“Retrato de uma Jovem em Chamas”: os bastidores do aclamado filme de Céline Sciamma

Foi em 19 de maio de 2019 que Retrato de uma Jovem em Chamas, quarto longa da francesa Céline Sciamma, fez sua estreia mundial no Festival de Cannes e deu início a uma impressionante trajetória de sucesso. O troféu de roteiro e a Queer Palm (entregue ao melhor filme com temática LGBTQ+) seriam apenas os primeiros de dezenas de prêmios que o longa receberia nos meses seguintes. As críticas elogiosas se multiplicariam e resultariam em um índice de 98% de aprovação no site Rotten Tomatoes. E o impacto nas plateias iria muito além do território francês, com o filme conquistando mais fãs a cada nova exibição pelo mundo.

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Retrato de uma Jovem em Chamas se passa em 1770, quando a pintora Marianne (Noémie Merlant) chega a uma ilha francesa para pintar um retrato de Héloïse (Adèle Haenel), que depois deverá ser enviado a seu futuro marido. A missão é mais difícil do que parece: por se opor ao casamento, Héloïse se recusa a posar para qualquer artista. A saída é que Marianne finja ser uma dama de companhia, passando os dias com Héloïse e trabalhando no retrato em segredo. Com o tempo, a ligação entre as duas se torna mais profunda e mais íntima.

Sciamma também é autora do roteiro, e parte do romance entre Héloïse e Marianne para refletir sobre o ato de olhar e ser olhado, a criação artística e a relação entre arte e amor. Mas como a diretora chegou à sua obra mais madura? Quais decisões foram cruciais na construção do filme? Para marcar o Dia da Visibilidade Lésbica, celebrado em 29 de agosto, o Mulher no Cinema e o Telecine reuniram curiosidades sobre os bastidores de Retrato de uma Jovem em Chamas – do castelo que serviu de locação aos desafios da direção de fotografia, da mulher por trás dos retratos vistos em cena à letra da música cantada ao redor da fogueira.

Retrato de uma Jovem em Chamas já pode ser visto no streaming do Telecine, que oferece os primeiros 30 dias de acesso grátis para novos assinantes. A plataforma também criou a cinelist Visibilidade Lésbica, que inclui filmes como Rafiki, A Favorita, Desobediência, O Mau Exemplo de Cameron Post e Fora de Série, além, é claro, de Retrato de uma Jovem em Chamas. Saiba mais sobre a obra de Céline Sciamma (aviso: o texto abaixo não tem spoilers sobre a trama, mas detalha algumas cenas):

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O ELENCO

As atrizes Noémie Merlant e Adèle Haenel com a diretora Céline Sciamma no set de “Retrato de uma Jovem em Chamas”

Sciamma escreveu o papel de Héloïse especialmente para a atriz Adèle Haenel, com quem trabalhou em seu primeiro longa, Lírios D’Água (2007), e com quem teve um relacionamento amoroso de vários anos. Haenel é conhecida por filmes como Suzanne (2013), Amor à Primeira Briga (2014), A Garota Desconhecida (2016) e 120 Batimentos por Minuto (2017), entre outros.

Já Noémie Merlant foi escolhida em um processo de testes que Céline Sciamma acompanhou de perto. Retrato de uma Jovem em Chamas apresentou a atriz para grande parte do público internacional, mas ela já chamara a atenção em filmes como Le Ciel Attendra (2016) e As Bandeiras de Papel (2018). Merlant também é diretora de dois curtas: Je suis une biche (2017) e Shakira (2019).

Em entrevistas, Sciamma falou sobre como a escolha das atrizes dialoga com a intenção de construir uma história de amor baseada em igualdade. Ela destacou, por exemplo, o fato de Haenel e Merlant terem a mesma idade e a mesma altura. “Era muito bonito vê-las juntas”, afirmou à revista britânica Sight & Sound. “Meu coração bateu forte quando as vi no filme, e isso é o que você quer que aconteça [com a plateia].”

A LOCAÇÃO

“Retrato de uma Jovem em Chamas”: as cenas externas foram rodadas na costa sul da Bretanha

Com exceção de poucas cenas, Retrato de uma Jovem em Chamas foi filmado em basicamente duas locações. As tomadas externas, com belas paisagens de praias, rochas e penhascos, foram rodadas na península francesa de Quiberon, localizada na costa sul da Bretanha. Já o casarão onde Héloïse vive com a mãe (Valeria Golino) e a empregada Sophie (Luàna Bajrami) fica em La Chapelle-Gauthier, na região francesa de Sena e Marne.

O Castelo de La Chapelle-Gautier é do século 17 e, embora oficialmente reconhecido como um prédio histórico, não tinha sido restaurado por falta de verbas. Isto acabou sendo positivo: a produção de Retrato de uma Jovem em Chamas buscava justamente uma locação que mantivesse as marcas do tempo e fosse diferente dos castelos franceses usados para casamentos e outros eventos.

As filmagens também foram positivas para a região. De acordo com o jornal francês Le Parisien, o valor pago pela produção pelo aluguel da locação permitiu a realização de obras que reforçaram a estrutura do prédio. Além disso, a ideia é abrir o castelo para visitação de turistas e principalmente fãs do filme. Segundo a prefeitura, alguns itens usados na criação dos sets continuam por lá.

A FOTOGRAFIA

A diretora de fotografia Claire Mathon no set de “Retrato de uma Jovem em Chamas” – Foto: Margaux de Paint Preuve

O Castelo de La Chapelle-Gautier era perfeito para o filme, mas representou um desafio e tanto para a diretora de fotografia Claire Mathon: por se tratar de um prédio histórico, eram várias as limitações quanto aos locais onde luzes e outros equipamentos poderiam ser instalados. A solução foi construir uma enorme plataforma do lado de fora do castelo e iluminar principalmente através das janelas, usando difusores e rebatedores para criar os efeitos desejados. Nas cenas noturnas, as fontes de luz eram velas, muitas vezes posicionadas fora do quadro. Aliás, Sciamma contou à revista Sight & Sound que, com exceção das tomadas diurnas externas, é possível ver ou ouvir uma chama em quase todas as cenas de Retrato de uma Jovem em Chamas. “É o fogo entre as duas mulheres. É o fogo dentro delas. É raiva e destruição”, explicou.

Este foi o primeiro filme no qual Sciamma trabalhou com Claire Mathon (nos três anteriores, a fotografia foi de Crystel Fournier), e é comum ouvir espectadores comentarem sobre como os frames de Retrato de uma Jovem em Chamas se parecem com pinturas – nos enquadramentos, cores, texturas, luz etc. Em entrevista ao site IndieWire, Mathon contou que ela e a diretora analisaram diversos quadros da época do filme, especialmente retratos. “A representação da cor da pele foi algo primordial”, afirmou. “Busquei suavidade e um resultado levemente acetinado e não realista que se mantém natural e extremamente vivo. Dedicamos bastante tempo a visualizar [como trabalhar] lentes, iluminação, filtros e maquiagem ao longo de vários testes com as atrizes e o figurino. Frequentemente discutíamos os rostos como se fossem paisagens.”

Mathon também contou que o estilo de direção de Céline Sciamma é extremamente preciso. Para se ter uma ideia, as atrizes sabiam, por exemplo, quantos passos tinham de dar para chegar à sua marcação de cena e quantos milímetros deveriam separar seus rostos.

O RETRATO

Hélène Delmaire criou as pinturas de “Retrato de uma Jovem em Chamas” – Foto: Reprodução/Facebook

A preparação também foi precisa no que diz respeito às cenas em que o espectador vê Marianne trabalhando no retrato de Héloïse. As mãos que manejam o pincel não são da atriz Noémie Merlant, mas, sim, da artista francesa Hélène Delmaire. Descoberta por Sciamma no Instagram, ela não conhecia a diretora ou seus filmes.

Delmaire fez cerca de 12 pinturas diferentes e foi filmada em tempo real, pois Sciamma não queria usar truques de edição. “Tivemos de escolher etapas bem específicas da pintura para que tivessem o ritmo certo, fossem interessantes para o espectador assistir e simbolizassem as diferentes camadas que eu estava interessada em mostrar”, disse a diretora no podcast da Indiewire.

A artista esteve muito presente no set, trabalhando em seus esboços enquanto Sciamma e as atrizes filmavam. Quando chegava a hora de pintar, Delmaire se posicionava bem em frente à câmera de Claire Mathon. “Eu não podia me mexer muito e tinha de ficar levemente inclinada. Se voltava à minha posição natural, ouvia: ‘Mova sua cabeça!’”, afirmou, em entrevista ao site Garage. Delmaire disse ter feito praticamente todos os desenhos e pinturas (“menos o quadro que não tem rosto”) e contou que seu trabalho favorito é justamente o que dá nome ao filme. Segundo ela, esta e outras obras ficaram com Céline Sciamma.

O SILÊNCIO

Adèle Haenel e Noémie Merlant em cena de “Retrato de uma Jovem em Chamas”

Outra característica marcante do filme é a ausência de trilha sonora. Enquanto muitos casais do cinema são facilmente identificados por uma música-tema, em Retrato de uma Jovem em Chamas não há canção, original ou não, para embalar o primeiro beijo ou a primeira relação sexual de Marianne e Héloïse.

A decisão foi tomada por Sciamma logo no início do projeto. No podcast da IndieWire, ela contou que a intenção era colocar o espectador na pele das personagens do filme, que têm pouco acesso “à beleza em geral e à arte em particular”. Vale lembrar, por exemplo, das cenas em que Héloïse pede que Marianne lhe empreste um livro e conte como é ouvir uma orquestra. “Queria que o público estivesse na mesma condição física e com a mesma frustração das personagens”, contou a diretora. “Quando a música finalmente ocorre, é um grande momento.”

A MÚSICA

A cena da fogueira é um dos momentos mais marcantes de “Retrato de uma Jovem em Chamas”

De fato, os momentos musicais de Retrato de uma Jovem em Chamas estão entre os mais memoráveis. Um deles é a catártica cena da orquestra, na qual ouve-se “Verão”, um dos quatro concertos de “As Quatro Estações”, do compositor italiano Antonio Vivaldi (1678-1741).

O outro momento musical acontece quando um grupo de mulheres se reúne ao redor de uma fogueira numa cena que, segundo Sciamma, busca evocar o imaginário das bruxas. “São mulheres se reunindo, vivendo sua amizade, trocando conhecimento. Mulheres sábias, médicas, que estão bebendo, talvez usando drogas. Isso eram as bruxas e era isso que eles queriam queimar”, contou, no podcast da IndieWire.

Sciamma ouviu muitas canções antigas em busca da trilha perfeita, mas acabou optando por compôr uma obra original. “Queria que fosse como um transe, [uma música] com muitas batidas por minuto e sem instrumentos, apenas as vozes e as palmas das mulheres”, afirmou. Ao redor do fogo, elas cantam “fugere non possum”, latim para “não posso fugir”. A inspiração de Sciamma foi uma frase do filósofo Friedrich Nietzche (1844-1900) que diz: “Quanto mais nos elevamos, menores parecemos aos olhos daqueles que não sabem voar.”


* Este texto foi produzido pelo Mulher no Cinema e é patrocinado pelo Telecine

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