Com três longas no currículo, Shahrbanoo Sadat é uma diretora em posição inusitada: ela é afegã, vive em Cabul e conta histórias sobre o Afeganistão, mas filma fora do país, com dinheiro estrangeiro e equipe europeia. Seus filmes foram mais vistos pelo público do Festival de Cannes do que por seus compatriotas, mas partem de uma perspectiva inegavelmente local. “Acredito que meu cinema é verdadeiramente afegão, ou ao menos este é o meu desejo e a minha intenção”, afirmou Sadat, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Mas tenho de entrar no jogo do mercado para conseguir financiá-los, e às vezes é como se fingisse ser uma cineasta europeia.”
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Foi em meio a essas complexas circunstâncias que Sadat rodou O Orfanato, filme que acaba de chegar ao catálogo da Supo Mungam Plus, nova plataforma brasileira de streaming que tem foco no cinema independente e autoral e é um braço da distribuidora Supo Mungam. Exibido na Quinzena dos Realizadores de Cannes, o longa conta a história de Qodrat, um menino de 15 anos levado a um orfanato de Cabul no final dos anos 1980, pouco antes de o Afeganistão tornar-se um Estado islâmico. O retrato realista de um momento dramático da história do país é quebrado por cenas nas quais o protagonista, fã dos filmes de Bollywood, imagina momentos de sua vida embalados pela música e a estética do cinema indiano.
O Orfanato é a segunda parte de uma pentalogia escrita e dirigida por Sadat a partir dos diários não publicados do amigo Anwar Hashimi, um dossiê de cerca de 800 páginas no qual ela viu a oportunidade de contar 40 anos da história recente do Afeganistão. O primeiro filme da série foi Lobo e Ovelha (2016), um retrato da infância de Hashimi em um remoto vilarejo rural – parecido, também, com aquele no qual a própria diretora viveu a partir dos 11 anos, quando os pais voltaram ao Afeganistão após décadas de refúgio no Irã, onde ela nasceu em 1991.
A entrada de Sadat no audiovisual se deu por engano: seu plano inicial era estudar física, mas um equívoco na hora de prestar o exame de admissão a levou para a faculdade de artes, que não chegou a terminar. Sua formação foi no Ateliers Varan, uma oficina francesa para estudantes de cinema em Cabul, a partir da qual começou a realizar curtas-metragens com baixo orçamento e a ajuda dos amigos. Sem encontrar possibilidades de financiamento no Afeganistão, ela buscou contatos no mercado internacional. Em 2012, foi selecionada para um laboratório do Festival Internacional de Documentário de Copenhagen no qual conheceu a dinamarquesa Katja Adomeit, que depois produziria todos os seus filmes, e com quem codirigiu Not at Home (2013).
Adomeit tornou-se uma parceira fundamental para a carreira de Sadat, que ganhou novo impulso em 2010, ao ser selecionada para a residência da Cinéfondation de Cannes. Apesar das conquistas, a realização dos filmes continuou sendo um desafio: como Sadat não é dinamarquesa nem faz filmes sobre a Dinamarca, Adomeit consegue apenas uma pequena parte do orçamento nos fundos do país (O Orfanato, por exemplo, contou com 22 fontes de financiamento diferentes). Encontrar a locação para os longas da diretora também não é tarefa fácil. Por um lado, questões de segurança inviabilizam que a equipe europeia filme no Afeganistão. Por outro, o elenco afegão (majoritariamente formado por não atores) não consegue vistos para entrar na Europa. Assim, tanto O Orfanato quanto Lobo e Ovelha foram rodados no Tajiquistão.
Sadat reconhece os desafios, mas se mantém otimista quanto à possibilidade de fortalecimento do cinema afegão. Enquanto isso, ela vê a coprodução como único caminho. “Penso que os cineastas afegãos devem encontrar um modo de contar suas histórias em uma língua internacional”, afirmou. “No momento, o Afeganistão é um clichê. Precisamos quebrar esse clichê e estabelecer uma imagem mais real do nosso país.”
Abaixo, leia as respostas da diretora às perguntas enviadas por email pelo Mulher no Cinema:
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Este é o segundo de cinco filmes que você quer fazer com base na autobiografia do seu amigo Anwar. O que a fez pensar que a história dele daria não apenas um, mas cinco filmes?
O texto era enorme, tinha cerca de 800 páginas. Anwar contou sobre sua vida desde a primeira lembrança até o momento em que estava escrevendo, quando tinha quase 40 anos. A história passa por diferentes períodos e lugares. Era um texto épico, e não achei que deveria espremer tudo em um filme só. Logo de cara, tive a impressão de que era uma história em cinco partes.
Especificamente no caso de O Orfanato, por que quis retratar esta parte da história de Anwar e este período da história do Afeganistão?
O período entre 1989 e 1992 é o mais político da história recente do Afeganistão, pois foi o momento em que a república se transformou em Estado islâmico. Muitos afegãos são nostálgicos em relação aos anos 1980. Algumas pessoas ficaram presas naquele tempo, e a minha geração, que não viveu o período, fica pensando sobre como era aquela vida. É maravilhoso e fascinante ver uma Cabul na qual mulheres e meninas lindas andam de minissaia e sem se cobrir. Queria retratar este último momento de alegria em Cabul antes da chegada dos mujahidins [guerrilheiros islâmicos], que levou a quatro anos de guerra civil e a cinco anos de regime Taleban. É o momento antes de Cabul ser reduzida a pó. Me senti muito próxima do protagonista, pois a guerra civil que começou no tempo dele continuou no meu tempo. As negociações de paz com os mujahidins, que falharam em 1992 após três anos, são muito similares às negociações de paz que ocorrem agora com o Taleban. A história está se repetindo. Então embora tenha nascido em 1991, me identifico muito com o período do filme.
Por que você quis incluir cenas e elementos que remetem aos filmes de Bollywood?
Na vida real, antes de ir para o orfanato, Anwar vendeu ingressos para filmes de Bollywood clandestinamente. Ele era fascinado pelos sonhos dos filmes de Bollywood e assistiu a tantos que aprendeu a falar a língua urdu. E não apenas ele! A Índia tem forte presença cultural no Afeganistão por meio do cinema e da música, há muito tempo e ainda hoje. Os afegãos assistem a muitos filmes de Bollywood e as canções indianas são frequentemente ouvidas em Cabul nos táxis, nos restaurantes, no zoológico, nos smartphones de quase todo mundo.
Tanto em O Orfanato quanto em Lobo e Ovelha você trabalha majoritariamente com não atores. Por que esta opção? O que eles trazem aos seus filmes?
Os dois filmes são sobre crianças e jovens, então minha única opção era escolher o elenco em escolas. O casting de O Orfanato, por exemplo, envolveu mais de 20 mil crianças. Acho a escolha do elenco tão importante quanto a filmagem. Se a escalação não é bem feita, o filme não funciona. As crianças são puras e talentosas, e gosto muito de trabalhar com elas. Talvez um dos motivos seja o fato de eu ser bem pequena fisicamente. Me sinto próxima das crianças e elas me aceitam muito facilmente.
“Os cineastas afegãos devem encontrar um modo de contar suas histórias em uma língua internacional. No momento, o Afeganistão é um clichê. Precisamos quebrar esse clichê e estabelecer uma imagem mais real do nosso país.”
O protagonista de O Orfanato, Quodratollah Qadiri, também atuou no seu filme anterior. Foi diferente trabalhar com ele, agora que está mais velho?
Foi! Na filmagem de Lobo e Ovelha ele tinha 11 anos, na de O Orfanato, tinha 15. Percebi que tinha se tornado uma pessoa diferente, e que não funcionaria repetir o mesmo processo. Ele estava muito mais consciente em relação a tudo. Devo confessar que não gostei tanto assim de trabalhar com ele no primeiro filme, pois ele era muito difícil e lento. Já na filmagem de O Orfanato, me pareceu muito esperto e paciente. Nunca reclamou de nada e sempre me ouviu com atenção, tentando fazer o seu melhor. Fui totalmente surpreendida, pois era como se ele fosse um ator profissional. Ele tem muito talento.
Você é uma diretora afegã que faz filmes sobre o Afeganistão, mas não os filma no Afeganistão e obtém financiamento na Europa. Como você navega por estas circunstâncias? É algo normal para você ou é um pouco como ser estrangeira em todos os lugares?
Fico muito feliz com esta pergunta, porque penso sobre isso o tempo todo. Acredito que meu cinema é verdadeiramente afegão, ou ao menos este é meu desejo e a minha intenção: fazer filmes verdadeiramente afegãos. Mas tenho que entrar no jogo do mercado para conseguir financiá-los. Às vezes é como se fingisse ser uma cineasta europeia, porque minha produtora é uma mulher alemã-dinamarquesa, fazemos a pós-produção na Europa, filmamos com equipe europeia e com dinheiro europeu. Meus filmes são feitos para plateias europeias porque não há indústria cinematográfica no Afeganistão – raramente consigo exibi-los no meu país. Mas meu jeito de contar histórias é novo para os europeus, porque eles estão acostumados a ver o Afeganistão pela lente de cineastas estrangeiros. Meus filmes são originais e surpreendentes, e às vezes podem não agradar. Ao mesmo tempo, sou considerada uma outsider na comunidade cinematográfica afegã. As pessoas de cinema do Afeganistão não costumam gostar dos meus filmes, que são muito reais. Estas pessoas não veem razão para mostrar a realidade no cinema e gostam principalmente de filmes B como são muitos dos longas de Bollywood. Penso que meus filmes podem ser o cinema afegão do futuro. Se tivermos um cinema afegão nos próximos 50 ou 60 anos, talvez meus filmes possam ser os primeiros da fila.
Você acredita que no futuro o Afeganistão poderá ter um cinema mais forte, com financiamento e apoio para que cineastas possam emergir e contar suas histórias no próprio país?
Sou uma pessoa otimista que está sempre tentando encontrar motivos para ter esperança. Acho que este é o único jeito de sobreviver. Vejo algumas tentativas, alguns movimentos lentos, mas o caminho é longo. Por enquanto, acho que os cineastas afegãos devem buscar coproduções e conexões com o mercado internacional. Se não há financiamento nacional, é preciso buscar fundos e bolsas lá fora. Os cineastas afegãos devem encontrar um modo de contar suas histórias em uma língua internacional. No momento, o Afeganistão é um clichê. Nós, cineastas locais, precisamos quebrar esse clichê e estabelecer uma imagem mais real do nosso país.
Como o filme foi recebido no Afeganistão?
Uma amiga abriu um pequeno cinema no andar de cima do seu café e me pediu para exibir o filme no dia da inauguração. As exibições duraram vários meses e muitas pessoas puderam assistir. Foram dias muito emocionantes para mim, e para outras pessoas também. Muitos disseram ter vivido pela primeira vez a experiência de ver um filme afegão em um cinema de Cabul. Depois das sessões fizemos longos debates e recebi diferentes retornos. Alguns adoraram, outros não gostaram, e outros gostaram apenas das músicas [risos].
Li entrevistas na qual você disse que o documentário Os Catadores e Eu, de Agnès Varda, teve um impacto muito grande em você. Que impacto foi esse?
Tinha 20 anos quando fui pela primeira vez a uma sala de cinema de verdade. O cinema era algo muito distante e eu não tinha o sonho de ser cineasta – isso seria um sonho até no sonho. Em 2009, participei do Atelier Varan, uma oficina de documentário que durou três meses e foi criada por franceses em Cabul. Foi a primeira vez que vi filmes de verdade, e foi lá que conheci o cinema de Agnès Varda. Quando vi Os Catadores e Eu, senti uma dor no estômago. Senti como se tivesse descoberto o que queria fazer. Pensei: “Sim, quero fazer filmes! Tenho histórias e quero contá-las!”. Foi um momento épico para mim.
Que conselho você daria às mulheres que querem trabalhar no cinema?
Nunca desista! Não importa o que aconteça, apenas siga em frente.
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema
Foto do topo: Aude de Cazenove/Contour by Getty Images