Ícone feminista, Ruth Bader Ginsburg foi tema de filmes disponíveis no streaming

A trajetória da juíza americana Ruth Bader Ginsburg (1933-2020), que morreu nesta sexta-feira (18) aos 87 anos, foi extraordinária. Em 1993, durante o governo Bill Clinton e após uma longa carreira de combate à desigualdade de gênero, ela se tornou a segunda de quatro mulheres que chegaram à Suprema Corte dos Estados Unidos. Em quase três décadas de atuação no tribunal, ganhou notoriedade pelas várias vezes em que discordou publicamente das decisões dos colegas. E já octagenária, viu suas declarações virarem memes e seu rosto estampar camisetas de jovens que a consideravam uma inspiração. 

Entrevista: “Há algo de universal em Ruth Bader Ginsburg”, diz diretora de A Juíza
Streaming: Veja dicas de documentários sobre mulheres que lutam por mudança
Apoie: Colabore com o Mulher no Cinema e acesse conteúdo exclusivo

Não é de se admirar, portanto, que a vida de Ruth Bader Ginsburg tenha chegado ao cinema. A americana foi tema de dois longas-metragens recentes – a ficção Suprema e o documentário A Juíza -, ambos lançados em 2018, dirigidos por mulheres e disponíveis em plataformas de streaming.

Entre os dois filmes, o melhor é A Juíza, dirigido por Julie Cohen e Betsy West e disponível no streaming do Telecine. O documentário indicado ao Oscar traça um panorama da trajetória de Ginsburg, navegando entre as batalhas legais que marcaram sua carreira e os memes que a transformaram em ícone feminista e cultural. Jornalistas com longa carreira na televisão, as diretoras só entrevistaram Bader Ginsburg formalmente uma vez, mas durante meses tiveram amplo acesso à juíza em eventos oficiais e não oficiais, acompanhando-a tanto na Suprema Corte e em palestras quanto à ópera e à academia.

Em entrevista concedida ao Mulher no Cinema em maio de 2019, quando A Juíza estreou nos cinemas brasileiros, Betsy West falou sobre esta opção por um tom leve e descontraído. “Muitas vezes nos esquecemos que a discriminação estava nas leis, e que Ruth Bader Ginsburg fez uma verdadeira revolução. Há uma história séria no coração do filme: queríamos mostrar sua brilhante estratégia, que foi encontrar casos que pudessem apelar aos nove ministros homens do Supremo”, afirmou. “Ao mesmo tempo, trata-se de uma pessoa incrível, que tornou-se superstar aos 80 e poucos anos. É algo engraçado, e acho que um filme sério pode ganhar algo com o humor, desde que a piada não tome conta.”

Na mesma entrevista, a diretora contou ter se surpreendido com a recepção internacional do filme, inclusive nas exibições das quais participou no Rio de Janeiro (RJ). “Embora não espere que as pessoas entendam ou se interessem pelo sistema político dos Estados Unidos, há algo muito básico e universal na história de Ginsburg, uma mulher que enfrentou e superou enormes desafios usando seu intelecto, sua determinação e seu senso de humor. É uma história que lida com questões legais, mas também é uma história humana”, explicou.

Felicity Jones como Ruth Bader Ginsburg em “Suprema”, de Mimi Leder

Suprema (disponível no Amazon Prime e no HBO Go) tem foco mais específico: a juventude de Ginsburg, interpretada pela atriz inglesa Felicity Jones. Apesar do título em português (o original é On the Basis of Sex), o filme da diretora Mimi Leder não narra nem a entrada, nem a atuação da juíza na mais alta Corte dos Estados Unidos. No centro da narrativa está um caso de 1970 no qual a americana, então advogada, atuou em parceria com Martin Ginsburg, seu marido e colega de profissão. Eles assumiram a defesa de Charles Moritz, homem solteiro que contratou uma enfermeira para cuidar de sua mãe doente, mas a quem foi negada a dedução de impostos que por lei era concedida apenas a “mulheres, viúvos e homens divorciados ou cujas mulheres estão incapacitadas ou internadas”. Para Ruth Bader Ginsburg, o caso representava uma oportunidade: se a justiça determinasse que Moritz fora tratado injustamente por causa de seu sexo, a decisão criaria precedente para que também fossem questionadas as leis discriminatórias em relação às mulheres.

Suprema é prejudicado pelo fraco roteiro do estreante Daniel Stiepleman, que segue formato convencional e se apoia em diálogos expositivos e discursos empoderadores óbvios. Ainda assim, serve de ponto de partida para espectadores interessados em saber mais sobre os obstáculos que Ginsburg teve de enfrentar muito antes de chegar ao Supremo. A americana começou a estudar Direito na Universidade de Harvard seis anos depois de o curso ter passado a aceitar estudantes do sexo feminino – e em sua turma, era uma de apenas nove mulheres entre 500 alunos. Suprema também mostra como ela conciliou os estudos com a criação da filha pequena e a resistência dos escritórios de advocacia em contratá-la apesar do excelente desempenho na faculdade.

Ruth Bader Ginsburg em cena do documentário “A Juíza”, de Betsy West e Julie Cohen

Alguns temas se repetem em ambos os filmes, como a relação harmônica e igualitária do casal, que a própria juíza considerava ter sido fundamental para sua ascensão: Martin e Ruth dividiam os cuidados com os dois filhos e as tarefas da casa, e a ambição profissional dela não era vista como menos importante do que a dele. “Ele se orgulhava dela, não se sentia ameaçado por ela”, definiu Betsy West.

Suprema e A Juíza também convidam a uma reflexão sobre como problemas complexos e estruturais como a desigualdade de gênero exigem respostas múltiplas e diferentes formas de ativismo. No contexto dos anos 1970, uma atuação como a de Ginsburg talvez possa parecer tímida, mas as mulheres que estavam nas ruas fortaleciam as que estavam nos tribunais e vice-versa. “Ginsburg não é uma protagonista típica: é intelectual, introvertida, reservada, quieta, não é a alma da festa. Não está lutando da forma como talvez esperássemos: é um outro tipo de heroína”, afirmou West. “Ela usou as habilidades que tinha – o cérebro e o conhecimento legal – para criar mudança nas cortes, enquanto outras pessoas estavam criando mudança de outras formas. Acho que, para seguirmos adiante, precisamos de todos os tipos de liderança.”

Imagem do filme “Roe x Wade: Direitos das Mulheres nos EUA”, de Ricki Stern e Anne Sundberg

Há um terceiro filme que, embora não seja sobre Ruth Bader Ginsburg, oferece contexto sobre como a morte da juíza tem profundo impacto no cenário político americano. Trata-se do documentário Roe x Wade: Direitos das Mulheres nos EUA, dirigido por Anne Sundberg e Ricki Stern e disponível na Netflix.

Também lançado em 2018, o documentário mostra os esforços do movimento anti-aborto para eleger seus candidatos à presidência, assegurar a entrada de juízes conservadores na Suprema Corte e conseguir um objetivo de décadas: reverter a histórica decisão de Roe vs. Wade, que legalizou o aborto em 1973.

Se foi admirada pela longevidade de sua atuação no Supremo, Ginsburg também foi alvo de críticas por não ter se aposentado durante o governo de Barack Obama, que tenderia a indicar um juiz de perfil liberal. Ela provavelmente não imaginava que o presidente seguinte seria Donald Trump, que em seu primeiro mandato já nomeou os juízes Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh. Uma eventual terceira indicação certamente tornaria a Corte mais conservadora e representaria uma ameaça ainda maior ao direito ao aborto.

Políticos republicanos já começaram a se movimentar para tentar preencher a vaga de Ginsburg antes da eleição de novembro, contrariando a posição que tomaram em 2016, quando usaram a justificativa do ano eleitoral para postergar a escolha e não deixá-la nas mãos de Obama. O cenário é incerto, e a possibilidade de Trump ser reeleito mantém a tensão no ar. Se a vida de Ruth Bader Ginsburg foi marcada pela defesa dos direitos das mulheres americanas, sua morte também pode ser um momento-chave nesta mesma luta.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

Top