Juliana Rojas e Marco Dutra retomam sua parceria na direção com As Boas Maneiras, misto de terror, fábula e musical que estreou nos cinemas na quinta-feira (7) após premiada carreira em festivais nacionais e estrangeiros. É o segundo longa da dupla, que se conheceu na faculdade, colaborou em curtas e ganhou popularidade com Trabalhar Cansa (2011).
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Seja na parceria ou em longas solo – Sinfonia da Necrópole (2014), no caso de Juliana, e Quando Eu Era Vivo (2014) e O Silêncio do Céu (2016), no caso de Marco -, a dupla tem tido papel importante no fortalecimento do cinema brasileiro de gênero. E se buscam inspiração num universo fantasioso, também o aproximam do contexto de São Paulo e do Brasil.
É assim em As Boas Maneiras, que conta a história de Clara, mulher negra que vive na periferia da capital paulista. Ao ser contratada como babá do filho da grávida Ana (Marjorie Estiano), moradora de um bairro nobre, ela rapidamente é forçada a assumir também a função de empregada. Conforme a gravidez avança, Ana tem comportamentos cada vez mais estranhos, e a dinâmica entre as duas mulheres evolui para um relacionamento amoroso.
Na entrevista seguir, Rojas e Dutra falam sobre os bastidores de As Boas Maneiras, a forma como trabalham juntos e a recepção do público aos filmes brasileiros de gênero. E embora a conversa aborde elementos do longa que já foram mostrados no trailer e no material promocional, o Mulher no Cinema recomenda a leitura para depois da sessão, especialmente aos espectadores que não conhecem o ponto central da trama.
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O filme opta por mostrar o monstro, e não ficar apenas na sugestão. Por quê?
Juliana Rojas: Era importante mostrar porque o monstro é um dos protagonistas, e para humanizá-lo. A gente estava sempre trabalhando com a estratégia de às vezes esconder para suscitar curiosidade e para cada um projetar e imaginar na sua própria cabeça, mas ao mesmo tempo, em determinados pontos, mostrar e ter o prazer de ver aquela criatura.
Marco Dutra: A questão do ponto de vista era importante. Por exemplo, na cena do shopping a gente tem um pouco das duas coisas. Tem o lobisomem, mas também tem sugestão no momento em que ele está se movendo pelas cadeiras. Ali há um rompimento do ponto de vista. Quando estamos com o Joel, é importante ver a transformação, pois a gente está com ele, sentindo aquilo. Mas quando vamos para o Maurício, é o medo, é ver algo que ele não sabe o que é se movendo pelas cadeiras. Usamos as duas coisas ao mesmo tempo: o explícito e o implícito.
Como foi o trabalho dos efeitos visuais?
Juliana: O filme é uma coprodução Brasil-França e a gente trabalhou com duas empresas francesas: a Atelier 69 para os efeitos mecânicos e a Mikros Image para os digitais. O bebezinho é um efeito mecânico, um robô que teve parte dos movimentos criado por técnica de marionete. E o lobisomem de sete anos é quase totalmente computação, mas com alguns elementos de maquiagem, como a pata e o topo da cabeça. Tivemos de fazer uma mescla para que fosse possível ter cenas de contato físico. Trabalhamos muito próximos das duas empresas desde o desenvolvimento do roteiro, para criar o conceito de cada criatura e ver o que ela tinha de humano e o que tinha de lobo. Depois que selecionamos o ator que faria o Joel, fizemos um trabalho para que as características físicas do lobisomem lembrassem as do ator – no formato dos olhos e da cabeça, por exemplo. Foi muito legal porque tivemos de pensar precisamente a decupagem de cada sequência, considerando também qual emoção era importante para cada momento.
O filme é de fantasia e horror, mas fala muito da realidade brasileira, sobretudo no que diz respeito às divisões de classe e de raça. Como trabalharam essas questões?
Marco: É algo que parte um pouco da cidade, e que está presente em vários dos nossos filmes, como Trabalhar Cansa. Em As Boas Maneiras, queríamos deixar mais alegórico ainda. Anos atrás, quando fizemos um folder para começar a falar do filme, umas das primeiras imagens nos esboços da Juliana era essa ideia de centro, periferia e ponte. Algo que existe em São Paulo: as marginais, o centro expandido, as periferias, as distâncias longas. A gente gostava da ideia de ver, num plano, um centro com arranha-céus, um rio, uma ponte e uma periferia que na verdade é do outro lado. Era como se fosse um castelo e um feudo, uma ideia de contos de fadas que a gente queria trazer para o universo da alegoria, usando elementos da nossa realidade e da nossa experiência social em São Paulo e no Brasil. Isso passa por uma ruptura, por um abismo, que é de classe e de raça. É de outras coisas também, mas no caso de Ana e Clara, relacionar a questão centro-periferia com uma questão de raça era importante. A relação de trabalho abre o filme, e apesar de se transformar, ainda há essa barreira.
A música é sempre parte importante dos filmes de vocês, e em As Boas Maneiras não é diferente. Falem um pouco sobre a trilha sonora. A canção do cavalinho, por exemplo, já existia?
Juliana: É uma composição original. O Marco fez a melodia e a gente fez a letra.
Marco: Um pedacinho da letra estava no roteiro desde cedo. A princípio, era a única canção com referência direta no roteiro. Mas conforme foi chegando mais perto de fazer o filme, começamos a achar interessante a ideia de expandir o universo musical. Nunca pensamos em fazer um musical completo, mas achamos que o filme se beneficiaria de momentos cantados. Parte do processo foi até bem tarde: a canção da espera, cantada pela Clara e pela Dona Amérlia, foi concluída um dia antes da filmagem. Lançamos a trilha nas plataformas digitais e ela tem 54 minutos. As de Quando Eu Era Vivo e Sinfonia da Necrópole tinham 20 e poucos minutos. Então há um material musical sólido, que é parte importante do filme.
Como se dá a parceria de vocês na prática? Há alguma divisão de tarefas?
Juliana: Fazemos tudo juntos, o que envolve muita conversa para pensarmos conceitos, falarmos sobre a cena e sobre como queremos filmar. Há a questão da convivência, de já termos feito muita coisa juntos e sabermos intuitivamente o que um vai gostar ou não. Muitas vezes a gente concorda, outra vezes discorda, e aí conversamos muito até chegar a uma solução que agrade aos dois. É muito interessante porque te força a fazer algo diferente do que se estivesse dirigindo sozinho. Isso faz com que os filmes da parceria tenham uma particularidade. E ao mesmo tempo, sempre temos um interlocutor: nos apoiamos mutuamente para nos aventurarmos e nos arriscarmos na realização.
Tanto no trabalho conjunto quando individual, vocês têm uma participação importante neste momento de crescimento do cinema de gênero no Brasil. Nos últimos anos, sentem que o público está mais receptivo ou acostumado ao produto brasileiro de gênero, ou ainda é algo que causa certo estranhamento ou surpresa?
Marco: Empiricamente, sinto que está mudando. Por exemplo, às vezes procuro ler o que as pessoas estão falando no Twitter sobre As Boas Maneiras, e tem aparecido coisas como “cinema de gênero nacional, cada vez mais me surpreendendo” ou “adorei Mate-me Por Favor e agora este”. Cada vez menos tenho ouvido coisas como “cinema brasileiro não sabe fazer filme de terror”. Quando saiu o trailer de As Boas Maneiras, alguém fez um comentário no YouTube do tipo “que bosta, cinema brasileiro não sabe fazer isso, para que se meter no que não sabe”. E aí várias pessoas responderam ao comentário – agressivamente claro, como acontece na internet -, contestando aquilo. Ou seja, tenho a impressão de que existe um processo de aceitação. A Juliana trabalhou no roteiro de Supermax, da Globo, que tem elementos mais radicais de gênero, e 3%, que é de gênero e a série mais vista da Netflix sem ser falada em inglês. Então a sensação que tenho é de abertura, é positiva. Mas acho que merecia uma pesquisa, para entendermos o impacto disso.
Juliana: Sinto abertura principalmente entre os mais jovens, até porque estamos em um momento de alta do horror. É sempre cíclico: às vezes o cinema de horror está no mainstream, às vezes está no baixo orçamento. Este momento é de alta, os filmes de terror estão rentáveis. E há muitas séries de gênero que são sucesso, como 3%, Walking Dead, True Blood. Acho que isso facilita a abertura para o cinema. As redes sociais e a internet também fazem com que seja mais fácil para as pessoas se unirem. Os fãs de terror são muito fiéis e muito cinéfilos, então há um crescimento de festivais, publicações, blogs…De certa forma, dá a impressão de que está mais em voga. Mas fico na dúvida se existe maior aceitação de fato, ou se o que aconteceu é que as pessoas que gostam de filmes de gênero estão mais conectadas e consumindo mais.
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Veja o trailer de As Boas Maneiras:
Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema
Foto do topo: Ali Karakas