A atriz Kika Sena estreia no cinema com Paloma, novo filme do diretor Marcelo Gomes, conhecido por Cinema, Aspirinas e Urubus (2005) e Estou Me Guardando Para Quando O Carnaval Chegar (2019). Ela interpreta a personagem-título, uma mulher trans que trabalha como agricultora no sertão de Pernambuco e sonha em se casar na igreja com Zé (Ridson Reis), o namorado com quem cria a filha Jenifer (Anita de Souza Macedo). O longa fará sua estreia mundial no Festival Internacional de Cinema de Munique, que ocorre de 23 de junho a 2 de julho, e chegará aos cinemas brasileiros no segundo semestre. No depoimento abaixo, publicado com exclusividade pelo Mulher no Cinema, Kika fala sobre a experiência de fazer o filme:
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No dia 19 de julho de 2018 fui convidada pela produtora de elenco Maria Clara Escobar para fazer o teste para o filme Paloma através da indicação de uma amiga, a Rosa Luz. A princípio a informação mais detalhada que eu tinha era de que o filme contava a história de Paloma: uma mulher trans que vivia com seu companheiro Zé e que desejava casar-se com ele na igreja. Fiquei um pouco receosa de me colocar nesse lugar, topei fazer o teste achando que não passaria nem da primeira fase.
Como estava morando no Distrito Federal, os primeiros testes se deram de forma virtual. Um mês após o primeiro contato de Maria tive a primeira reunião com Marcelo Gomes. Apesar de estar bem ansiosa, senti que ali ele já começava a criar um terreno acolhedor, aliviando as tensões que a gente acaba encontrando em testes de elenco. Com a resposta positiva, fui convidada para o teste presencial. E foi somente no primeiro dia que percebi o quanto aquilo era grande, pensei que não fosse dar conta!
Recebi a confirmação através de uma ligação do Marcelo, onde ele me contava que eu seria responsável pelo papel da Paloma. Com a cabeça acelerada e com tantas responsabilidades, decidi mergulhar em Paloma, mesmo sem saber de fato o que me esperava.
Quando paro para pensar em toda a minha história de vida, concluo que ocupar um espaço em um filme, além de uma realização pessoal, era também um grande ato político, porque tinha e tem muito a ver com a ocupação de corpas pretas e periféricas e transvestigêneres em produções cinematográficas de reverberação nacional e internacional. Porque não estamos acostumades a ver a natureza de pessoas trans e travestis nesse contexto, para além dos estereótipos.
Logo nos primeiros ensaios, Marcelo me indicou alguns filmes e livros para que eu pudesse viajar mais ainda no universo que aos poucos ele mesmo, ao lado da preparadora de elenco Silvia Lourenço, ia me mostrando. Silvinha foi quem dialogou comigo sobre meus medos, e quem muito me deu segurança durante a preparação. Mais que parceiras de trabalho, éramos amigas. Sempre estive muito curiosa para conhecer a Paloma que inspirou o filme, mas desapeguei dessa ideia quando percebi os riscos que já vinham me alertando sobre o lugar da imitação. Ao passo que eu ia me aproximando de Paloma, ia também percebendo o quanto ela era diferente de mim.
Fazendo os recortes de raça, classe, gênero e escolaridade, encontrei a principal referência de Paloma em minha mãe: uma mulher preta, mãe, interiorana, semianalfabeta, nordestina e com muitos sonhos. Ainda assim, no início da criação da personagem, rejeitei o romantismo ou os delírios que motivavam Paloma a correr atrás dos seus sonhos, porque eu estava bastante intolerante ao padrão que a cisnormatividade impõe para nós que somos mulheres trans e travestis, bem como para os homens trans. Demorei a entender que, para Paloma, revolucionário era conquistar o que ela queria, que era o básico. Paloma apareceu como uma sonhadora! Quando eu escutei e acolhi as relevâncias de seus sonhos, percebi que os sonhos nos aproximavam.
Talvez para o mundo, Paloma é um fruto bem gostoso de se provar. Para mim, que estou provando desse fruto até hoje, o que ficam são as memórias e o presente.
Ainda assim, o filme é uma possibilidade de humanização das corpas trans e travestis, uma perspectiva complexa da vida de uma mulher trans, o que difere do que geralmente é produzido sobre essa temática. Acredito que ele trará muitas discussões a respeito do que consideramos como ‘família’, além de ser um espaço de ocupação dos nossos corpos reais no cinema.
Se os olhos que direcionarão o público a se envolver com o filme forem o de, mais uma vez,encontrar a exotificação e/ou o preenchimento de um mundo limitado sobre as experiências de nossas corpas trans e travestis, então talvez não aproveitem a poesia que é Paloma.
Gravamos Paloma no meio de uma disputa eleitoral para Presidência. Terminamos as gravações com a esperança de que no meio desse fascismo todo, que hoje se mostra mais evidente e intenso, esse filme despertasse discussões em torno das estruturas que compuseram e compõem o que chamamos de família, saúde, trabalho, religião, afetos. Quando Paloma reaparece em contexto de uma pandemia pessimamente administrada pela presidência do nosso país, talvez encontremos em nós mesmos uma parte que se disponha a olhar atentamente tais estruturas. Talvez Paloma nos lembre quem está na linha de frente do que Achille Mbembe chama de Necropolítica. Em contexto de pandemia, eu (e talvez a Paloma, se estivesse no meu lugar) pergunto: quais vidas importam?
Kika Sena é atriz, arte-educadora, diretora teatral, poeta e performer. Graduada em Licenciatura em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília (UnB) e mestranda em Teoria em Prática das Artes Cênicas pela Universidade Federal do Acre, é pesquisadora nas áreas de gênero, sexualidade, raça e classe. Também é autora dos livros Marítima (2016) e Periférica (2017) e da zine Subterrânea (2019).