O processo de “Canção ao Longe”, segundo a diretora Clarissa Campolina

Novo longa-metragem da diretora Clarissa Campolina, “Canção ao Longe” estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (6). Também coescrito pela cineasta, o filme narra um momento de transformação na vida da jovem Jimena (Mônica Maria), que quer mudar-se da casa que compartilha com a mãe e a avó, além de romper com o pai, com quem mantém uma troca de cartas. Neste movimento em busca de seu lugar no mundo, Jimena lida com questões relacionadas à sua origem, seu corpo, suas escolhas e suas relações familiares. No depoimento abaixo, publicado com exclusividade pelo Mulher no Cinema, Clarissa Campolina fala sobre o processo de realização do filme:

*

O processo de Canção ao Longe se iniciou em 2012, inspirado na história real de uma amiga: por mais de 20 anos, mesmo quando já era possível comunicar-se por correio eletrônico ou chamadas de vídeo, ela e o pai mantinham contato apenas através de cartas enviadas pelos correios.

A ideia de ficcionalizar essa história surgiu quando me tornei mãe e me vi num processo de transformação, questionando de forma frontal meus valores, cultura, modelos e estruturas sociais e familiares. Foi marcante ver o modo raro como pai e filha mantinham uma relação, e reconhecer que as cartas lhes permitiam um exercício de invenção da própria vida, e dos seus vínculos.

Imagem do filme "Canção ao Longe", de Clarissa Campolina - Foto: Leticia Marotta
Imagem do filme “Canção ao Longe”, de Clarissa Campolina – Foto: Leticia Marotta

Para a criação de Canção ao Longe foi também decisivo o desejo de construir uma personagem feminina na busca por sua própria identidade. Partindo da singularidade dessa personagem, e sem recorrer a estratégias que a diluíssem numa narrativa sociológica, queria também que o filme fosse o retrato de relações familiares e sociais, a fim de revelar fissuras e colocar em xeque as estruturas que repetidas vezes moldam as subjetividades.

A partir dessas diretrizes, desenvolvi o roteiro ao lado de Caetano Gotardo e Sara Pinheiro, criando camadas que trouxeram complexidade para a narrativa e para os personagens.

O encontro com Mônica Maria e o convite aceito por ela para interpretar Jimena foram decisivos para o filme, trazendo força e singularidade à personagem. Mônica é uma mulher negra e a questão racial tornou-se fundamental para a narrativa e para todo o processo do filme, desde sua escrita até a pesquisa, produção, ensaios com os atores e atrizes e a relação dos corpos com o espaço urbano.

Trata-se de um filme narrativo, que acontece na paisagem urbana de uma capital brasileira, e que, todavia, não se prende aos contornos do realismo. Canção ao Longe aposta na presença dos sentimentos e das atmosferas das cenas, tornando presentes as relações entre visível e invisível, som e silêncio, e construindo a narrativa através do jogo de luz e sombra, do que se mostra e do que se ausenta no plano, das elipses temporais, da amplitude sonora.

Canção ao Longe
Imagem do filme “Canção ao Longe”, de Clarissa Campolina – Foto: Leticia Marotta

O ponto de vista do filme se confunde com o de Jimena. A câmera acompanha a personagem na sua trajetória pela cidade, nas suas cenas familiares e domésticas, na sua solidão durante a leitura das cartas enviadas pelo pai, na criação de outras relações amorosas e de amizade. As cenas se constroem a partir de uma sobreposição entre o exterior e o interior da personagem. A subjetividade de Jimena é projetada na tela e o filme é envolvido pela inadequação, fabulação e transformação da personagem. Diante da imagem, o espectador habita também o seu interior. Nesse sentido, o silêncio experimentado por Jimena é experimentado pelo espectador, que acessa a história da protagonista com as mesmas falhas, violências e barreiras que ela própria.

Canção ao Longe é dedicado à Jimena. A partir das cartas que escreve ao pai, da afirmação cada vez mais intensa do seu desejo, Jimena surge pouco a pouco, na medida em que desfaz seu lugar infantil e abre um caminho próprio, se mostrando uma mulher presente e discreta, forte e sutil, consciente e firme. Todavia, ela resiste em revelar-se inteiramente e continua envolta por uma espécie de segredo, nos entregando questões em aberto para continuarmos a pensar, a imaginar.


Clarissa Campolina é sócia da produtora Anavilhana e trabalha como diretora, roteirista, montadora, professora e curadora. Seus filmes foram exibidos e premiados em festivais em Brasília, Locarno, Oberhausen, Buenos Aires, entre outros. Além de “Canção ao Longe”, ela também é diretora dos longas-metragens “Girimunho” (2011) e “Enquanto Estamos Aqui” (2022).

Top