Sandra Kogut: “Sempre vai haver um jeito de fazer cinema”

Tudo estava preparado para que Três Verões, terceiro longa de ficção dirigido por Sandra Kogut, chegasse aos cinemas brasileiros em 19 de março. O filme tinha feito sua estreia mundial em um festival internacional importante (o de Toronto, no Canadá) e sido selecionado por festivais brasileiros. A diretora passara um dia inteiro atendendo a imprensa em São Paulo (SP). As pré-estreias com debate estavam acontecendo em várias cidades. A campanha de divulgação estava na rua e o timing era perfeito: Regina Casé, a protagonista do filme, era um dos principais destaques da novela Amor de Mãe.

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Até que rapidamente tudo mudou. Em 13 de março, apenas seis dias antes da estreia, Três Verões teve seu lançamento adiado indefinidamente. O motivo, é claro, foi a pandemia do novo coronavírus (Covid-19), e nos dias seguintes outros filmes fariam anúncios similares, conforme as próprias salas de cinema começaram a fechar suas portas por um período que ninguém sabia quanto iria durar.

Cinco meses depois, finalmente chegou a hora de o público poder assistir a Três Verões – e direto de casa. Como a crise de saúde continua, Kogut e a distribuidora Vitrine Filmes decidiram não esperar a reabertura das salas: a partir de 16 de setembro, o longa poderá ser visto nos seis canais do Telecine e também em seu serviço de streaming (em outras plataformas, Três Verões estará disponível para aluguel). Em comunicado, o diretor da Vitrine, Felipe Lopes, disse que a parceria com o Telecine permitiu que a distribuidora “repensasse como atingir um grande público e garantir um lançamento forte”. Por sua vez, o diretor de conteúdo e aquisições do Telecine, Sóvero Pereira, disse que a expansão para outras plataformas permite que os filmes tenham “a visibilidade que os realizadores, os talentos e o público merecem” mesmo num cenário de salas fechadas. 

Para Sandra Kogut, Três Verões é um filme emblemático por ter passado por diferentes momentos da era Covid-19: teve o lançamento adiado às vésperas da estreia, foi para os cinemas nos países que controlaram o vírus, passou por drive-ins brasileiros e, agora, chega ao streaming. “Três Verões fala sobre como você se reinventa quando tudo desmorona, sobre como você tem de quebrar a cabeça e achar soluções”, afirmou Kogut, em entrevista por Skype ao Mulher no Cinema. “É um filme sobre decepção e esperança, até no lançamento.”

Cena do filme “Três Verões”, dirigido por Sandra Kogut – Crédito: Divulgação

Três Verões segue um formato episódico: a ação se passa em três verões consecutivos (em 2015, 2016 e 2017), sempre na semana entre o Natal e o Reveillón e sempre na mesma luxuosa casa de veraneio na região de Angra dos Reis. Não se tratam de três anos quaisquer, mas de um período extremamente movimentado para a política brasileira, marcado pelas revelações e prisões da Operação Lava Jato. Kogut retrata este momento histórico pelo olhar da caseira Madá (Regina Casé), que trabalha para um casal envolvido nos escândalos de corrupção. 

A decisão de colocar Madá no centro da história foi motivada por uma curiosidade da própria diretora: quando os ricos e poderosos são presos ou investigados, o que acontece com as pessoas que estão ao seu redor? Diretora de filmes como Mutum (2007) e Casa Grande (2015), Kogut também queria criticar a sociedade brasileira neoliberal e “esse projeto de país em que é cada um por si, o coletivo sumiu e você tem de se virar”. “No filme, todo mundo fala de dinheiro o tempo todo, tanto os ricos quanto os pobres, seja por ganância ou desespero”, afirmou a cineasta. “Na progressão dos verões, tudo vai cada vez mais se transformando em mercadoria.”

Leia os principais trechos da entrevista com Sandra Kogut:

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Como começou o projeto e o que te fez querer contar esta história?
Estava trabalhando em outro filme, mas o deixei de lado para fazer Três Verões porque queria muito falar do momento que estávamos vivendo no Brasil em 2016 e 2017. O país inteiro assistia aos escândalos de corrupção e às prisões quase como se acompanhasse uma novela. Me deu vontade de falar sobre isso, mas principalmente sobre as pessoas que estavam em volta dos ricos e poderosos. Eu me perguntava: o que acontece com essas pessoas? A gente nunca ouvia falar delas: eram figurantes, invisíveis, estavam foram de quadro. Tinha uma curiosidade genuína em relação a esses personagens invisíveis, e quis retratar o momento do Brasil a partir deles. Existe uma espécie de senso comum, principalmente no caso do documentário, que diz que você não deve falar de algo que ainda está acontecendo, porque não há distância. Mas acho o contrário: foi muito bom falar de algo que estava acontecendo. Estávamos sempre sendo lembrados de que havia algo maior do que o filme, e que alimentava o filme. Por exemplo, enquanto procurávamos a locação, vimos cenas parecidas com a que acontece no barco [nesta cena, Madá guia turistas por um condomínio de luxo, apontando as casas dos envolvidos em esquemas de corrupção]. De certa maneira, o próprio fazer do filme dialogou com a realidade.

A casa de veraneio de “Três Verões”: quase toda a ação do filme se passa na mesma locação – Crédito: Divulgação

Falando na locação, quase toda a ação se passa na mesma casa de veraneio. Que casa é aquela e como foi filmar praticamente em um só lugar?
Queria que a equipe morasse na locação durante toda a filmagem, mas como tínhamos pouco tempo e pouco dinheiro, não foi possível fazer isso. No filme, a casa fica em um desses condomínios em Angra dos Reis, mas na verdade fizemos uma composição – a casa fica em um lugar e os exteriores, em outro. Sou bastante ligada ao espaço: meus filmes sempre têm uma geografia muito presente, que às vezes é emocional e interna, mas que também se traduz materialmente. A casa do Três Verões de certa forma é o Brasil. Há uma distribuição do território: as áreas dos empregados, as áreas nobres dos patrões, toda uma divisão que vai mudando e que traduz as relações como se dão no país. Além disso, há muito tempo queria fazer um filme que se passasse em uma casa secundária, onde os donos não moram, para que a gente só visse a história dessa família quando eles fossem à casa. Isso se encaixava muito bem na proposta de Três Verões, porque a grande história – ou seja, a do escândalo político e a do cara que é preso – não é a história do filme. Ela está ao fundo, mas fora do quadro, e não é preciso contá-la. Por fim, havia a estrutura episódica do filme, de se passar sempre na última semana do ano, durante três anos seguidos. Estar sempre na mesma casa ajuda a criar essa repetição, essa relação cíclica com o tempo, deixando mais evidente o que mudou e o que não mudou. 

Em vários de seus filmes você buscou mesclar elementos de ficção e documentário – por exemplo, trabalhando com elenco formado por não atores que não tinham acesso ao roteiro. Em Três Verões os atores são profissionais e havia uma maior restrição de tempo e orçamento. Seu processo mudou ou continuou o mesmo dos trabalhos anteriores?
Foi diferente em vários aspectos, mas não totalmente, porque a gente é quem a gente é. Quando tive a possibilidade de escolher, sempre escolhi ter tempo. Em Campo Grande, por exemplo, os atores não tinham plano de filmagem: todo mundo tinha de ir ao set todos os dias, independente de ter cena para fazer. E de fato, ninguém lia o roteiro. Em Três Verões foi o contrário: tínhamos pouco tempo, pouco dinheiro e precisávamos combinar as agendas de muitos atores. Fiz coisas que nunca tinha feito antes, como leituras do texto, mas tudo dentro do meu jeito de fazer, que é tentar criar uma situação maior do que a própria cena. Fui inventando coisas para compensar as limitações. Por exemplo, pedi que a Gisele Fróes e o Daniel Rangel, que interpretam mãe e filho, passassem um fim de semana juntos, fossem à praia, tomassem sorvete. Uma espécie de laboratório express [risos]. Em muitos momentos os atores não sabiam se eu estava filmando ou não, e às vezes eu falava uma coisa para um ator e outra coisa para outro, para ninguém saber direito o que estava acontecendo. Para a cena do amigo oculto, por exemplo, fizemos um amigo oculto de verdade. Ao invés de usarmos figurantes, convidamos amigos do elenco para participar. Na brincadeira, alguns atores tinham determinadas falas, mas outros não sabiam se o que estava sendo dito estava ou não no roteiro. Foram formas que encontrei para criar situações que saíssem do que estava planejado. Para o cinema ficar duro e frio, é muito fácil. Gosto de trabalhar de uma maneira na qual a gente constrói, constrói, constrói e de repente uma mágica acontece e aquilo fica maior do que nós. No fim, fazer um filme é isso: criar um mundo.

A diretora Sandra Kogut no set de “Três Verões” – Crédito: Divulgação

Houve muitas comparações entre Três Verões e Que Horas Ela Volta?, pelo fato de ambos os filmes abordarem relações de classe no Brasil e serem estrelados pela mesma atriz. Você teve algum receio em escalar a Regina pela possibilidade de o público fazer esta associação?
Imaginei que a comparação pudesse acontecer, mas também sabia que assim que as pessoas assistissem ao filme, veriam que as personagens são totalmente diferentes. Madá é uma personagem entre dois mundos: ao mesmo tempo em que é empregada dos patrões, é patroa dos empregados. Isso também era importante, porque o filme está falando do Brasil neoliberal, desse projeto de país em que é cada um por si, o coletivo sumiu, você tem de se virar e todo mundo quer ser padrão. Para falar disso, era preciso ter um personagem emblemático. Além disso, a Regina é uma amiga de muitos anos, já trabalhamos várias vezes juntas. Em 1995 fizemos o curta Lá e Cá e desde então falávamos em fazer um longa, mas nunca tive um personagem que parecia ser para ela. A Madá parecia, e acho que foi a hora certa. O filme também se beneficiou da nossa relação: já existia uma confiança mútua entre nós que não teríamos tempo de construir.

Alguns dos comentários mais ofensivos que ouvimos em Três Verões são feitos não pela família rica, mas, sim, por uma equipe de filmagem que usa a casa para rodar um comercial. Gostaria que você comentasse este último ato do filme. Por que incluir a equipe e a peça publicitária?
Os ricos também falam muitas barbaridades no filme. E embora exista uma divisão muito clara entre ricos e pobres, era importante que ninguém fosse apenas um tipo. Era importante que os personagens fossem seres humanos, fossem complexos, tivessem muitos lados e que ninguém fosse santo. Isso já fez com que tudo caminhasse para um determinado lugar. Como o filme aborda e critica a sociedade neoliberal, todo mundo fala de dinheiro o tempo todo, tanto os ricos quanto os pobres, seja por ganância ou desespero. Em uma sociedade neoliberal, a linguagem é essa. E na progressão dos verões, tudo vai cada vez mais se transformando em mercadoria. A certa altura, o próprio Natal é mercadoria: tudo é uma potencial forma de ganhar dinheiro. O terceiro verão é mais um andar nessa escadinha. Ao mesmo tempo, há várias camadas ali. [Ao inserir uma equipe de filmagem] você está rindo um pouco de si mesmo. Há uma ironia e um comentário sobre a ideia de representação e o modo como jogamos com os símbolos. É uma forma de dizer: isso está em todos os lugares.

Cena do filme “Três Verões”, dirigido por Sandra Kogut

A campanha de divulgação do filme já estava na rua quando se tomou a decisão de suspender o lançamento nos cinemas. Gostaria de saber mais sobre o segundo momento de decisão, quando se optou por não esperar a reabertura das salas. Por que estrear direto no streaming?
Acho que no futuro vamos olhar para Três Verões como um filme emblemático deste momento. Estávamos em situação única, prestes a estrear, quando veio a pandemia. Depois, quando os países que controlaram melhor o vírus começaram a reabrir as salas, o filme foi lançado na Europa. E no Brasil, foi para o drive-in e o streaming. Três Verões é quase um estudo de caso, um filme que atravessou todas as etapas [do cinema na pandemia]. Não foi uma decisão fácil. Queríamos lançar o filme, mas é complicado chamar as pessoas ao cinema sem ter certeza de que é realmente seguro. Então penso o seguinte: há muitas maneiras de se ver um filme. A sala de cinema é o único lugar em que você tem uma experiência ao mesmo tempo coletiva e individual: parece que o filme foi feito para você, mas de repente a sala inteira ri ou chora. Esta magia, só a sala tem. Mas as outras opções não são excludentes. O drive-in foi uma ótima ideia que surgiu em vários países, e o streaming foi para outro patamar durante a pandemia. As pessoas estão muito em casa e isso criou uma nova relação com os filmes. Penso que encontramos uma forma de chegar ao maior número de pessoas neste momento. E recentemente percebi uma coisa: Três Verões fala sobre como você se reinventa quando tudo desmorona, sobre como você tem de quebrar a cabeça e achar soluções. É um filme sobre decepção e esperança, até no lançamento. 

Você comentou sobre a estreia do filme na Europa, e é possível perceber que países com políticas fortes para seu cinema têm se saído melhor neste momento de crise. Não só pela ajuda dos governos às salas mas também pela força do produto nacional. Países que dependem excessivamente de blockbusters americanos sofrem com a suspensão dos lançamentos, enquanto os que protegem seu próprio cinema e formam público para ele, como a França por exemplo, têm mais opções. Você acha que a pandemia de certa forma escancarou o descaso do governo brasileiro com o cinema e a cultura do país?
Se tem uma coisa que a pandemia fez, foi escancarar tudo o que já existia, tanto a desigualdade quanto a necessidade de se ter um Estado, um colchão de proteção. As ferramentas para se lidar com essa situação só existem nos lugares onde há um Estado funcionando – onde há sistema público de saúde, onde há assistência social, onde o governo sabe como chegar à população. A cultura entra nisso também: nos lugares onde a cultura é forte, a coesão social é diferente. A França talvez seja o extremo oposto do que a gente vive no Brasil. Morei lá por dez anos, e as pessoas fazem fila para ver filme antigo no sábado pela manhã. Isso só acontece com anos de políticas públicas e de formação de público que começam na infância e estão em todos os lugares. E isso estava sendo construído no Brasil, mas foi interrompido. O cinema nacional já estava em uma situação muito difícil quando a pandemia chegou e piorou as coisas. A cultura já estava ameaçada, já havia uma criminalização da arte. O que temos visto no Brasil, desde que o governo de Jair Bolsonaro assumiu, é um trabalho de desmonte. Na verdade, estamos podendo constatar como havia coisa boa e funcionando no Brasil. À medida que vão desmontando, vamos percebendo. E é interessante pensar que Três Verões acaba em 2018, fazendo um retrato do momento imediatamente anterior à chegada da extrema direita ao poder. Vendo o filme agora, percebemos que os sinais já estavam todos ali. Esse cada um por si, esse uns contra os outros. Criou-se uma situação em que, quanto mais o tempo passa, mais atual o filme fica.

Que conselho você daria para as mulheres que querem trabalhar no cinema?
Depois de tudo que a gente acabou de falar, é difícil dar conselho [risos] Antes da pandemia, quando participava de eventos e via plateias jovens, de gente que estava começando, sentia certa dor no coração. Porque o cenário já estava tão difícil! Mas sou de uma geração que começou a fazer cinema quando o cinema tinha acabado no Brasil [nos anos 1990, quando Fernando Collor extinguiu a Embrafilme, então responsável pelo fomento aos filmes]. E depois vi o que anos de políticas públicas podem fazer: o cinema no Brasil floresceu – rico, variado, respeitado no mundo inteiro. Então a gente sabe que são ciclos. Este é mais um. Não sabemos quanto tempo vai durar, como vai ser. Não sabemos quase nada. Mas sabemos que vai passar, assim como a pandemia vai passar, e que disso vão surgir outras coisas. Quem trabalha com cinema tem uma resiliência muito grande: você faz aquilo porque acha que não dá para não fazer. Para as mulheres, é mais difícil ainda. Mas já foi pior. Quando comecei, eram poucas mulheres diretoras e as equipes eram extremamente masculinas. Isso melhorou muito e pode melhorar muito mais. Então meu conselho é: ter muita vontade de fazer e seguir seu instinto. Preserve sua intuição, seu desejo mais profundo. E siga em frente, porque sempre vai haver um jeito de fazer cinema.


* Este texto foi escrito por Luísa Pécora, criadora do Mulher no Cinema, e patrocinado pelo Telecine

Foto do topo: Sandra Kogut em outubro de 2019, durante a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo – Crédito: Mario Miranda Filho/Agência Foto

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