A diretora australiana Katie Found encontrou na internet o impulso que faltava para realizar seu primeiro longa-metragem, Meu Primeiro Verão. Na ocasião, ela buscava o que definiu como “um bom filme queer“, capaz de “expressar a conexão queer de forma autêntica e bonita”. Diante da dificuldade de encontrar o que queria, decidiu que era hora de colocar no papel – e na tela – a história de amor que há tempos ela tinha na cabeça.
“Quando era adolescente, as narrativas queer eram frequentemente hiperssexualizadas, intensas, algo ruim quase sempre acontecia”, afirmou Found, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Meu objetivo era fazer um filme carinhoso e que tivesse um olhar feminino, queer e empoderador. De certa forma, este é o filme que gostaria de ter visto quando era mais jovem. É uma carta de amor a muitas conexões queer.”
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Meu Primeiro Verão narra o início do romance entre Claudia (Markella Kavenagh) e Grace (Maiah Stewardson), jovens que levam vidas bem diferentes em uma mesma região rural da Austrália. Grace usa roupas coloridas, gosta de coisas tipicamente adolescentes e prefere passar horas andando de bicicleta a ficar em casa com a mãe e o padrasto. Claudia é uma garota tímida que cresceu apenas com a mãe, uma escritora com problemas relacionados à saúde mental que decidiu isolar a filha do mundo exterior. Com a morte da mãe, Claudia fica sozinha na propriedade, e sua existência é completamente desconhecida pelas autoridades.
A chegada de Grace quebra a solidão de Claudia e dá início a uma forte amizade que, com o tempo, se transforma em amor. A temática lésbica levou o filme a importantes festivais LGBTQIA+ ao redor do mundo, como o Outfest, nos Estados Unidos; o BFI Flare, na Inglaterra; e o Melbourne Queer, na Austrália. No Brasil, o longa teve estreia exclusiva no mês passado no streaming Supo Mungam Plus.
Leia a entrevista com a diretora Katie Found, concedida por email ao Mulher no Cinema:
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Como o projeto começou e por que você quis contar essa história?
O relacionamento entre Claudia e Grace viveu na minha mente muitos anos antes de colocá-lo no papel. Grace era o tipo de amiga que gostaria de ter tido, e a conexão delas era algo que eu desejava ter quando era mais jovem. Um dia, me vi na internet buscando um bom filme queer – daqueles que expressasse o amor e a conexão queer de forma autêntica e bonita. E então soube que eu mesma tinha de fazê-lo. De certa forma, este é o filme que gostaria de ter visto quando era mais jovem. É uma carta de amor a muitas conexões queer.
Por que este é o filme que você gostaria de ter visto na adolescência?
Acho que nós, pessoas queer, estamos sempre buscando histórias que reflitam nossas experiências. Quando era adolescente, as narrativas queer eram frequentemente hiperssexualizadas, intensas, algo ruim quase sempre acontecia. Não queria fazer um filme no qual uma das personagens fosse infiel, morresse ou tratasse a outra de forma horrível. Meu objetivo era fazer um filme carinhoso e que tivesse um olhar feminino, queer e empoderador – não o olhar masculino que tantas vezes estava ligado aos filmes queer aos quais assisti.
Como escalou as duas protagonistas e como foi sua colaboração com elas?
Como o filme gira totalmente em torno do relacionamento central, escalar as atrizes certas era crucial. Encontrei Markella Kavenagh no Instagram, e depois de tomarmos um café soube instintivamente que ela era Claudia. Ela tinha um calor e uma intensidade magnética. Para o papel de Grace abrimos um processo de testes, e Maiah foi uma das últimas atrizes que vimos naquele dia. Foi um teste arrasador, que me deixou sem palavras. A química entre Markella e Maiah estava lá desde o começo, e meu “gaydar” disparou quando Maiah interpretou Grace e vi o modo como ela olhava para Claudia. Existe um modo específico com o qual meninas olham para meninas, e queria capturá-lo, então desde os testes já sabia que queria muitos closes de olhares. Também houve muita brincadeira durante os testes, pois queria ver como elas se comportavam quando eu tirava o roteiro das mãos delas e entregava alguns objetos típicos da adolescência. Ao vê-las improvisando de forma tão mágica, percebi que íamos nos divertir muito no set, e que nossa colaboração seria baseada em confiança e liberdade criativa.
Em se tratando de atrizes tão jovens, houve algo que você e a equipe fizeram para garantir que elas se sentissem confortáveis, especialmente nas cenas mais íntimas?
Procurei a coordenadora de intimidade Zan Robertson bem no início do projeto e trabalhei de perto com ela para garantir que Maiah e Markella se sentissem seguras em todas as etapas. Usamos imagens de referência como as de gatinhos se aninhando, por exemplo, para capturar o modo carinhoso com o qual as personagens exploram uma a outra romanticamente. Também garantimos que todo mundo estivesse ciente da coreografia das cenas íntimas e que elas se dessem de forma autêntica, segura e sem pressa.
O filme evoca uma atmosfera de sonho, especialmente por meio da luz natural. Fale um pouco das escolhas visuais e estéticas que você e sua equipe fizeram.
Para mim, o aspecto mais importante do filme é a sinceridade e autenticidade das atuações. É um filme independente, com um orçamento muito pequeno, então nunca poderíamos ter enquadramentos super elaborados: foi tudo filmado com câmera na mão, salvo por meia diária na qual tivemos uma Steadicam [equipamento que funciona como estabilizador da câmera]. Tudo foi bem cru, reduzido ao mínimo, tanto na estética quanto na filmagem. Por sorte, nosso diretor de fotografia, Matthew Chuang, é um mestre da luz natural e sabe o quão poderosa ela pode ser quando usada com essa intenção. O colorido do mundo de Grace foi pensado para contrastar com os tons terrosos do mundo de Claudia. Foi bem especial ver as duas se misturarem e se expressarem por meio da cor, do glitter e dos colares de açúcar.
As cores mais usadas são amarelo e rosa. O que essas cores significavam para você e a história?
Curiosamente, não havia nenhuma intenção por trás das cores. Sabíamos que uma paleta de cores em tons pastéis seria uma parte importante no modo de expressão de Grace. Quando Maiah, o figurinista Jack Fordham e a cenógrafa Carolin Saan definiram os elementos mais autênticos de Grace, as cores simplesmente começaram a ganhar vida na paisagem. O que havia de intencional era o uso do amarelo ao longo do filme, para trazer à Claudia memórias de sua mãe. Aos poucos, vamos vendo o amarelo se encaixar na paleta de cores do filme, mas sem carregar traumas. Talvez seja a natureza profundamente curativa da conexão queer?
Me chamou a atenção o fato de a tecnologia estar ausente no filme. Grace mostra muitas coisas do mundo externo para Claudia, principalmente as tipicamente adolescentes, mas essas coisas não incluem celular, tablet, computador, televisão etc. O que motivou essa decisão?
Queria criar um mundo que fosse atemporal e que existisse em uma linha bolha. As personagens vivem o tempo de maneira própria conforme se perdem no mundo uma da outra, algo que muita gente experimenta durante o primeiro amor. Isso permite que a plateia decida, ela mesma, em que época aquela história se passa, ou apenas se entregue a uma narrativa escapista e se deixe levar pela conexão daquelas duas personagens.
Este é seu primeiro longa-metragem. Qual o principal desafio que enfrentou?
Ter um orçamento extremamente limitado foi ao mesmo tempo desafiador e libertador. Quando você tem tantas restrições, é forçada a ser criativa e a resolver problemas, e isso com frequência te leva a ideias que não teria de outro modo. Outro grande desafio para mim, pessoalmente, foi a falta de autoconfiança. Minha crítica interna se manifestava regularmente, especialmente no começo da filmagem, quando ainda estava encontrando meu caminho e minha voz. Por isso, mantê-la sobre controle tornou-se prioridade.
Você é a primeira cineasta da Austrália que entrevisto para o Mulher no Cinema. Gostaria de saber um pouco sobre como é ser mulher e trabalhar no audiovisual do seu país.
Infelizmente as mulheres ainda precisam lutar para serem ouvidas da mesma forma que os homens nesta indústria. Histórias centradas em jovens mulheres, e especialmente jovens mulheres queer, são facilmente esquecidas. Alguns consideram histórias assim como “ingênuas”, o que é uma pena. O amor jovem e queer é poderoso e transformador. Precisamos dele nas nossas telas.
Que conselho você daria às mulheres que querem trabalhar no cinema?
Meu principal conselho seria começar a experimentar ativamente com o seu trabalho. Se você tem uma ideia, experimente! Faça um curta-metragem, escreva um roteiro ou reúna-se com alguns amigos para testar sua ideia. Nosso trabalho está em evolução constante, assim como a gente também está, e não há tempo melhor do que o presente para começar a apoiar a si mesma e a desenvolver seu ofício. Cursos e diplomas são ótimos, mas se você tem interesse e motivação para fazer filmes, há um grande mérito em colocar a mão na massa e aprender fazendo. Se você é uma cineasta generosa e humilde, com grandes ideais que ama e nas quais acredita, está pronta para ter uma experiência enriquecedora e gratificante.
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema