com mais de 40 anos) no centro de um blockbuster de verão, em papéis geralmente associados aos homens, salvando o mundo enquanto vestem um dos uniformes menos sensuais que o cinema já viu.
#OscarSoWhite ataca novamente
A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas foi alvo de duras críticas depois de, pelo segundo ano consecutivo, nenhum ator negro ou atriz negra ter sido indicado ao Oscar (e como de costume, nenhuma mulher foi indicada ao prêmio de direção). Em resposta, a Academia anunciou um plano para dobrar o número de mulheres e minorias entre seus integrantes até 2020. As regras de votação foram alteradas e a lista de 683 profissionais convidados a se unir ao grupo este ano incluiu mais mulheres (46%) e não brancos (41%) do que o normal, além de 283 artistas internacionais – entre eles a diretora brasileira Anna Muylaert. A expectativa é grande para o anúncio das indicações de 2017, que será feito em janeiro.
Pelo fim da festa da salsicha
Do outro lado do mundo, outra premiação provocou protestos. Em dezembro, cerca de 15 cineastas mulheres invadiram o tapete vermelho do prêmio da Academia Australiana de Artes de Cinema e Televisão (AACTA), o Oscar da Austrália, para protestar contra o domínio masculino entre filmes e profissionais indicados. Vestindo fantasias, elas pediram o fim da “festa da salsicha”, expressão que, em inglês, se refere a festas em que há muito mais convidados homens. Arrasaram!
Igualdade em editais, fundos de financiamento e prêmios
Quem saiu à frente foi a Academia Britânica de Cinema e Televisão: a partir de 2019, filmes que não tenham equipes inclusivas não poderão concorrer aos principais prêmios BAFTA, o Oscar do Reino Unido. Os concorrentes terão de provar que trabalharam para promover a diversidade em ao menos duas destas quatro áreas: temas e personagens; papéis principais e equipes; treinamento na indústria e progressão de carreira; acesso do público e apelo às plateias sub-representadas. Já o Canadá fez compromissos importantes no que diz respeito à produção: tanto a Comissão Nacional de Cinema quanto a Telefilm Canada, duas das maiores financiadoras do audiovisual do país, anunciaram que 50% de todos os filmes apoiados serão dirigidos por mulheres. O Brasil não fez anúncios do mesmo nível, mas pela primeira vez mulheres foram maioria em uma comissão de seleção da Agência Nacional de Cinema (Ancine), enquanto a Spcine lançou um edital de produção de curtas com paridade de gênero tanto no corpo de jurados quanto nos contemplados.
O exemplo da TV
Em 2016 a televisão americana continuou dando sinais de que está à frente do cinema no que diz respeito à diversidade. O Sindicato dos Atores entregou prêmios para atrizes negras em todas as categorias de TV, enquanto o Emmy escolheu Jill Soloway e Susanne Bier para os troféus de direção de série de comédia e direção de minissérie, respectivamente. Além disso, Ava DuVernay mais uma vez colocou seu ativismo em prática escalando mulheres para dirigir todos os episódios de Queen Sugar, a série que criou para a emissora de Oprah Winfrey. O exemplo foi seguido por Marvel’s Jessica Jones, que terá diretoras no comando de todos os 13 episódios da segunda temporada.
Unidas venceremos
Artistas de diferentes partes do mundo se uniram para criar a produtora sem fins lucrativos We Do It Together, que tem como foco empoderar as mulheres no cinema, televisão e outras mídias. A empresa pretende trabalhar com diretores, atores e produtores internacionais – tanto homens como mulheres – para desenvolver filmes centrados em protagonistas femininas e criar oportunidades para novos talentos. Para isso, contará com dinheiro de fundos, governos, patrocinadores e doações individuais. O primeiro projeto será Together Now, um conjunto de sete curtas dirigidos por Catherine Hardwicke, Haifaa Al Mansour, Kátia Lund, Małgorzata Szumowska, Melina Matsoukas, Patricia Riggen e Robin Wright.
Pés descalços e decepções em Cannes
O sucesso de Toni Erdmann entre a crítica criou expectativa para que o Festival de Cannes entregasse a Palma de Ouro a um filme dirigido por mulher (o que só aconteceu uma vez). Mas o longa de Maren Ade foi ignorado e homens dominaram a premiação. Ainda que Andrea Arnold tenha recebido o Prêmio do Júri e mulheres tenham sido lembradas em mostras paralelas, a decepção foi inevitável. Como o Oscar, Cannes tem sido um importante palco de discussões sobre a mulher no cinema. E se a edição de 2015 ficou marcada pelo “heels-gate”, com convidadas sendo barradas por não usarem salto, a deste ano teve Julia Roberts e Sasha Lane descalças, e Kristen Stewart e Susan Sarandon de sapato baixo.
No topo das listas
Se não prevaleceu em Cannes, Toni Erdmann recebeu outras honrarias: foi eleito o melhor filme do ano pelas respeitadas revistas Cahiers du Cinéma e Sight & Sound. A lista da Sight & Sound colocou outros quatro filmes dirigidos por mulheres entre os 20 melhores do ano: Certas Mulheres, de Kelly Reichardt (quarto lugar), Docinho da América, de Andrea Arnold (quinto), O Que Está Por Vir, de Mia Hansen-Love (oitavo) e Cameraperson, de Kirsten Johnson (16°).
Prêmios, prêmios, prêmios
Outros festivais internacionais entregaram troféus importantes a filmes dirigidos por mulheres. Em Berlim, Mia Hansen-Love ganhou o prêmio de direção por O Que Está Por Vir, enquanto Leonor Teles recebeu o Urso de Ouro de melhor curta-metragem por Balada de um Batráquio. Em Locarno, Godless, de Ralitza Petrova, ganhou o Leopardo de Ouro; El Futuro Perfecto, de Nele Wohlatz, o prêmio de melhor primeiro filme; e L’Immense Retour, de Manon Coubia, o de melhor curta. E em Londres, o grande ganhador foi Certas Mulheres.
Festivais brasileiros
No Brasil, o destaque do ano foi o Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, que teve 45% dos filmes da programação dirigidos por mulheres, incluindo duas mostras dedicadas a artistas mexicanas e uma retrospectiva da carreira de Anna Muylaert. As cineastas também fizeram bonito no In-Edit, festival dedicado ao documentário musical, no qual todos os filmes premiados pelo júri foram dirigidos ou codirigidos por mulheres, incluindo o grande ganhador, Xingu Cariri Caruaru Carioca, de Beth Formaggini. Destaque ainda para A Cidade onde Envelheço, de Marília Rocha, que ganhou quatro prêmios no Festival de Brasília, incluindo melhor filme e direção.
Fazendo história
Mulheres continuaram quebrando históricos tabus da indústria cinematográfica em 2016. Uma das estrelas do ótimo Tangerine, Mya Taylor tornou-se primeira atriz transexual a ser premiada no Independent Spirit Awards, que é considerado o Oscar do cinema independente nos Estados Unidos. Já Amma Asante foi a primeira diretora negra a abrir o Festival de Cinema de Londres (com o drama Um Reino Unido) e Ava DuVernay, a primeira diretora negra a abrir o Festival de Cinema de Nova York (com o documentário A 13ª Emenda). DuVernay também entrou para a história graças a seu novo projeto, Uma Dobra no Tempo, o primeiro filme com orçamento de US$ 100 milhões (cerca de R$ 327 milhões) a ser dirigido por uma mulher negra.
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Nos vemos por aqui em 2017. Feliz ano novo!
Foto do topo: Ava DuVernay, fotografada por Kevork Djansezian/Reuters