Quem é Helena Ignez? Há várias respostas possíveis para a pergunta que abre A Mulher da Luz Própria, documentário que Sinai Sganzerla dirigiu sobre a vida e a obra da mãe, e que estreou este mês no Curta!On, a plataforma de streaming do canal Curta!, disponível também no Now.
Entrevista: Autora, Helena Ignez rejeita título de musa: “A voz da musa é o silêncio”
Vídeo: Helena Ignez relembra suas personagens mais marcantes no cinema
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Pode-se dizer, por exemplo, que Helena Ignez é uma das mais importantes atrizes do país, que em 50 anos de carreira estrelou dezenas de peças e alguns dos principais filmes nacionais de todos os tempos, como O Assalto ao Trem Pagador (1962), O Bandido da Luz Vermelha (1968) e A Mulher de Todos (1969). Ou pode-se dizer que Helena é uma talentosa diretora e roteirista com seis longas-metragens no currículo – de Canção de Baal (2007) a Fakir (2019). Ou ainda que Helena é uma artista que passou por momentos cruciais da história do Brasil e do cinema brasileiro, alinhando-se sempre aos que lutavam pela cultura e pela liberdade.
Qualquer uma destas definições seria mais adequada do que as que acompanharam Helena durante boa parte de sua carreira: a de musa (do Cinema Novo, independente, brasileiro) ou a de mulher de dois diretores importantes, Glauber Rocha (1939-1981) e Rogério Sganzerla (1946-2004). E aos que ainda reconhecem Helena a partir dos homens com quem trabalhou e conviveu, o documentário de Sinai manda um recado já no título. “Ela ficou muito tempo sendo colocada na posição de ex-mulher do Glauber e de mulher e viúva do Sganzerla. Mas ela é muito mais do que isso: ela tem papel de protagonismo no cinema brasileiro”, afirmou Sinai, em entrevista por telefone ao Mulher no Cinema. “Achava que a história dela tinha de ser contada, até de forma didática, abordando também a dificuldade que teve para se estabelecer como mulher no cinema.”
Aos 82 anos, Helena tem todo o protagonismo de A Mulher da Luz Própria: sua trajetória é contada por ela mesma e sua voz é a única que ouvimos. Seguindo ordem cronológica, ela fala sobre os principais acontecimentos da vida pessoal e profissional quase como se fossem uma coisa só. Trechos dos filmes que fez ilustram perfeitamente passagens marcantes da vida da artista, como o fim do casamento com Glauber, a perda da guarda da filha que teve com ele, a perseguição durante a ditadura militar e a morte de Sganzerla, em 2004.
Fazer um documentário sobre a mãe era vontade antiga de Sinai: foi, na verdade, o primeiro filme que pensou em realizar, em 2005, e que não foi para frente por falta de financiamento. Ao contrário da irmã Djin, que tornou-se atriz (e, recentemente, também diretora e roteirista), Sinai se sentiu desencorajada a se dedicar ao audiovisual pelas constantes dificuldades vividas pelos pais, tanto em relação à ditadura quanto à falta de políticas públicas. “Me formei em outra área para não ter de fazer cinema”, contou a diretora, que optou pela musicoterapia e trabalhou durante anos com crianças autistas.
Foi a morte do pai que a aproximou das telas. Sinai passou a se dedicar à restauração e preservação dos filmes de Sganzerla e logo se viu envolvida em outras atividades da Mercúrio Produções – entre elas, a produção de filmes de sua mãe, como Luz nas Trevas (2010) e A Moça do Calendário (2018). A passagem para a direção se deu após uma frustrante experiência produzindo uma série de televisão. “Não me identificava em nada com aquele trabalho e pensei que era hora de fazer um filme meu”, afirmou.
Em 2017 ela lançou o primeiro longa, O Desmonte do Monte, um documentário sobre as reformas urbanísticas que destruíram o Morro do Castelo, no Rio de Janeiro. Em seguida veio o curta Extratos (2019), que recupera imagens filmadas por seus pais nos anos 1970, e agora, A Mulher da Luz Própria.
Seguindo a veia independente da família, Sinai compõs músicas para a trilha de todos os seus projetos e também será a montadora de seu próximo filme. “Estou integrada em todas as etapas, desde roteiro e pré-produção até direção, montagem, trilha sonora, edição de áudio, distribuição e prestação de contas”, definiu. “Me sinto completamente realizada na profissão, apesar de estarmos num momento muito difícil por causa do atual governo.” Leia os principais trechos da entrevista com Sinai Sganzerla:
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O que te motivou a fazer um documentário sobre sua mãe?
Tinha o desejo de fazer esse filme desde 2005. Até fiz um projeto, mas não consegui [financiamento]. Naquele momento estava iniciando meu trabalho no cinema e achava que seria importante fazer um filme sobre minha mãe, não só pelo fato de ela ser minha mãe, mas pela importância da trajetória dela, que está ligada à história do cinema brasileiro. Outro filmes foram aparecendo na frente, mas na verdade este foi o meu primeiro projeto no audiovisual. Achava que a história dela tinha de ser contada, até de forma didática, apresentando a trajetória dela como pessoa e como artista, e também a dificuldade que teve para se estabelecer como mulher no cinema. Ela ficou muito tempo na posição de ex-mulher do Glauber, mulher do Sganzerla, depois viúva do Sganzerla, e ela é muito mais do que isso. Ela tem papel de protagonismo no cinema brasileiro, e no filme busco justamente isso: mostrar a trajetória dela narrada por ela mesma.
Sua mãe é cada vez mais reconhecida como autora, mas até pouco tempo atrás era quase impossível ler um texto que não a chamasse de musa – do Glauber, do Rogério, do Cinema Novo, do Cinema Marginal. Quando a entrevistei em 2017, perguntei se ela gostava de ser chamada de musa e ela disse que não, porque “a voz da musa é o silêncio”. Sendo filha dela, e tendo essa percepção dela como “mulher de luz própria”, você também se incomodava com isso?
Acho que só recentemente comecei a ter essa reflexão de que musa pode ser um termo que aprisiona e até diminui. Por que não dizer grande atriz ou grande realizadora? É um elogio que acaba sendo nada, que reduz a mulher a alguém que inspira os homens a fazerem seus filmes. Fiz essa reflexão durante o processo de realização, porque minha mãe falou sobre isso num depoimento que inclusive está no filme. A mulher é sempre colocada num papel em função dos homens, principalmente num país extremamente machista como o Brasil. É importante colocar a mulher num local de protagonismo, e mesmo a mulher como protagonista no cinema é algo que está sendo muito mais discutido recentemente. Há realizadoras importantíssimas ao longo de toda a história do cinema que só estou conhecendo agora, porque estão sendo discutidas, homenageadas.
De certa forma, ao narrar a trajetória da Helena o filme aborda algumas questões mais amplas sobre a mulher na sociedade brasileira. Você buscou esse alcance mais universal?
Sim, principalmente por meio da maternidade e do divórcio. Na época [em que Helena se separou de Glauber, em 1961] não existia divórcio. Ela se tornou uma mulher desquitada e foi muito marginalizada por isso – mais ainda por trabalhar e por trabalhar como atriz, à noite, fazendo peças de teatro. Queria também apresentar a dificuldade de uma mulher para poder criar uma filha. Se você é desquitada, não recebe pensão para cuidar da criança. Então como sustentá-la se não trabalhar? É uma questão complexa, que não há como o filme aprofundar, mas que está colocada. É a dificuldade de a mulher viver sua própria história, de ver sua trajetória ser anulada. Busco em alguns momentos que as mulheres tenham essa identificação.
Como foi o processo de pesquisa? Você descobriu algo que não sabia?
Sim. Sabia que minha mãe tinha trabalhado com o [diretor e cenógrafo] Martim Gonçalves na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, mas não tinha a dimensão do quanto a experiência tinha sido significativa e do quão importante ele tinha sido na formação dela como atriz. Foi um grupo muito importante naquele período e muitos artistas beberam daquela fonte. Também não sabia que ela tinha se envolvido com as Ligas Camponesas [organização que lutava pela reforma agrária antes do golpe militar] e que tinha estado em contato com [o líder das Ligas] Francisco Julião. Foi outra faceta dela que descobri.
Você usa a narração da Helena, mas não há nenhuma imagem dela falando com você. Às vezes essa narração parece ser em tom de conversa, às vezes parece ser a leitura de um texto. Como foram essas gravações? Você a entrevistou formalmente?
Passei quase dois anos gravando o material em áudio. Queria que o tom fosse de pensamento, como se ela estivesse andando na rua e tendo lembranças, falando consigo mesma. No início tive certa dificuldade, caí um pouco no tom de entrevista. Depois fui pegando o ritmo e mudando a condução das perguntas, para que o que ela falasse não tivesse tom de resposta. Fiz a gravação sozinha, porque achava que ter uma equipe poderia tirar a espontainedade e a intimidade do momento. Na pós-produção estes áudios foram muito bem trabalhados, para que parecessem uniformes apesar de terem sido gravados ao longo de muito tempo e em ambientes diferentes. Mas ela nunca chegou a ler nada. Minha mãe é muito rebelde: se pedisse para ela falar alguma coisa, ou sobre algum assunto, ela já empacava [risos] Não era tão fácil assim. Ela às vezes dizia: “Não, isso não vou falar, não”. E também tinha hora que não queria gravar. Quando a diretora é a filha, há mais liberdade para recusar [risos]. Mas não houve nenhum texto nem nada que eu tenha escrito. Tudo que está ali, ela contou.
É interessante o modo como você ilustra a narração da Helena com trechos de filmes que combinam perfeitamente com o que ela está falando sobre a vida pessoal. Por exemplo, as imagens de A Grande Feira no momento em que ela fala sobre a separação com o Glauber, ou as de O Padre e a Moça no momento em que ela fala sobre quando perdeu a guarda da filha, Paloma. Fale um pouco sobre esse diálogo que você construiu entre as imagens e a narração.
Busquei seguir a ordem cronológica, e acho que ficou natural porque os filmes estão mesmo ligados à cronologia dos acontecimentos da vida dela. O Padre e a Moça realmente é da mesma época em que ela tinha perdido a guarda da filha, e isso de fato deu muita força ao que estava sendo falado. Acho que provavelmente aquilo [que estava acontecendo na vida pessoal] devia estar com ela no momento das filmagens – aqueles sentimentos, aquelas situações estavam presentes nela. Além de seguir a cronologia, também tinha a preocupação de não ficar ilustrando muito. De não ser aquele tipo de documentário em que você conta uma historinha e depois ilustra com a imagens de um filme. Busquei algo mais natural.
A pergunta inevitável: a Helena gostou do filme?
Ela disse que não queria ver antes de estar pronto, então só assistiu pela primeira vez na exibição do festival Olhar de Cinema, em Curitiba. Percebi que ela ficou meio impactada e que não sabia muito o que dizer. Mas hoje ela diz que adora. Pelo menos isso, né? [risos] Fazer o filme e ela não gostar seria um pouco chato. Mas ela gostou e acho que se emocionou também. Inclusive já reviu desde que estrou no Curta!.
Como em outros filmes seus, A Mulher da Luz Própria tem algumas músicas compostas por você na trilha sonora. É uma área do cinema na qual você gosta de trabalhar?
Minha formação é musicoterapia e estudei música desde criança, mas parei de estudar e de tocar quando comecei a trabalhar com cinema. Faço eventualmente para os filmes – e o próximo, Praia da Saudade, vai ter mais músicas minhas. Não são trilhas maravilhosas, mas às vezes não localizo a música que imagino para determinado momento, e aí posso criá-la em programas como o Garage Band. É uma facilidade da revolução digital, no sentido de que não é preciso alugar um estúdio e contratar uma equipe. Dá para fazer em casa, com um computador e o programa. A gente precisa se virar nos 30, né? Ainda mais fazendo cinema brasileiro, com poucos recursos…É preciso fazer de tudo um pouco. Recentemente, por causa da pandemia, também aprendi a fazer montagem. Então estou integrada em todas as partes de um filme: roteiro, pré-produção, direção, montagem, trilha sonora, edição de áudio, distribuição, prestação de contas…Me sinto completamente realizada na minha profissão, apesar de estarmos num momento muito difícil. Nossa profissão está sendo quase que extinta pelo atual governo. Ao mesmo tempo, todos os profissionais estão se reafirmando.
Seus filmes são sempre ligados à memória, a imagens de arquivo e à documentação e registro de determinadas histórias e pessoas. O que te atrai nesse tipo de cinema?
Temos o estigma de sermos um país sem memória, e não é que o Brasil não tenha memória, mas fica mais fácil manipular, para fins políticos, a população que não tem memória. Acho que temos de buscar isso no cinema, porque cinema é memória, inclusive o ficcional. É a linguagem mais próxima do sonho, e sonhos são fragmentos de memória. Acho importante trazermos luz à nossa própria história, até para a própria autoestima da população, para ela se ver ali. O Praia da Saudade também é sobre a memória: fala sobre ecologia, desequilíbrio ambiental, desmatamento, extermínio da população indígena, e tudo isso está tanto no presente quanto no passado. Da mesma forma, O Desmonte do Monte está até mais atual hoje do que quando foi lançado, e A Mulher da Luz Própria também fala da mulher de hoje, que é anulada no trabalho, como mulher, mãe, figura pública, que passa por dificuldades e as supera. Meu cinema busca o passado para falar do presente e do futuro.
Que conselho você daria para as mulheres que querem trabalhar no cinema?
Primeiro, buscar o conhecimento, tanto técnico quanto acadêmico. O estudo é primordial para a gente se desenvolver. Depois, é preciso seguir naquela linha “não sabendo que era impossível, foi lá e fez”. A gente não tem de ficar ouvindo as pessoas que nos dizem que não vamos conseguir e que o cinema é algo inalcançável. Não é. Principalmente agora, com a revolução digital, é possível fazer filme com poucos recursos, poucos equipamentos e equipes reduzidas, dominar as ferramentas de fotografia, edição…Fazer cinema é possível e acho que o espaço das mulheres ainda vai crescer muito.
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema.