Conheça Camilla Rocha Campos, criadora das performances de “Ana. Sem título”

Criar a obra e o posicionamento político de uma artista brasileira, negra, perseguida pela ditadura militar – e fictícia. Esta foi a missão de Camilla Rocha Campos em Ana. Sem título, filme da diretora Lucia Murat que está em cartaz nos cinemas de Brasília, Fortaleza, Niterói, Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador.

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Transitando entre a ficção e o documentário, Ana. Sem título se inspirou em duas outras realizações artísticas: a peça Há Mais Futuro que Passado, montada em 2017 no SESC Copacabana, no Rio de Janeiro, e a exposição Mulheres radicais, realizada em 2018 na Pinacoteca de São Paulo. O roteiro acompanha a atriz Stella (Stella Rabello), que estuda cartas trocadas por artistas plásticas latino-americanas nos anos 1970 e 1980. Nestas cartas ela encontra menções à brasileira Ana (Roberta Estrela D’Alva), que fez parte deste mundo, mas desapareceu. Determinada a descobrir quem era Ana, Stella viaja por Cuba, México, Argentina, Chile e Brasil. 

Conforme passa pelos diferentes países, o filme faz uma série de entrevistas para revelar a história de Ana e recuperar a trajetória de artistas reais como a poeta peruana Victoria Santa Cruz (1922-2014), a fotógrafa mexicana Kati Horna (1912-2000) e a pintora cubana Antonia Eiriz (1929–1995), a cineasta argentina María Luisa Bemberg (1922-1995) e a muralista chilena Luz Donoso (1921-2008). Algumas dessas entrevistas são com pessoas reais e outras, com atores, sem que isso seja identificado ao espectador. Da mesma forma, a equipe do filme está constantemente em cena, às vezes interagindo naturalmente e em outras encenando um texto previamente preparado. A todo esse material ainda se se somam filmagens em Super-8 e 16 mm das performances de Ana, criadas especialmente para o filme e tratadas na montagem como imagens de arquivo.

A mulher por trás destas performances é Camilla, artista, professora e pesquisadora que fez mestrado em História e Crítica de Arte na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e atua como diretora da residência artística internacional Capacete, em parceria com o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Partindo do roteiro e de conversas com a equipe, Camilla fez um trabalho que Lucia Murat definiu como “fantástico” e “fundamental”. “Quem nos guiou o tempo todo foi ela”, contou a diretora.

O Mulher no Cinema conversou com a artista para saber mais sobre seu trabalho em Ana. Sem título e a experiência de criar performances para o cinema. Leia os principais trechos da entrevista:

Imagem de uma das performances criadas para o filme Ana. Sem título

Como foi o processo de criação das performances?

A Lucia entrou em contato comigo, e a partir da leitura do roteiro fui pensando em como poderia ser esta artista, tanto a partir do contexto histórico quanto no sentido do que é ter uma mulher preta como a busca, um pouco como um óraculo, num lugar de ancestralidade e de abrir um caminho visual para o filme e para a chegada de todas aquelas outras artistas. Depois, Lucia e eu lemos o roteiro juntas e ela foi me contando mais sobre o que queria fazer. Foi muito bacana porque o universo das artes visuais e o universo do cinema são bem próximos, mas também bem diferentes em termos de metodologia de trabalho. Conversei bastante com a Lucia, com a [assistente de direção] Ludmila Curi e com a Roberta, que já tinha entrado para fazer algumas filmagens e fotos. Era preciso entender que tipos de materiais estavam sendo usados naquela época e marcar bem algumas questões temporais, além de trazer a relação visual, social e política. Toda arte é política e era preciso pensar como isto poderia estar visível sem que fosse panfletário. Mas a conversa mais extensa com a Lucia foi sobre como trazer a marca da racialidade. A Lucia traz muito bem a marca de gênero, mas como é esse deslocamento para a racialidade? O que eu trouxe como proposta foi que todas as performances fossem num lugar de afirmação, e não de trauma ou ferimento, que já vinham com o contexto. Mas também não era uma ideia de superação: era a ideia de que a arte está ali como uma descoberta pessoal dela, em contato com a contemporaneidade dela. Era trabalhar sem sobreposição de violência. Não é a resposta da violência com violência, é a resposta com transformação. O que ficou bem marcado foi a tentativa de apontar, visualmente, como a transformação daquela realidade estava sendo operada pela artista.

Alguma artista ou trabalho te inspirou? Na hora de criar as performances, você considerou também o trabalho das mulheres reais com as quais Ana teria dialogado na ficção do filme?

Como também sou artista, tenho meu processo e trouxe ao filme um pouco do que faço e do que acredito enquanto prática visual. E na minha prática, tenho inspirações. Mas não tive nenhuma linha direta como referência. Ao mesmo tempo, fui compartilhando referências dentro das próprias artistas que faziam parte da exposição Mulheres radicais. Dali retirei alguns elementos inspiradores, que funcionavam como elementos de visualidade para estabelecer uma conexão com o roteiro.

Você também participou da filmagem das performances?

Sim, estava lá o tempo todo acompanhando.

A Lucia contou que o material filmado foi um pouco alterado na montagem, com alguns cortes, closes etc. Para você, foi tranquilo ver as performances sofrerem esse tipo de alteração?

Com certeza! A questão da edição, das tomadas, da câmera, dos enquadramentos…estávamos todos juntos e me senti contemplada por esse trabalho coletivo. Na montagem, as opções estão muito mais relacionadas à forma de contar essa história. É um filme que apresenta as artistas e sua cronologia, e acho que foi super bem feito.

Você daria especial destaque a alguma das performances do filme?

Gosto de todas [risos] Mas vou reforçar a que todos estão comentando, que é a da máscara [nesta, a personagem de Roberta Estrela D’Alva usa uma máscara de luta livre, num diálogo com as fotografias da mexicana Lourdes Grobet; depois, a retirada da máscara revela elementos que remetem à escravidão]. Toda performance tem uma cadência, um tempo. As performances do filme foram reajustadas para caberem num tempo de cinema e para caberem na história da Ana, da Stela e da Lucia. Dentro desse tempo de cinema, a performance da máscara foi a mais bem casada. Durante a pré-estreia do filme, fiquei muito feliz em ver a performance na tela grande – porque imagem de arte é para ver grande. Nesse sentido, ficou aquela mascarazona ali e com o tempo necessário para a tela do cinema. Tem o drama, tem a pausa, tem o virar para um lado, tem o virar para o outro, tem o abrir a boca. Lucia e eu estávamos sentadas juntas na pré-estreia e [quando assistimos a essa performance] falamos: “Cara, ficou incrível!”.

Imagem de uma das performances incluídas em Ana. Sem título

Você comentou sobre a questão da racialidade, e não há dúvida de que o filme seria muito diferente se Ana fosse uma mulher branca. Gostaria de saber como foi ajudar a construir a representação desta artista negra que é o fio condutor da história.

Eu te digo que participei do posicionamento dela dentro do filme. Não vejo o filme como uma produção que coloca a temática negra na centralidade, mas como uma produção de pessoas que querem conversar sobre racialidade e que são afetadas pela ideia de raça de formas diferentes. Eu sou afetada de uma forma, Lucia de outra, Andressa de outra, Roberta de outra, Stella de outra. Temos no filme pessoas brancas que querem abordar esse tema, então como vão fazer isso de forma respeitosa com a história negra? Não é contar a história do povo negro ou das mulheres na ditadura como heróis que resgatam. Não há ideia de resgate, ninguém está salvando ninguém do barco. Na verdade, está se falando sobre o incômodo gerado não só pelo movimento negro, mas pelo recorte racial entre as próprias pessoas da equipe, que ainda são herdeiras de um privilégio racial. Sendo herdeira de um privilégio racial, como você aborda com respeito essa causa? A Lucia não se posiciona como porta-voz, o que inclusive não pode ser. Ela se posiciona como uma pessoa branca que tem as ferramentas para não se resguardar no privilégio de não falar sobre racialidade. A gente tem de falar – mas vai falar como? Pude acompanhar esse cuidado e trocar bastante. As conversas com a Lucia foram bem boas porque foram conversas efetivas: tem escuta, tem fala, tem escuta, tem fala. Fiquei bem feliz em participar, em estar junto, em poder contribuir e sentir que a contribuição era efetiva. E para mim, pessoalmente, foi muito importante ver Lucia trabalhando. Conhecia e gostava dos filmes dela, mas foi importante vê-la, ver uma mulher decidindo coisas, ver que o que ela traz para a tela é realmente o que está acontecendo ali, ver a força de algo genuíno se transformar em algo que se comunica com tantas pessoas. Acho que a gente fez uma boa parceria.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema – Foto do topo: Zakee Kuduro

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