Em sua longa e bem-sucedida carreira como produtora de cinema, a gaúcha Sara Silveira ficou conhecida principalmente por dois talentos: o de revelar novos cineastas, trabalhando com eles em seus primeiros filmes, e o de ajudar curtas e longas brasileiros a conquistar o mercado internacional. Foram estes, afinal, os pilares definidos para a Dezenove Som e Imagem, produtora que Sara fundou em 1991 ao lado do cineasta Carlos Reichenbach (1945-2012), e em parceria com Maria Ionescu. Quase 30 anos depois, ela se prepara para exibir seu mais novo trabalho na competição do Festival de Berlim, um dos mais importantes do mundo.
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Sara apresentará Todos os Mortos, filme de Caetano Gotardo e Marco Dutra que encabeça uma seleção de 19 títulos brasileiros que serão exibidos na edição 2020 da Berlinale. Esta forte presença do cinema nacional dá continuidade ao notável desempenho do país nos festivais de 2019, e é resultado dos anos de políticas públicas que fortaleceram a produção. Estas mesmas políticas estão sob ameaça no governo de Jair Bolsonaro, que promove constantes ataques à cultura e impõe todo tipo de entrave à atuação da Agência Nacional do Cinema (Ancine). Hoje, centenas de projetos estão parados, e o futuro do audiovisual brasileiro é no mínimo incerto.
Como muitos colegas, Sara Silveira está fazendo “as últimas levas” de filmes apoiados por governos anteriores sem saber o que será da Lei do Audiovisual e de outros incentivos que foram de fundamental importância para o desenvolvimento de sua carreira. Mas o desânimo não estava presente quando a encontrei para uma entrevista na sede da Dezenove, em uma agradável casa no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Sentada em uma cadeira na cozinha, ela falava alto e de forma enérgica sobre o que fazer daqui em diante. “Eu te digo: estou firme, forte e pronta para continuar lutando”, afirmou. “O desânimo às vezes pinta, mas há momentos de grande força. Vamos achar soluções. Vamos achar outros financiamentos para nossos filmes.”
Parte da força de Sara vem da conquista que é estar na competição de Berlim e na longa experiência internacional: só no mercado de Cannes, já são 20 anos de trabalho. Não é preciso muito tempo de conversa para perceber que ela conhece bem as regras e estratégias para se buscar coproduções e fundos internacionais, que já eram foco da Dezenove mas ganham renovada importância diante do cenário brasileiro. Na empresa, ela trabalha de forma próxima à Maria Ionescu, executiva de todas as produções e coproduções realizadas, e diz que “a luz de Carlos Reinchebach” está pairando sobre elas. “Esse sabe tudo, esse é o mestre, esse me ensinou cinema, esse é especial”, elogiou. “É com o exemplo dele que sigo minha carreira.”
Além dos filmes de Carlão, a Dezenove produziu, por exemplo, Ação entre Amigos (1998), de Beto Brant; Bicho de Sete Cabeças (2000), de Laís Bodansky; Durval Discos (2001), É Proibido Fumar (2009) e Mãe Só Há Uma (2016), de Anna Muylaert; Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), de Marcelo Gomes; e Trabalhar Cansa (2011) e As Boas Maneiras (2018), de Marco Dutra e Juliana Rojas. Dutra agora se une a Caetano Gotardo (O Que se Move) no roteiro e na direção de Todos os Mortos, coprodução da Dezenove com a francesa Good Fortune Film. A história de passa na São Paulo de 1899, onze anos após o fim da escravidão, e é centrada nas mulheres de duas famílias: uma branca, os Soares, e uma negra, os Nascimento.
Sara Silveira sabe que a escravidão é tema delicado: ela produziu Vazante (2017), de Daniela Thomas, que foi duramente criticado pelo modo como retratou o período. Em Todos os Outros, as produtoras e os diretores, que são brancos, buscaram contratar mais mulheres e profissionais negros. O filme contou, por exemplo, com a consultoria da antropóloga e escritora Goli Guerreiro, autora de livros como Alzira Está Morte – Ficção Histórica no Mundo Negro do Atlântico (2015), e a trilha sonora do músico, historiador e educador Salloma Salomão, pesquisador da cultura africana. O elenco é encabeçado pelas atrizes Mawusi Tulani, Clarissa Kiste, Carolina Bianchi e Thaia Peres, e as mulheres da equipe incluem a diretora de fotografia francesa Hèlene Louvart, que recentemente trabalhou em A Vida Invisível (2019), e a diretora de arte brasileira Juliana Lobo.
Na entrevista a seguir, Sara Silveira fala sobre a expectativa da exibição do filme em Berlim, a forte presença brasileira no festival e os possíveis caminhos para o futuro da produção:
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Converso com muitos jornalistas e profissionais do audiovisual e muitas vezes o clima é de desânimo diante da situação da Ancine e dos ataques do governo ao setor. No entanto, quando vejo suas entrevistas ou participações em eventos, sinto você bastante energizada para seguir em frente. Onde você encontra essa energia? Como não se deixar abater completamente pelo momento que é de fato extremamente desanimador?
O momento é desanimador, duro e obscuro, porque existe um ataque à cultura e à educação, e um país não se faz sem estes dois pilares. Tenho 69 anos, passei pelo golpe de 1964 e tenho algumas lembranças daquele tempo. Mas quase 50 anos depois estou aqui fazendo filmes. Estamos cumprindo os filmes que tivemos [apoio para fazer] nos governos anteriores, as últimas levas. Teremos de encontrar soluções, seja via [investimento] privado, coprodução ou fundos internacionais, para continuarmos contando nossas histórias e pularmos a censura e a discriminação. Encontro força dentro da minha própria energia como mulher. Quero lutar pelo meu país, meu país há de vencer! Somos um país alegre, jovem, com muita coisa ainda para cumprir. É aí que busco energia, dentro desse país imenso, dentro da metade do país que se opõe a esse momento obscuro, à opressão e à censura. Ainda tenho forças. Nasci com essa força. Sou mulher, vou lutar, vou brigar. Dentro do respeito, mas vou lutar pelo nosso lugar e pelas nossas histórias. Vamos achar soluções, vamos achar outros financiamentos para nossos filmes. Eu te digo: estou firme, forte e pronta para continuar lutando. O desânimo às vezes pinta, mas há momentos de grande força. Me sinto muito forte agora. Estar na competição de Berlim, levando um filme que fala sobre os negros, é muito importante nesse momento do país. É muito importante que a gente dê respostas a esse governo, que a gente mostre que quer ser livre para contar a história do país e da nossa diversidade. Tudo isso me enche de força. Tenho muita força. Só não posso ser baqueada, e para ser baqueada, só se for para me lesarem fisicamente. Porque mentalmente, com esse pequeno corpo que tenho de mulher, vou enfrentar e continuar fazendo filmes para que eles nos vejam e vejam o Brasil que almejamos.
“Vamos achar soluções, vamos achar outros financiamentos para nossos filmes. Eu te digo: estou firme, forte e pronta para continuar lutando. O desânimo às vezes pinta, mas há momentos de grande força. Me sinto muito forte agora.”
A sua produtora sempre fez apenas cinema, sem nunca ter desenvolvido projetos para a televisão ou outros formatos. Mas diante deste cenário e nessa busca por soluções, você estaria aberta a produzir para plataformas de streaming, por exemplo?
Você sempre tem de estar aberta para qualquer trabalho, porque precisa sobreviver. Nossa situação é muito grave, já já não teremos mais produções. Estamos há 14, 16 meses parados. O freio deste governo não nos deixa avançar. Ora faltam diretores, ora falta alguma composição do comitê gestor, sem contar uma mudança enorme de cabeças que se desentendem entre si e mudam novamente. Todos esses entraves proporcionados pelo governo brecam a Ancine, que está de mão atadas. Não temos editais, não sabemos o que vai acontecer. Então você tem de buscar recursos. Como a Dezenove sempre trabalhou apenas com cinema, vou continuar lutando para fazer cinema, com coproduções internacionais, fundos internacionais, algum dinheiro privado ou não do país. Podemos contar com os fundos estaduais: a Spcine, por exemplo, está lutando junto com a gente, tentando manter o que conquistamos nestes anos todos com editais. Os estados podem nos defender, já que o federal está completamente parado por um governo que poderia ser mais inteligente. Todos os países apoiam sua cinematografia. Temos aí o exemplo gritante do Oscar [no qual o sul-coreano Parasita foi o grande vencedor]. A Coreia deu um exemplo do que é um trabalho de cinematografia, colhendo o resultado [de anos de apoio do Estado]. O que mais fazer para demonstrar a esse governo obscuro o quão importante é a nossa luta?
Qual a expectativa para a exibição de Todos os Mortos em Berlim?
Berlim está dando um olhar e um espaço para o Brasil. Temos 19 filmes brasileiros na Berlinale, todos independentes, e essa representação ninguém nos tira. Esse é nosso grito em Berlim. A comunidade internacional está nos dando espaço, e esse é um caminho que temos para falar e mostrar nossas histórias e nossa diversidade. Somos pessoas sérias, honestas, competentes. Num só filme proporcionamos de 500 a 700 empregos diretos e indiretos. É uma área que só proporciona lucros para o país. Veja Hollywood: os Estados Unidos são uma força enorme, mas eles têm uma alavanca muito forte que se chama cinema americano. E que também se protege. Tenha governo a favor ou contra, o cinema americano se mantém. É isso que temos que procurar: manter a nossa cultura. Não é fácil entrar na competição [de um festival]. Além de ter um bom filme, é preciso que exista um trabalho de reconhecimento e entendimento com quem está selecionando. Torço muito pelo Carlos Chatrian, que está em seu primeiro ano na direção da Berlinale. Ele esteve conosco quando As Boas Maneiras foi para o Festival de Locarno [do qual Chatrian era diretor] e agora é o momento de estarmos juntos em uma grande competição. Pudemos conversar e mostrar a importância deste filme. Berlim assimilou isso e está levando o Brasil para ser mostrado lá fora e contestar o Brasil que temos aqui dentro.
Fale um pouco sobre o filme e o trabalho de produção.
É um filme bem feminino, não só na história. É produzido por mulheres brancas e dirigido por cineastas brancos, mas têm muitas mulheres na equipe e uma certa quantidade de pessoas negras que vieram colaborar conosco. Era muito importante que tivéssemos essa participação para conceber e tentar fazer o melhor para falar desse assunto, para termos o cuidado de saber conduzir o assunto sempre respeitando os negros do país.
Então foi uma decisão buscar mais mulheres e profissionais negros para a equipe?
Sim, foi uma procura, um desejo da produção e da direção. Tivemos alguma dificuldade ainda, temos que lutar muito para essa proporção aumentar. Estamos engatinhando, temos de forçar mais. Nós, produtoras mulheres, especialmente as brancas, temos de lutar para trazer as negras e os negros com a gente. É muito importante que as mulheres negras estejam presentes. Precisamos estar juntos, unidos, para enfrentar esse escravagismo de mais de 120 anos que não cessa nesse país. Nosso filme fala disso.
Esse desejo de ter uma maior presença de pessoas negras teve algo a ver com a polêmica durante o lançamento de Vazante? Alguma reflexão daquele momento ecoou neste projeto?
Olha, os projetos existem. Trabalho tanto que os projetos vão vindo e o que apreciamos são os roteiros. Vazante foi feito, do seu jeito, com o trabalho da Daniela Thomas, que foi excelente, porque o filme é excelente tecnicamente. O que valeu do Vazante, o que foi positivo, foi ter gerado a discussão e criado o conflito. Como produtora branca que fez o filme, recebi as críticas com humildade, e com muita humildade quero receber as críticas que por ventura possam vir a ter com Todos os Mortos. Se Todos os Mortos trouxer a discussão de novo, maravilha. Só quero deixar bem claro que eu, Maria e os diretores estamos do mesmo lado. Se cometemos erros em não bem contar algum momento do escravagismo brasileiro, digam-nos e juntos vamos melhorar, vamos tentar botar no passo certo. O filme é para brasileiros de todas as cores e gêneros, e espero que a comunidade negra esteja conosco. Se tiver erros, apontem. Mas não nos aniquilem, porque estamos do mesmo lado da luta.
“Berlim está dando um olhar e um espaço para o Brasil. Temos 19 filmes brasileiros na Berlinale, todos independentes, e essa representação ninguém nos tira. Esse é nosso grito. A comunidade internacional está nos dando espaço, e esse é um caminho que temos para falar e mostrar nossas histórias e nossa diversidade.”
Você costuma contar em entrevistas que, na época da criação da Dezenove, você perguntou ao Carlos Reinchenbach se ele achava que era possível ganhar dinheiro com a empresa, e que ele respondeu: “Ganhar dinheiro não sei, mas a gente vai tentar entrar para a história”. Quase 30 anos depois, como você acha que a Dezenove entra para a história? Qual legado você já deixou?
Os filmes. Os talentos que apresentamos ao mundo cinematográfico. Acho que já estamos na história: a Dezenove, a Maria, eu, nossos diretores. Carlão já estava na história, só me colocou a bordo da história. Não tem muita resposta, a resposta são os filmes. Os filmes são nossos gritos. Eu não sou talento, sou a mão de obra pesada da arte. Mas ao assinar a obra como produtora, também respondo por ela. E esses filmes que gritam, esses filmes que são importantes, eles ficam na história. Para acabar com eles, só botando fogo. Espero ser uma pequena parte da história do Brasil com a nossa força e energia. A nossa vontade de dizer as coisas está explícita nos mais de 50 filmes que fizemos: Maria, eu, a Dezenove e os diretores maravilhosos que por aqui passaram.
Que conselho você daria para as mulheres que querem trabalhar no cinema?
Muita força, coragem, ousadia, perspicácia. É difícil enfrentar, mas enfrenta-se. É simplesmente fazer, impor-se, ter coragem e cavar seu lugar na história, porque somos muito importantes para formar nosso país. As mulheres estão dando saltos maiores. Ainda estão nos restringindo, mas a gente chega lá. Viva as mulheres do cinema brasileiro! Viva as mulheres! E se precisarem, se qualquer outra mulher no cinema brasileiro precisar de força, energia e coragem, pode saber que a Sara Silveira tem.
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema
Foto do topo: Mario Miranda Filho/agenciafoto.com.br