Foram diversas as motivações de quem começou algum tipo de projeto durante a pandemia: preencher as inesperadas horas livres que tinham de ser passadas dentro de casa, distrair-se da tristeza e do medo, registrar o momento histórico, tentar entender a realidade que parecia sair de um filme ou fazer algo de produtivo para afastar a ideia de que meses (anos?) estavam sendo desperdiçados em um tempo não vivido.
Vídeo: Veja o trailer de Vai e Vem, filme inspirado no cinema experimental feito por mulheres
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Todas essas sensações estão de alguma forma presentes em Vai e Vem, documentário que estreou nesta quinta-feira (16) nos cinemas. O filme é, essencialmente, um “projeto da pandemia” realizado em conjunto pela cineasta brasileira Fernanda Pessoa, de Histórias que Nosso Cinema (não) Contava (2017) e Zona Árida (2019), e a diretora brasileiro-mexicana Chica Barbosa, de La Flaca (2018).
Em 2020, quando a pandemia estourou, Fernanda vivia em São Paulo (SP) e Chica acabara de imigrar para Los Angeles, nos Estados Unidos. Das conversas sobre a situação dos dois países surgiu a ideia de um experimento: trocar vídeo-cartas a partir da leitura de Women’s Experimental Cinema, obra organizada pela professora americana Robin Blaetz que reúne artigos sobre o trabalho das mulheres no cinema experimental. Segundo as regras estabelecidas pela dupla, cada carta deveria ter no máximo seis minutos, ser realizada em um prazo de até três semanas e buscar inspiração no trabalho de uma das artistas citada pelo livro.
Para incluir mais cineastas negras e latino-americanas, Chica e Fernanda substituíram quatro nomes da lista de Blaetz pelos de diretoras que encontraram em sua própria pesquisa. A partir da quarta carta trocada, decidiram abrir a correspondência a outros espectadores, primeiro no curta-metragem Igual/Diferente/Ambas/Nenhuma, lançado ainda em 2020, e, agora, em Vai e Vem.
Quando foi exibido em festivais, o longa reunia dezesseis cartas, mas duas foram retiradas da versão que está em cartaz nos cinemas por questões relativas a direitos autorais. As catorze que ficaram foram inspiradas pelas cineastas Abigail Child, Carolee Schneemann (1939-2019), Cheryl Dunye, Chick Strand (1931-2009), Gunvor Nelson, Joyce Wieland (1930-1998), Leslie Thornton, Marjorie Keller (1950-1994), Marie Menken (1909-1970), Narcisa Hirsch, Paula Gaitán, Ximena Cuevas, Yvonne Rainer e Zeinabu Irene Davis.
Em entrevista ao Mulher no Cinema, Chica e Fernanda falaram sobre a experiência de fazer o filme e mergulhar no trabalho de outras diretoras. Assista ou leia abaixo:
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Vocês começaram este projeto como uma troca de vídeo-cartas apenas entre vocês, e no meio do caminho decidiram fazer um filme. A partir do momento em que passam a ter este propósito, algo se altera na feitura das cartas, que agora serão compartilhadas com outras pessoas?
Fernanda Pessoa: Acho que no começo a gente não sabia que aquilo era um filme, mas intuía que pudesse virar algo. Gostaríamos que fosse para o mundo, só não sabíamos se fazia sentido. A partir da quarta carta, quando a gente faz o curta e ele é exibido em festivais, é que o filme realmente vira um filme: entra a [produtora] Jessica Luz da Vulcana Filmes, vamos para laboratórios etc. Mesmo assim, continuamos nos propondo a não abrir concessões, a não tornar o filme menos experimental ou menos pessoal. Depois, quando já tínhamos todas as cartas e começamos a montar, foi quando vimos aquilo como conjunto. E aí começamos a pensar: “isto aqui só faz sentido para a gente”, “isto não conta uma história”, “isto vai para muitos lugares ao mesmo tempo”. A gente fez um trabalho de entender como deixar aquilo com uma linha um pouco mais narrativa, de pensar os “arcos” da gente como autopersonagens. Mas esse trabalho foi feito depois. Durante a troca, nos mantivemos muito fiéis ao que era o projeto e à vontade de se comunicar e de experimentar.
Chica Barbosa: Sempre foi importante manter a liberdade criativa, nos sentirmos livres para expressar o que queríamos em cada carta. O interessante do processo de transformá-las no longa foi pensar as transições de uma carta para a outra. Aí foi o momento de pensamento conjunto das duas. Como a gente junta sua carta com a minha? Qual transição nos conecta? A gente não podia perder o diálogo. Era preciso manter um diálogo constante de uma carta para outra, para que houvesse uma jornada mesmo, uma trajetória ao longo delas.
Vocês se inspiraram no livro organizado pela Robin Blaetz, mas substituíram quatro cineastas por outras que vocês mesmas escolheram. Falem um pouco sobre essa troca.
Chica: Foi uma decisão muito importante. Percebemos que a lista de 16 nomes [que estão no livro] era muito focada na vanguarda norte-americana, e muito eurocentrista também. Só havia uma mulher negra, a Cheryl Dunye, e nenhuma latino-americana. Pensamos: “Nós duas somos latino-americanas e não vai ter nenhuma latino-americanas?”. Foi uma boa provocação para para mudarmos a teoria e torná-la mais inclusiva.
Fernanda: E foi uma pesquisa difícil também, porque aí começamos a nos deparar com a falta de bibliografia. Antes tínhamos um livro que estava guiando nosso olhar e nosso recorte. De repente tivemos de começar a pesquisar onde íamos achar [esses outros nomes] e em que textos íamos nos pautar.
Como foi o processo de buscar os filmes de todas essas diretoras? Me lembro de a Fernanda contar sobre a saga que foi para achar cópias das pornochanchadas brasileiras durante a realização de Histórias que o Nosso Cinema (Não) Contava. Como foi desta vez?
Fernanda: Eles [os filmes das cineastas experimentais] estão mais preservados do que as pornochanchadas [risos] Porque também a gente está falando de mulheres mais canônicas, não entramos nas cineastas superoitistas que não têm nada preservado. São nomes razoavelmente conhecidos dentro do cinema experimental, apesar de muita gente que assiste ao filme nunca ter ouvido falar delas, assim como a gente nunca tinha ouvido falar. Mas a Narcisa, por exemplo, tem a Filmoteca Narcisa Hirsch, no qual preserva todos os filmes dela. E há distribuidoras de cinema experimental também, como a Light Cone.
Chica: Em alguns casos, como no da Marjorie Keller, entrávamos em contato [com a distribuidora] e explicávamos o projeto, dizíamos que éramos latino-americanas, que eu era imigrante [nos Estados Unidos], porque alugar os filmes tem um custo também. E houve casos com o da Paula [Gaitán], que foi muito generosa e compartilhou todos os filmes com a gente, e da Ximena [Cuevas] que tem um desprendimento muito grande da lógica [convencional] de distribuição e coloca todas as obras na plataforma dela. Então tentamos de tudo.
Fernanda: E o que é legal é que os filmes estão preservados e em boa qualidade. Quem fizer a pesquisa, consegue achar. Mas tem de fazer a pesquisa.
Vai e Vem faz referência a filmes que a maior parte das pessoas não assistiu e a diretoras que a maioria das pessoas não conhece, sem buscar dar grandes explicações. Não aparece, por exemplo, um texto dizendo que aquela cena que estamos vendo é de The Watermelon Woman da Cheryl Dunye ou dando informações sobre ela. Falem um pouco sobre como trabalharam esta questão da referência, ou seja, de fazer um filme que é inspirado nestas cineastas, mas não é sobre elas, e que busca instigar as pessoas a ver o trabalho delas sem ser didático.
Chica: Acho que partiu [do desejo] de fazer uma homenagem também. Ficamos realmente muito encantadas com a diversidade e a autoria de cada uma, porque são artistas com perfis muito diferentes uma da outra. Mas não queríamos que fosse um filme didático no sentido de mostrar: “essa foi a referência e foi assim que eu apliquei”. A proposta era mesmo criar um diálogo fílmico entre eu e a Fernanda partindo de outras referências. Nos conhecemos em 2015 e já falávamos muito sobre sermos mulheres em um ambiente majoritariamente masculino. O filme também veio de uma vontade de se rodear de referências femininas, de se inspirar nessas referências e fazer um convite para [o espectador] conhecer o trabalho delas. Por isso colocamos uma cartela no começo do filme com os nomes de todas elas: porque fazemos questão de deixar claro de onde veio a inspiração.
Fernanda: E essa cartela dá uma ferramenta para o espectador. Se ele conhece um nome que está ali, talvez fique tentando entender qual é [a carta inspirada naquela cineasta]. Isto o deixa em posição ativa. A gente diz: “Este é o jogo, estas são as regras, agora entre nesse jogo com a gente”. Não poderíamos fazer um filme a partir do trabalho de cineastas experimentais que fosse muito tradicional e explicativo. A questão é justamente que o espectador vá construindo. E se ele não souber quem é quem, não tem problema também. Não atrapalha a narrativa não saber qual cineasta [está sendo referenciada], não saber que aqui é a Cheryl Dunye, aqui é a Ximena Cuevas e aqui é a Marjorie Keller. Mas acho que desperta a curiosidade de a pessoa ir atrás depois. Por exemplo, se gostou muito de uma determinada carta, tem de voltar no filme, ver a cartela, ver a ordem, descobrir qual é…Montar o quebra-cabeça, né? Damos elementos para o espectador ir descobrindo junto.
A desigualdade de gênero no cinema está muito ligada à questão financeira, de acesso a recursos. Há vários exemplos disso, como o fato de as mulheres terem sido muito presentes no início do cinema, mas terem perdido espaço no momento em que ele começou a ser indústria. Ou o fato de as mulheres estarem mais presentes no documentário do que na ficção. Ou o fato de até as cinematografias mais igualitárias, como a da Suécia, reservarem grandes orçamentos para os homens. Sendo o cinema experimental menos comercial e menos parte desta grande indústria, a desigualdade é um pouco menor? O que vocês descobriram nesse sentido?
Fernanda: Há uma grande produção de mulheres, mas elas são muito menos reconhecidas. É um cinema mais barato e mais acessível do que o cinema hegemônico, e no qual há a tradição do home made movie, os filmes caseiros, nos quais as mulheres olham muito para o ambiente doméstico, que foi um dos nossos grandes temas também. Quando começamos o projeto, estávamos trancadas em casa [por causa da pandemia] vendo aquelas mulheres que não estavam trancadas em casa, mas tinham o espaço da casa como um assunto de grande interesse, porque é o espaço que a sociedade dá às mulheres. Essa subversão do espaço doméstico, assim como essa forma de produção entre amigos e familiares, que também é muito comum no cinema experimental, faz com que tenha muita mulher e muita produção. Mas os grandes cânones são homens. Ouvimos falar de uma ou outra mulher, como a Maya Deren (1917-1961), mas o problema do menor reconhecimento continua igual.
Chica: É curioso porque você vê mulheres com três, quatro décadas de produção e de trajetória, mas que só são reconhecidas quando estão com 80, 90 anos, que estão sendo reconhecidas só agora. A Narcisa é um exemplo. Participei de uma exibição na qual ela enviou uma mensagem dizendo: “só agora estão fazendo retrospectiva do meu trabalho”. Ela está super velhinha [95 anos], tem um acervo gigantesco…Então também passa por aí.
Vocês mergulharam na obra destas cineastas em um momento de muita limitação e dificuldade para profissionais do cinema, pela pandemia e pelo desmonte cultural promovido pelo governo de Jair Bolsonaro. Ver o trabalho destas cineastas, que muitas vezes realizaram seus filmes sem grandes recursos ou apoio institucional, apontou alguns possíveis caminhos para continuar realizando mesmo quando o cenário é desfavorável?
Fernanda: Totalmente!
Chica: Acho que esse momento criou o convite para uma radicalização da forma, para trazer outras narrativas e explorar possibilidades. Naquele momento de caos social e político, não tinha outro jeito. Então sentimos esse chamado de radicalizar. O filme seguiu um pouco essa linha: estamos limitadas, não temos apoio, mas vamos com o que dá, com a câmera que tiver, com o celular se for possível, com as pecinhas que formos encontrando. Pensamos muito nisso: diante das adversidades, que alternativas achamos?
Fernanda: E as cineastas indicaram muitos caminhos. Quando a gente não sabia como resolver formalmente alguma coisa, as soluções estavam ali. Foi legal nos inspirarmos formalmente nelas para ver que a criatividade é inesgotável. A gente vê que existe muito além do cinemão, das formas hegemônicas. Existem muitas possibilidades de montagem, de formas de filmar, de formas de montar um quadro. A gente estava presa dentro de casa e via a Joyce Wieland fazer uma alegoria sobre a revolução com gatos e ratos dentro da casa dela, ou a Marie Menken fazendo stop motion na banheira. Tudo podia ser inspiração, tudo acabava virando alguma coisa. Fomos muito inspiradas por essa criatividade que ensina a procurar outras soluções. Não precisa ser tudo tão controlado, com tanto dinheiro e tanta estrutura. Às vezes, as soluções mais criativas estão em casa mesmo.
Em se tratando de um filme que é tão ligado ao momento em que ele foi feito, como veem o momento da estreia, que ocorre três anos depois?
Chica: É interessante rever esse filme agora e processar aquele ano de outra forma. O filme é um retrato desses dois países, dessas duas cidades, nesses dois governos. Aquela sensação de medo, incerteza e luto está em um outro momento, o bolsonarismo e o trumpismo estão em outro momento. Mas a minha última carta, por exemplo, mostra a eleição do [Joe] Biden nos Estados Unidos, e eu não termino tão otimista de que o mundo vai ser maravilhoso depois disso. Rever esse filme agora, entendendo melhor o país e vendo as contradições que vieram à tona novamente, principalmente nos tempos de guerra que estamos…acho que o filme nos faz pensar sobre a importância de não esquecer esse passado, porque ele não está tão longe de se repetir. Podemos revisitar aquele momento com outro olhar e, talvez, com outro pensamento sobre um futuro possível.
Gostaria que cada uma de vocês destacasse, entre todas as diretoras que pesquisaram, aquela que gostariam que mais gente conhecesse.
Fernanda: Vou destacar uma das diretoras que não está no filme, a Peggy Ahwesh. Na versão que foi para festivais tínhamos 16 diretoras, mas para o lançamento comercial, por questão de direitos autorais, tivemos de tirar uma das minhas cartas, e portanto uma das cartas da Chica, para dar o ciclo completo. Então tive que tirar a Peggy Ahwesh, uma cineasta que está viva, é super importante, super ousada e sobre quem gostei muito de pesquisar. A carta [inspirada no trabalho dela] era meio polêmica. As pessoas ou amavam ou odiavam, porque eu fazia um comentário sobre capitalismo a partir de um jogo de computador. Tivemos de tirar por causa do jogo, mas a Peggy é uma cineasta que vale a pena conhecer.
Chica: Eu vou escolher a Abigail Child, uma cineasta que ressoou muito em mim. Ela tem dois trabalhos incríveis de trilogias, e em todos os seus filmes faz uma análise muito interessante sobre as contradições dos Estados Unidos. Essa contradição da liberdade, do país das possibilidades. Ela aborda muitas questões, como o conservadorismo e os subúrbios. E se você entende o subúrbio dos Estados Unidos, entende muito sobre tudo o que está errado. Então indicaria ela, que está super ativa e inclusive lançou um longa no ano passado. Ela anda tendo maior reconhecimento e dá para alugar seus filmes no video on demand.
Que conselho vocês dariam para as mulheres que querem trabalhar no cinema?
Chica: Eu diria para não abrir concessão. Principalmente nesse momento, em que há um apoio muito maior entre mulheres, em que as mulheres estão se abraçando, se puxando e se enaltecendo, não é o momento de abrir concessões. É o momento de colocar o pé na porta e ir.
Fernanda: Eu vou dar três. Uma é buscar comunidades entre mulheres, trabalhar com mulheres, criar com mulheres. Amizade entre mulheres e criação entre mulheres é muito libertador. A outra é meio objetiva: não peguem o sobrenome do marido. Não troquem o sobrenome, porque a gente já viu que isso dá problema depois. E a outra é uma coisa que aprendi estudando a Narcisa Hirsch e a Vivian Ostrovsky, que são muito arquivistas de si mesmas. Elas têm todos os filmes dela, os sites delas são incríveis, têm [informações sobre] todos os festivais onde passaram, toda a história, tudo o que produziram de instalações, de tudo. Acho que elas mantêm esse registro da produção delas porque entenderam que, se não fizerem isso, talvez demore muito para alguém fazer, e talvez quando fizerem já esteja perdido. Então preservem suas obras e registrem tudo.
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema
Foto do topo: Alex Gonçalves