O fim do ano chegou e com ele as tradicionais listas de melhores filmes do ano. Eu também resolvi fazer a minha, com dez títulos dirigidos por mulheres ou centrados em personagens femininas que ficaram na minha memória em 2017. A única regra: que tenham estreado comercialmente nos cinemas brasileiros entre janeiro e dezembro.
Leia também: Diretoras brasileiras escolhem os melhores filmes do ano
Especiais: 2017, o ano em que descobrimos a obra de Margaret Atwood
Saiba mais: 10 filmes de Natal dirigidos ou escritos por mulheres
A Cidade Onde Envelheço, de Marília Rocha
Estreando na ficção após documentários como Aboio (2005) e A Falta que me Faz (2009), Marília Rocha combinou os dois gêneros para contar a história de amigas portuguesas que se reencontram no Brasil após muito tempo sem se ver. Além de criar uma narrativa centrada em momentos cotidianos, sem grandes acontecimentos além da própria vida, a diretora também reuniu um elenco de não atores que nem chegou a ver o roteiro ou ensaiar diálogos. O resultado foi um filme no qual tudo soa natural e quase todas as cenas criam identificação imediata. Um bom exemplo de como o cinema feito por mulheres e centrado em mulheres pode, sim, abordar questões universais. Leia entrevista com a diretora
David Lynch: A Vida de um Artista, dirigido por Olivia Neergaard-Holm, Jon Nguyen e Rick Barnes
No ano em que Twin Peaks voltou ao ar para mais uma vez revolucionar a televisão, este excelente documentário ofereceu aos fãs a chance de saber mais sobre a trajetória de David Lynch antes da carreira no cinema. É o próprio diretor quem conta sua história, falando sobre a infância, a juventude e a descoberta do que chama de “vida de arte”, e deixando clara a influência das experiências pessoais em sua obra. Trabalhando também como montadora, a codiretora Olivia Neergaard-Hom usa a edição para dar ao filme um clima tipicamente lynchiano, auxiliada pela música de Jonatan Bengta. Leia a crítica
As Duas Irenes, de Fabio Meira
Duas atrizes novatas – Isabela Torres e Priscila Bittencourt – são a alma do longa de estreia de Fabio Meira, uma delicada observação das descobertas da adolescência. O espectador segue a perspectiva da primeira Irene (Torres), jovem de 13 anos que vive no interior de Goiás e descobre que seu pai tem outra família e outra filha (Bittencourt) com o mesmo nome e a mesma idade dela. Conforme acompanha a bonita relação que se constrói entre as duas meninas, o filme também acompanha as tentativas de Irene em se comunicar com o pai, interpretado por Marco Ricca, em ótima atuação. Mesmo cenas simples, como a que os dois sentam-se lado a lado em silêncio, significam muito.
O Estranho que Nós Amamos, de Sofia Coppola
Ao filmar sua versão do livro de Thomas P. Cullinan, já levado ao cinema por Don Siegel em 1971, Sofia Coppola tornou-se a segunda mulher da história a ganhar o prêmio de direção em Cannes. O longa usa a Guerra Civil Americana (1861-1865) como pano de fundo para uma história de desejo e vingança, mostrando como a chegada de um coronel da União interfere nas relações entre sete mulheres que vivem em uma escola sulista. Coppola centra a narrativa no isolamento das personagens, criando um clima claustrofóbico que mantém o espectador em alerta. O elenco encabeçado por Nicole Kidman, Kirsten Dunst e Colin Farrell é afiado, enquanto figurino, direção de arte e fotografia são impecáveis. Leia a crítica
Jackie, de Pablo Larraín
Enquanto muitas cinebiografias tentam condensar toda a vida de uma personalidade em cerca de duas horas, Jackie prefere registrar um período muito específico da vida da ex-primeira-dama dos Estados Unidos Jacqueline Kennedy: os dias imediatamente posteriores ao assassinato do então presidente John F. Kennedy, em 1963. Graças a este recorte, o diretor Pablo Larraín consegue traçar um retrato mais íntimo e profundo de uma personagem fascinante em um momento crucial – em luto, mas determinada a definir o legado do marido. Natalie Portman é o grande destaque, em uma das melhores atuações da carreira, mas também é notável o trabalho da compositora Mica Levi, responsável pela sombria trilha sonora que adiciona novas camadas ao filme em geral, e ao trabalho da atriz em particular.
Jonas e o Circo Sem Lona, de Paula Gomes
O primeiro longa de Paula Gomes começou com um telefonema de Jonas Laborda, membro de uma família circense que deixara os espetáculos em busca de uma vida melhor. Jonas contava que era dono de seu próprio circo, montado no quintal de sua casa na Região Metropolitana de Salvador, e Gomes percebeu que naquele quintal havia um filme. O documentário retrata a persistência de Jonas em voltar a trabalhar no circo, as mudanças da adolescência e seu processo de amadurecimento, bem como os desafios da educação pública para atender e incentivar os diferentes interesses dos alunos. Revezando-se entre os papéis de diretora, conselheira de Jonas e confidente da mãe dele, Gomes impressiona pela sensibilidade e o respeito com que trata os personagens e os sonhos que eles têm. Leia entrevista com a diretora
Mulher-Maravilha, de Patty Jenkins
A pressão em cima de Patty Jenkins era grande: um raríssimo filme inspirado em quadrinhos centrado em personagem feminina e dirigido por uma mulher tinha de se sair bem para poder abrir caminho a outras profissionais e mais produções do gênero. E Mulher-Maravilha superou as expectativas, agradando tantos os críticos quanto os espectadores e batendo recordes de bilheteria. Em meio à mesmice que marca as franquias de super-heróis, o filme trouxe certo frescor, tanto pelo carisma da atriz Gal Gadot quanto pela perspectiva de Jenkins, que fugiu da objetificação e da hipersexualização ao filmá-la. Destaque, também, para a participação de Robin Wright e Connie Nielsen na parte inicial do longa, ambientada na Ilha de Temyscira. Se houver justiça neste mundo, as amazonas ganharão um filme só delas muito em breve.
One of Us, de Heidi Ewing e Rachel Grady
Este documentário não estreou nos cinemas, mas, sim, na Netflix, o que tecnicamente vai contra os critérios desta lista. Optei por uma exceção para marcar o ano em que descobri o trabalho da dupla de cineastas Heidi Ewing e Rachel Grady. No início do ano vi pela primeira vez o excelente Jesus Camp (2006), sobre os bastidores de um acampamento evangélico e o potencial impacto destes jovens no futuro político dos Estados Unidos. Em One of Us elas continuam no tema da religião, mas se inserem em um universo muito mais fechado: o dos judeus hassídicos de Nova York. Igualmente forte, o filme evidencia as consequências pessoais, profissionais e familiares sofridas por três pessoas ao decidir deixar esta conservadora e influente comunidade. Consegue, assim, dar um rosto a quem conhecemos apenas como grupo.
Toni Erdmann, de Maren Ade
Um dos filmes mais celebrados de 2016, Toni Erdmann estreou nos cinemas brasileiros no início deste ano e se manteve entre os meus favoritos conforme os meses se passaram. A comédia alemã que competiu em Cannes e no Oscar acompanha a reaproximação de pai e filha que há anos mantêm relacionamento distante: ele, um piadista que adora todo tipo de brincadeira; ela, uma mulher que leva a vida e o trabalho muito a sério. A diretora Maren Ade (que também tem importante carreira na produção) joga com essa inversão de papéis, na qual a geração mais nova é a mais rígida, em uma série de situações divertidas, mas também comoventes. Algumas cenas estão entre as mais memoráveis do cinema em 2017, como a impagável festa de convidados pelados e a apresentação improvisada da canção “Greatest Love of All”.
Uma Mulher Fantástica, de Sebastián Lelio
Único longa-metragem latino-americano que permanece na disputa pelo Oscar de filme estrangeiro, Uma Mulher Fantástica é exemplo de como dar espaço a artistas transexuais pode render boas histórias e atuações. A excelente Daniela Vega é responsável por um dos trabalhos mais marcantes do ano no papel de Marina, cantora e garçonete que sofre com a recente e súbita morte do namorado, um homem mais velho que deixara a mulher e os filhos para ficar com ela. Conforme lida com os médicos, a polícia e a família do namorado, Marina passa por vários dos estereótipos, preconceitos, humilhações e violências presentes no dia a dia de muitos transexuais.