Aos 86 anos, a juíza Ruth Bader Ginsburg é um fenômeno de mídia e popularidade nos Estados Unidos. Indicada para a Suprema Corte em 1993, durante o governo Bill Clinton, ela foi a segunda das quatro mulheres que chegaram ao tribunal mais importante do país e ganhou notoriedade pelas várias vezes em que discordou publicamente das decisões dos colegas. O perfil liberal e uma longa carreira de combate à desigualdade de gênero a transformaram em ícone pop, tema de memes, estampa de camiseta e até boneca.
A popularidade de Ginsburg também explica o fato de dois filmes sobre ela – ambos dirigidos por mulheres – terem sido lançados no ano passado: o documentário RBG, de Betsy West e Julie Cohen, que não estreou nos cinemas brasileiros, mas concorreu ao Oscar; e Suprema, de Mimi Leder, que está em cartaz no país e opta pelo gênero ficcional. Apesar do título em português (o original é On the Basis of Sex), o longa não narra nem a entrada nem a atuação da juíza na mais alta Corte norte-americana. O foco, na verdade, está na juventude de Ginsburg, interpretada pela inglesa Felicity Jones.
O pioneirismo da protagonista é evidenciado logo na primeira cena, quando ela caminha em direção ao prédio da Universidade de Harvard ao lado de centenas de homens e ao som da famosa canção “Ten Thousand Men of Harvard” (“os dez mil homens de Harvard”, em tradução livre). É uma representação simples e eficaz do contexto social da época: quando Ginsburg começou a estudar Direito na prestigiada universidade americana, em 1956, ela era uma de apenas nove mulheres entre 500 alunos.
Aquele era o sexto ano em que o curso passara a aceitar estudantes do sexo feminino, mas o machismo no campus seguia forte. Em uma cena de Suprema, durante um jantar para novos alunos o reitor pede que cada uma das mulheres presentes diga o motivo de ter ocupado a vaga que poderia ter sido de um homem. E se a frase parece hollywoodiana demais para ser verdade, não é: em RBG, a própria Ginsburg narra o episódio.
Além do machismo, a americana teve de enfrentar outros obstáculos em seus primeiros anos em Harvard, como a criação da filha pequena e a grave doença do marido, Martin (Armie Hammer), também estudante de Direito na mesma faculdade. Assim como RBG, Suprema argumenta que a relação harmônica e igualitária do casal foi fundamental para a ascensão da juíza: Martin e Ruth dividiam os cuidados com os dois filhos e as tarefas da casa, e a ambição profissional dela não era vista como menos importante do que a dele.
Suprema centra a narrativa justamente em um caso no qual o casal trabalhou junto em 1970. Eles assumiram a defesa de Charles Moritz, homem solteiro que contratou uma enfermeira para cuidar de sua mãe doente, mas a quem foi negada a dedução de impostos que, por lei, era concedida apenas a “mulheres, viúvos e homens divorciados ou cujas mulheres estão incapacitadas ou internadas”. Para Ginsburg, o caso representava uma oportunidade: se a justiça determinasse que Moritz foi tratado injustamente por causa de seu sexo, a decisão criaria precedente para que também fossem questionadas as leis discriminatórias em relação às mulheres.
É um caso bastante específico, mas Suprema consegue manter o público interessado conforme se alterna entre a cinebiografia e o filme de tribunal. O longa marca a volta de Mimi Leder aos cinemas depois de quase dez anos trabalhando principalmente na televisão, um período ao qual a diretora se refere como “movie jail” (ou prisão do cinema). Após ir bem nas bilheterias com O Pacificador (1997) e principalmente Impacto Profundo (1998), a cineasta amargou um enorme fracasso de crítica com A Corrente do Bem (2000) e viu seu longa seguinte, Jogo Entre Ladrões (2009), estrear direto em home video. Tornou-se, assim, um de vários exemplos do tratamento desigual dado a homens e mulheres após um fracasso de crítica e/ou bilheteria. Para eles, em geral o jogo segue; para elas, a “geladeira de Hollywood” é o destino mais provável.
A carreira de Leder nunca foi tão notável quanto a de outras diretoras do cinema comercial americano, como Penny Marshall (1943-2018) e Nancy Meyers, mas é uma pena que sua volta às telas seja com um roteiro tão fraco quanto o do estreante Daniel Stiepleman. Suprema sofre de uma série de problemas, a começar pelo formato tão convencional que permite ao espectador mais atento adivinhar não apenas a próxima cena, mas o próximo enquadramento e o próximo personagem a aparecer. Especialmente mal desenvolvida é a filha de Ginsburg, Jane (Cailee Spaeny), claramente escalada para expôr um conflito geracional e questionar a linha de ação aparentemente tímida da mãe no momento em que as mulheres levavam a luta por direitos para as ruas. Em tese, uma reflexão interessante, mas na prática, uma sucessão de diálogos fake.
A falta de naturalidade dos diálogos, aliás, é a principal falha de Suprema, pois o poder de síntese da cena inicial rapidamente dá lugar a falas solenes e expositivas, que buscam evidenciar o que poderia ser apenas sugerido. O filme comete um equívoco comum na safra recente de filmes hollywoodianos com protagonismo feminino: esquecer que a mensagem será mais eficaz se a história for bem contada. Em outras palavras, o avanço da representação das mulheres em Hollywood está mais ligado a personagens bem desenvolvidas e narrativas bem conduzidas do que a filmes medianos com discurso empoderador óbvio.
A trajetória de Ruth Bader Ginsburg é, por si só, inspiradora e relevante, sem que seja necessário transformar interações normais dos personagens em pequenas lições. Há uma cena em que a protagonista corrige em detalhes a resposta errada de um colega homem e o professor, que antes resistira à deixá-la falar, questiona: “Isto foi uma resposta ou uma palestra?”. Enquanto assistia à Suprema, senti vontade de fazer quase a mesmíssima questão aos realizadores: “Isto é um filme ou uma palestra?”
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“Suprema”
[On the Basis of Sex, EUA, 2018]
Direção: Mimi Leder
Elenco: Felicity Jones, Armie Hammer, Justin Theroux.
Duração: 120 minutos
Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema