O que os filmes da pornochanchada têm a dizer sobre os anos de ditadura militar? Para muitos, o gênero cinematográfico mais produzido e assistido no Brasil na década de 1970 nada mais foi do que uma diversão escapista de qualidade no mínimo questionável. Mas não para a diretora Fernanda Pessoa, que chega às salas nesta quinta-feira (23) com o documentário Histórias que Nosso Cinema (não) Contava, seu primeiro longa-metragem.
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Fernanda propõe algo oposto ao público: encarar a pornochanchada como documento histórico. Seu documentário de montagem dispensa entrevistas e narração em off e utiliza apenas imagens e sons de 27 filmes do gênero, focando especialmente na década de 1970. Ao associar os clipes uns aos outros, revisita alguns dos principais temas da época, como o milagre econômico, a repressão do Estado e a luta armada. “Foi um trabalho de quebra-cabeça mesmo, de ir encaixando e vendo o que funcionava”, contou, em entrevista ao Mulher no Cinema.
Fernanda se interessou pela pornochanchada trabalhando na filmoteca da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), onde estudou. Catalogando fotografias do cinema brasileiro, muitas delas dos anos 1970, começou a procurar os longas para entender melhor as imagens. Uma produção foi especialmente marcante: E Agora José? (Tortura do Sexo), dirigido por Ody Fraga e lançado em 1979. “Este título condensa tudo o que está ali: é um filme politizado, mas que erotiza a tortura; que tem a encenação da morte do Vladimir Herzog, mas com a versão oficial. É um filme com todas as contradições que o gênero tem para mim”, contou. “Fiquei com isso na cabeça: como é possível que a gente não fale sobre esse filme?”
Decidida a lançar olhar histórico sobre a pornochanchada, ela passou de dois a três anos assistindo a cerca de 150 filmes. Para isso, teve de garimpar em busca das cópias, muitas delas em baixa qualidade, que fazem de Histórias um retrato do descaso brasileiro em relação à preservação cinematográfica.
Outro tema muito presente no documentário é a representação feminina, já que a pornochanchada é reconhecida pela objetificação e hipersexualização das mulheres. Ao mesmo tempo, Histórias mostra que algumas personagens destoavam da regra geral, como a jovem que quer abortar ou o grupo de prostitutas que decide fazer greve. “A grande maioria dos filmes é super machista, mas alguns têm personagens femininas com uma autoconsciência enorme, que sabem exatamente qual o lugar delas ou que estão se rebelando contra o papel imposto”, afirmou a diretora. Leia os principais trechos da entrevista ou assista na íntegra:
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A pornochanchada é em geral encarada como diversão escapista, que serviu de distração durante a ditadura. O seu filme vai na linha contrária e a vê como documento histórico. O que motivou esta abordagem?
O processo começou quando trabalhava na filmoteca da FAAP catalogando fotografias do cinema brasileiro, grande parte delas do acervo do Máximo Barro, montador de vários filmes da década de 1970. Comecei a tentar encontrar estes filmes para entender [melhor as imagens]. O longa que realmente me mostrou que tinha alguma coisa que a gente não estava vendo foi E Agora José? (Tortura do Sexo), do Ody Fraga. Este título condensa tudo o que está ali: é um filme politizado, mas que erotiza a tortura; que tem a encenação da morte do Vladimir Herzog (1937-1975), mas com a versão oficial, de que ele teria se matado. É um filme com todas as contradições que esse gênero tem para mim. Fiquei com isso na cabeça: como é possível que a gente não fale sobre esse filme? Por mais que ele tenha problemas e representações complicadas da tortura, é super importante. Em 2012 fui fazer mestrado na França e tive uma aula sobre reutilização de imagens do cinema experimental. Ali entendi que com um olhar histórico talvez esses filmes me ensinassem algo sobre a ditadura.
O filme aborda tortura, milagre econômico, censura e outras questões relevantes da época. Você elencou os temas conforme assistia ou buscou filmes sobre tópicos que queria abordar?
Não predeterminei os temas, queria que os filmes me contassem. Quando comecei, não pensei que o milagre econômico fosse ser um tema tão grande. De repente vi que estava ali com muita força. Assisti a 150 filmes e selecionei cerca de 20 para decupar. Anotava tudo, minutagem, o que tinham de interessante. Eu e o [montador] Luiz Cruz cortamos esses filmes, picotamos mesmo, e fomos colocando em timelines diferentes, dividindo por eixo temático: milagre econômico, repressão e tortura, representação feminina, mudança de costumes. Fomos fazendo o trabalho de montagem a partir dessas timelines, que são os eixos temáticos do filme. Foi um trabalho de quebra-cabeça mesmo, de ir encaixando e vendo o que funciona.
“Grande parte dos filmes tem uma representação muito complicada das mulheres, que objetifica, que as transforma em metáfora do projeto de Brasil, de milagre econômico. As mulheres são sempre comparadas aos grandes empreendimentos da ditadura ou têm o poder de troca: os homens têm o poder do dinheiro, as mulheres têm o sexo.”
Todos os 27 filmes que você usou são dirigidos por homens. Como foi a experiência de ser uma cineasta mulher observando o olhar dos cineastas homens sobre as mulheres?
A questão da representação feminina foi uma das mais presentes e mais fortes da pesquisa. Grande parte dos filmes tem uma representação muito complicada das mulheres, que objetifica, que as transforma em metáfora de projeto de Brasil, de milagre econômico. As mulheres são sempre comparadas aos grandes empreendimentos da ditadura – Ponte Rio-Niterói, Transamazônica – ou têm o poder de troca: os homens têm o poder do dinheiro, as mulheres têm o sexo que podem dar em troca. Nas pornochanchadas mais clássicas há muitos estereótipos: a virgem, o corno, a empregada – que geralmente é uma mulher negra super sexualizada que está a disposição do patrão. De vez em quando algo sai um pouco [do padrão]: por exemplo, a boazinha é a prostituta, e não a mulher virgem e pura. Estas inversões de papéis me deixavam confusa, pois estamos acostumados a ver tudo preto no branco. A grande maioria dos filmes é super machista, mas alguns têm personagens femininas com autoconsciência enorme, que sabem exatamente qual o lugar delas ou que estão se rebelando contra o papel imposto. Eles já estavam discutindo o aborto e a regularização do trabalho das prostitutas.
Você não acha que muitas dessas representações problemáticas que são criticadas na pornochanchada se estendem aos outros gêneros? A empregada negra e sexy e a mulher objeto, por exemplo, estão em muitos outros filmes.
Com certeza. Muitos filmes e novelas continuam reproduzindo papéis que a pornochanchada deixava para mulheres, negros e homossexuais. Os homens gays eram sempre alívios cômicos, personagens ridículos, algo que a gente ainda vê muito nas novelas e filmes da Globo. Várias heranças ainda estão aí.
Seu filme também levanta a questão da preservação ao mostrar o valor histórico de obras que, em alguns casos, estão bastante deterioradas. Como foi o processo de busca das cópias?
Há uma diferença enorme de qualidade de preservação nos 27 filmes. Em um dos casos, usamos uma cópia de mp4 que achamos no YouTube. Tivemos de fazer a escolha: usar essa cópia ou tirar [o filme da lista de selecionados]? Eu falei que tinha de deixar, porque isso também é um testemunho da história da preservação no Brasil. Muitos filmes estão perdidos, a Cinemateca está em crise há um bom tempo…Se os grandes clássicos não estão sendo preservados, é ainda mais difícil no caso [da pornochanchada], que não é reconhecida como clássico ou como importante. Muitos produtores da época não sabem onde estão os filmes. Foi trabalho de garimpo, alguns a gente não achou. Foi um trabalho mais difícil do que a própria montagem. Com o digital, será criado um novo problema, pois os arquivos têm vida menor.
“Em um dos casos, usamos uma cópia que achamos no YouTube. Tivemos de fazer a escolha: usar ou tirar? Eu falei que tinha de deixar, porque isso também é um testemunho da história da preservação no Brasil. Muitos filmes estão perdidos, a Cinemateca está em crise há um bom tempo. Se os grandes clássicos não estão sendo preservados, é ainda mais difícil no caso da pornochanchada, que não é reconhecida como importante.”
Em geral, existe um distanciamento muito grande das gerações mais jovens em relação ao período da ditadura militar. O cinema pode ajudar a encurtar esta distância?
Quando comecei o projeto, sentia falta de filmografia sobre a ditadura. Tivemos muitos filmes sobre a guerrilha, a resistência e a tortura, que acho super importantes. Mas sinto falta de entender como as coisas funcionavam. O que foi o milagre econômico? Não quero só ler um texto, quero ver o que era. O cinema é um jeito de fazer isso, de se conectar com o passado de forma mais divertida, não necessariamente tendo que ir a uma aula, ler um livro de história. Na verdade, fui muito motivada por isso: sentia que na pornochanchada talvez conseguisse encontrar os temas que sentia falta de ver encenados. Em 2014, com os 50 anos do golpe, surgiram outros filmes. Mas a gente tem de falar muito sobre o assunto, porque estamos vendo que a história se repete. Muita gente assiste ao meu filme e fala que quase nada mudou. Precisamos conhecer a história, seja boa ou ruim, ter a noção de como a vida era e de como ainda nos influencia.
O documentário é uma área em que as diretoras têm presença maior do que na ficção, tanto no Brasil quanto em vários outros países. Você acha que isso está relacionado apenas ao custo menor do formato, ou há outros fatores?
Esses dados sempre me surpreendem. Acho que sim, tem a ver com custo, com o fato de ser um pouco mais fácil entrar no mercado do documentário. São menos pessoas, você consegue fazer mais na raça, exige menos estrutura. Mas também sinto que as mulheres que estão fazendo cinema têm um engajamento maior talvez, e o documentário parece ser um lugar em que essa reflexão e a tentativa de mudar algo na sociedade é mais forte.
Que conselho você daria para as mulheres que querem trabalhar no cinema?
Não aceitar “não”. Ou melhor, aceita o não, respira fundo e vai. A gente tem de continuar sempre, ser teimosa, ir atrás mesmo. Também quero cada vez mais trabalhar com mulheres nas minhas equipes. É importante abrir portas. O mercado é muito difícil, é cruel. A gente tem de estar aí, sem dar para trás, empurrando as portas mesmo.
Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema