Quando Haifaa Al Mansour filmou O Sonho de Wadjda, o primeiro longa-metragem dirigido por uma mulher na Arábia Saudita, suas circunstâncias de trabalho ganharam repercussão internacional. O ano era 2011 e o número de salas de cinema no país era zero. No set, Al Mansour tinha de seguir as mesmas regras e leis que regiam os demais espaços da sociedade saudita, o que incluía não ser vista em público trabalhando ao lado de um homem. Por isso, foi de dentro de uma van, estacionada nos arredores do set, que a cineasta dirigiu várias das cenas do filme que conquistou plateias do mundo todo e catapultou sua carreira.
Vídeo: Veja o trailer de A Candidata Perfeita, novo filme de Haifaa Al Mansour
Sharhbanoo Sadat: “Cineastas afegãos devem quebrar clichês sobre o país”
Apoie: Colabore com o Mulher no Cinema e acesse conteúdo exclusivo
O contexto era outro quando Mansour voltou à Arábia Saudita para filmar A Candidata Perfeita (2019), filme que competiu no Festival de Veneza e está em cartaz em Brasília (DF), Curitiba (PR), Niterói (RJ), Porto Alegre (RS), Rio de Janeiro (RJ) e São Paulo (SP). As reformas que têm movimentado a sociedade saudita nos últimos anos permitiram que, dessa vez, a diretora saísse da van e interagisse com atores e colegas. Permitiram, também, a exibição do longa no país, que em 2018 encerrou o veto de 35 anos às salas de cinema.
“Foi incrível poder me misturar à equipe, estar completamente imersa na produção e ter muitos entusiasmados jovens sauditas trabalhando no set”, afirmou Al Mansour, em entrevista por email ao Mulher no Cinema. “Ainda temos muito trabalho pela frente para construir nossas equipes e a expertise local, mas o entusiasmo está ali para servir de base. É um momento animador para ser cineasta na Arábia Saudita!”.
Muitas restrições seguem em vigor e o país atualmente ocupa a 147ª posição do Índice Global da Desigualdade de Gênero, publicado pelo Fórum Econômico Mundial, que reúne 156 países (o Brasil, vale dizer, está em 93º lugar). Al-Mansour se disse ciente de que as mudanças não se manifestarão imediatamente na vida do povo saudita, e afirmou que o desejo de contribuir com esse processo foi o que a levou de volta ao país após longo período trabalhando no Reino Unido e em Hollywood. “O desafio é encorajar as pessoas à saírem às ruas e aproveitarem as oportunidades que passaram a ter”, disse a diretora. “Especialmente para as mulheres, uma enorme mudança de pensamento será necessária para que possam compreender e abraçar essas liberdades.”
Não surpreende, portanto, que a primeira cena de A Candidata Perfeita mostre a protagonista, Maryam, dirigindo um carro, algo que era proibido às mulheres sauditas até 2018. Interpretada por Mila Alzahrani, Maryam é uma médica competente e qualificada, mas frequentemente desrespeitada por colegas e pacientes homens que se recusam a ser atendidos por ela. Além das dificuldades do dia a dia, ela trava uma luta com as autoridades para pavimentar a rua que dá acesso ao pronto-socorro onde trabalha. Uma luta que, eventualmente, torna-se sua principal bandeira quando se candidata a um cargo municipal.
O processo eleitoral no centro do filme reflete outro direito conquistado pelas mulheres sauditas, este em 2015: o de votar e concorrer nas eleições. Al Mansour mostra que o caminho até o poder é difícil, com Maryam enfrentando a desconfiança do eleitorado, o conservadorismo que segue regendo a sociedade e o receio da própria família, já vista com maus olhos pelo fato de o pai ser músico e de a mãe, quando viva, ter sido cantora.
Maryam parece ser uma versão mais velha de Wadjda, a garota que queria ter uma bicicleta, apesar de todos lhe dizerem que tal sonho era permitido apenas aos meninos. Ambas se relacionam, também, com as protagonistas dos dois longas-metragens que Al Mansour fez no exterior – Mary Shelley (2017) e Felicidade por um Fio (2018) -, mulheres que, durante um momento de transformação, questionam as normas e padrões impostos a elas. Em todos os seus filmes, a cineasta opta por um tom mais conciliador do que combativo, deixando a plateia esperançosa e otimista mesmo quando as coisas não saem exatamente como planejado.
“O modo mais eficaz de promover mudanças ou de questionar valores é contar uma história interessante com a qual as pessoas possam se relacionar, e com personagens pelas quais possam sentir compaixão”, defendeu a diretora. “Ninguém quer receber sermão, nem ver personagens que são apenas vítimas. Queremos ver personagens que vão atrás das coisas que querem e que, neste processo, movem toda a sociedade para frente. Estas histórias são emotivas por natureza, mesmo se a jornada não termina em sucesso.”
Abaixo, leia as respostas de Haifaa Al Mansour às perguntas enviadas por email pelo Mulher no Cinema:
*
O que fez você querer voltar à Arábia Saudita para contar esta história?
Grandes mudanças estão acontecendo na Arábia Saudita, e senti que queria contribuir no sentido de encorajar as pessoas a tirar proveito dessas mudanças positivas. Passamos por um longo período no qual nada mudava, no qual parecia impossível haver qualquer abertura ou relaxamento das restrições culturais sob as quais vivíamos, especialmente no que dizia respeito à vida das mulheres. Agora, no entanto, tem sido até difícil acompanhar o ritmo das mudanças. O desafio, então, é encorajar as pessoas a saírem às ruas e aproveitarem as oportunidades que passaram a ter. Especialmente para as mulheres, uma enorme mudança de pensamento será necessária para que possam compreender e abraçar completamente as liberdades que agora podem explorar.
Quando você filmou O Sonho de Wadjda, não existiam salas de cinema na Arábia Saudita e as regras sobre a convivência de homens e mulheres em espaços públicos fizeram com que você tivesse de dirigir as cenas de dentro de uma van. Como foram as circunstâncias de filmagem no caso de A Candidata Perfeita? As novas leis significaram mudanças nesse sentido?
Muita coisa mudou desde que fiz meu primeiro filme saudita! Foi incrivelmente difícil fazer um filme em 2011, uma época em que as pessoas ainda hesitavam muito em abraçar qualquer forma pública de expressão artística. O cinema em especial era visto como tabu, e a ideia de salas serem abertas era como uma linha vermelha que a maior parte de nós achava que nunca ia ser cruzada. Isto mudou bastante, pois hoje temos salas de cinema por todo o país. Como você mencionou, em Wadjda eu não podia trabalhar com os homens em público, então tinha de dirigir de dentro de uma van! Desta vez, foi incrível poder me misturar à equipe e estar completamente imersa na produção. Também foi estimulante ter muitos entusiasmados jovens sauditas trabalhando no set. Eles são o futuro da indústria, e vê-los contribuindo com tudo o que podiam e sendo parte do filme foi especial para mim. Ainda temos muito trabalho pela frente para construir nossas equipes e a expertise local, mas o entusiasmo está ali para servir de base. É um momento animador para ser cineasta na Arábia Saudita!
A candidatura de Maryam está no centro da trama, mas o filme também discute o papel dos artistas na Arábia Saudita. A partir da turnê musical do pai, e também pelo modo como as três filhas encaram o fato de a mãe ter sido cantora, você aborda preconceitos e o desrespeito sofrido por artistas. Por que quis incluir esse tema na narrativa?
Atitudes não mudam facilmente, e parte do objetivo do filme é começar um diálogo sobre os principais valores que estão no coração dos problemas. As cantoras foram vilanizadas durante gerações, e essa atitude não vai mudar da noite para o dia. O filme mostra uma mulher que se sentia da mesma forma, que se ressentia da mãe querer ser cantora e do estigma que isso criou para a família, e que finalmente aceita a paixão de sua mãe pela arte. Espero que, ao ver isso, a plateia reveja sua percepção em relação a esse tipo de coisa.
O filme também mostra vários personagens homens de maneira positiva. Fale um pouco sobre o modo como queria retratar a masculinidade.
A pressão social é muito complexa na Arábia Saudita, e sempre quis mostrar que tal pressão é dura para todos, não apenas para as mulheres. A pressão sob os homens pode ser igualmente difícil, e obviamente nem todos os homens são maldosos! Meu pai era um homem carinhoso e cheio de compaixão, apesar de ter nascido em um dos lugares mais conservadores do país. O problema não pode ser resumido a homens que abusam de mulheres: o problema é a sociedade não ter evoluído para além dos rígidos papéis de gênero que restringem a todos.
Seus filmes frequentemente discutem questões sociais e políticas e têm como protagonistas mulheres que questionam regras e padrões. Em geral, eles seguem uma linha mais emotiva e esperançosa do que um tom de confronto. Isto é reflexo de seu gosto artístico pessoal ou da ideia de que este tipo de história se comunica mais facilmente com as pessoas?
Sem dúvida acredito que o modo mais eficaz de promover mudanças ou de questionar valores é contar uma história interessante com a qual as pessoas possam se relacionar, e com personagens pelas quais possam sentir compaixão. Ninguém quer receber sermão, e acho que ninguém quer ver personagens que são apenas vítimas. Queremos ver personagens que estão tentando melhorar suas vidas, que vão atrás das coisas que querem e que, neste processo, movem toda a sociedade para frente. Estas histórias são emotivas por natureza, mesmo se a jornada não termina em sucesso. Elas tocam no desejo humano de seguir nossa paixão e de tentar criar espaço para as coisas que queremos para nós e nossas vidas.
Em algum momento você se sentiu pressionada a ser mais abertamente crítica na sua abordagem, seja por plateias e artistas sauditas ou no exterior?
Sempre senti a responsabilidade de apresentar uma visão honesta da Arábia Saudita para o resto do mundo, porque há tão poucos retratos disponíveis. As plateias internacionais parecem nos ver em preto e branco porque nunca receberam um retrato completo de quem somos. Sempre quero que meus filmes sejam “reais” e apresentem uma visão realista da vida saudita. É raro vermos a nós mesmos nas telas numa forma documental, então trabalho duro para que tudo seja o mais autêntico possível. Retratar esta história desta forma é chave para conseguir espalhar a mensagem. E espero que meu trabalho possa abrir espaços na indústria para que outras mulheres contem suas histórias. Há muitas perspectivas e experiências que o mundo nunca viu.
Quando você trabalha no Reino Unido e em Hollywood, lida com produções muito maiores, com língua e cultura diferentes das suas e com roteiros que você não escreveu. Dadas essas circunstâncias, como garante que sua visão e seu estilo se mantenham presentes?
Tenho trabalhado bastante na televisão nos Estados Unidos nos últimos tempos e a experiência tem sido incrivelmente valiosa. É um tipo de produção muito mais rápida do que a de um filme, que pode passar anos em desenvolvimento. Na televisão você meio que cai de paraquedas e tem de aprender a forma com que cada programa é feito e a visão que cada showrunner tem. Pude fazer todo tipo de coisa nova, de efeitos especiais a dramas históricos, e é muito divertido explorar os diferentes gêneros. É importante manter uma voz autêntica, mas também é muito importante aprender e crescer como artista, então estou sempre animada em testar coisas novas e aprender outras ferramentas para contar histórias.
Você é a primeira cineasta mulher da Arábia Saudita. Como seus filmes são recebidos no país?
Tanto O Sonho de Wadjda quanto A Candidata Perfeita foram bastante exibidos e recebi muitos retornos positivo dos sauditas. Também é sempre especial para mim encontrar com um conterrâneo na plateia de festivais pelo mundo, pois sinto um orgulho especial em dividir um pouco de casa com eles, seja onde estiverem.
No filme, a plataforma de Maryam não é igualdade de gênero e sim a pavimentação de uma rua. Há uma cena interessante na qual ela argumenta com um apresentador de televisão de que a candidatura dela é positiva tanto para as mulheres quanto para os homens. Na sua opinião, as mulheres que trabalham no cinema enfrentam um desafio similar? Ainda é preciso provar que filmes dirigidos e protagonizados por mulheres são universais?
Às vezes nos perdemos na retórica política sem entender completamente o impacto desse tipo de prática restritiva nas vidas de mulheres e homens. Espero que as pessoas possam entender melhor essas questões ao verem como elas vão se mostrando intimamente no filme. Fiz o mesmo em O Sonho de Wadjda: a questão não era tanto as bicicletas serem ilegais para as mulheres – a questão era que a sociedade escolheu limitar a capacidade das meninas de andar de bicicleta. Queria mostrar para as pessoas o quanto pode significar, para uma garota, ter uma bicicleta e sentir o cabelo ao vento enquanto desce pela rua. Queria mostrar que essa alegria é algo que devemos encorajar em nossas filhas.
Que conselho você daria às mulheres que querem trabalhar no cinema?
Meu conselho é se abrir como artista às críticas e sugestões. Vejo muitos artistas que são extremamente apegados e rígidos em relação à sua visão, e isso pode ser bastante limitador. Se muitas pessoas com variados graus de experiência estão te dizendo que algo não está funcionando, e se você está ouvindo a mesma coisa repetidas vezes, então provavelmente há um problema no qual você precisa trabalhar. E isso pode ser difícil quando se tem uma história muito pessoal para se contar.
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema
Foto do topo: Gareth Cattermole/Contour by Getty Images