Quase quatro décadas se passaram desde que Marcélia Cartaxo, então com 19 anos, estreou no cinema como Macabéa, a inesquecível personagem criada por Clarice Lispector e levada às telas por Suzana Amaral. Agora aos 60, e vivendo um dos grandes momentos da carreira, Cartaxo assiste ao relançamento de A Hora da Estrela (1985), que volta às salas nesta quinta-feira (16) em versão digitalizada pela Sessão Vitrine Petrobras.
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Considerado um clássico do cinema brasileiro, A Hora da Estrela é uma daquelas adaptações cinematográficas que, de tão marcantes, acabam exercendo certa influência na obra original. Hoje, é difícil ler o livro de Clarice Lispector sem atribuir o rosto de Cartaxo à Macabéa, uma jovem pobre e solitária que imigra do Nordeste para o Sudeste após a morte da tia, sua única conexão com o mundo. Na cidade grande, ela se divide entre o trabalho como datilógrafa, os passeios no metrô e os encontros com o primeiro namorado, além de passar horas ouvindo músicas e curiosidades transmitidas pelos locutores da Rádio Relógio.
Nascida em Cajazeiras (PB) e atuando nos palcos desde os 12 anos, Cartaxo não tinha lido A Hora da Estrela quando foi convidada a interpretar a personagem que lançaria sua carreira no cinema. No início dos anos 1980, o grupo teatral do qual fazia parte foi a São Paulo (SP) para encenar o espetáculo Beiço de Estrada, a história de uma senhora que morava com as filhas à beira de uma rodovia. Cartaxo interpretava Véu de Noiva, a única das jovens que não trabalhava como prostituta, e sobre quem recaíam esperanças de um bom casamento.
Na plateia estava Suzana Amaral, que já buscava a atriz perfeita para protagonizar seu primeiro longa-metragem de ficção. Ao ver Cartaxo em cena, a busca acabou. “Suzana ficou encantada porque a peça era linda, e minha personagem, muito próxima da Macabéa”, relembrou a atriz, em entrevista ao Mulher no Cinema. Naquele momento, sua trajetória pessoal também se conectava à da protagonista de A Hora da Estrela: Cartaxo era tímida, vivia em uma cidade do interior do Nordeste (no livro, Macabéa é alagoana) e vinha de uma criação “sem luxos”. “Para mim, também foi difícil sair de casa e ir sozinha a São Paulo fazer o filme”, afirmou. “Fui muito na força de vontade, na coragem, no desejo de que o sonho de ser atriz se tornasse realidade.”
A realização do sonho veio acompanhada de muitos prêmios, entre eles o Urso de Prata de melhor atriz no Festival de Berlim, um dos mais importantes do mundo. Mas esta espetacular estreia não assegurou uma carreira cinematográfica sem percalços. Um dos primeiros obstáculos foi o contexto político brasileiro, já que pouco depois, em 1990, o governo de Fernando Collor fechou a Embrafilme, empresa de economia mista que desde 1969 apoiava a produção e distribuição de filmes nacionais. Mas as oportunidades de Cartaxo também foram limitadas por estereótipos relacionados às mulheres e à população nordestina que o audiovisual brasileiro tantas vezes reproduziu. “Por questão de sobrevivência, fui ficando no Rio de Janeiro e fazendo empregadas na televisão, que muitas vezes não tinham voz ou história”, contou Marcélia.
A virada na carreira começou a ser gestada após Madame Satã (2002), de Karim Aïnouz, e acompanhou os debates e políticas públicas que buscaram diversificar e descentralizar a produção cinematográfica brasileira. Nos últimos anos, Cartaxo encontrou alguns de seus melhores papéis em filmes como A História da Eternidade (2014), de Camilo Cavalcante; Pacarrete (2019), de Allan Deberton; A Praia do Fim do Mundo (2021), de Petrus Cariry; e A Mãe (2022), de Cristiano Burlan.
Fundamental, também, foi a passagem da atriz para o outro lado das câmeras, assumindo a direção dos curtas Tempo de Ira (2003), De Lua (2013) e Redemunho (2106), estes dois últimos também escritos por ela. Os planos, agora, são de dirigir o primeiro longa e “botar sua experiência para fora”.
Na entrevista a seguir, Cartaxo faz um balanço de sua carreira, compartilha memórias de A Hora da Estrela e dá detalhes sobre o processo de criação de Macabéa e a colaboração com Suzana Amaral, que morreu em 2020.
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Quando alguém fala sobre A Hora da Estrela, qual a primeira lembrança ou a primeira sensação que você tem? O que esse filme te traz logo de cara?
Esse filme me traz muitas lembranças, mas, de cara, é a saudade de Suzana Amaral, [o desejo de que ela pudesse] estar aqui entre a gente, vivenciando este novo formato [a digitalização], vendo o filme nessa era moderna, nos streamings, nas salas de cinema. A felicidade hoje é essa: a de poder ver o filme quarenta anos depois e a de ver uma nova geração muito entusiasmada em assistir. O filme está muito lindo, muito limpo, com uma luz muito bem trabalhada. Então estou muito feliz.
Quarenta anos após o lançamento, por que o filme e a personagem da Macabéa se mantêm tão fortes e presentes na cultura brasileira e no imaginário das pessoas?
Acho que, socialmente, o filme é extremamente atual. A gente ainda vive todas as questões sociais que a Clarice questiona com a Macabéa e seus personagens: a questão da migração, da falta de moradia, de as mulheres ainda estarem galgando espaço na sociedade, de buscar uma vida melhor, de mudar de um lugar para outro, de se arriscar. Todas essas coisas mexem com questões de hoje. E é um personagem feminino muito rico. No livro, há duas camadas: a história da Macabéa e a história do narrador, que é homem. Acho muito interessante que a Suzana tenha dado o protagonismo totalmente para a Macabéa, ao invés de colocar o narrador ou outra coisa.
Suzana Amaral era uma diretora que valorizava muito a relação com os atores, e parece ter trabalhado muito próximo a você na criação da Macabéa. O que você pode contar sobre esse processo de criação? Como chegaram às especificidades da personagem e que tipo de orientações ou pedidos você recebia da Suzana?
Suzana era muito rígida e exigente. Primeiro, quando nos falávamos por cartas, ela pedia para que eu observasse as Macabéas da minha cidade, as pessoas que pegavam o ônibus e iam para a cidade grande em busca de uma vida melhor. E eu mesma fui a São Paulo de ônibus, num percurso de três dias. Quando a encontrei pessoalmente, ela falava muito profundamente sobre a concentração, a observação, a memória da emoção, a memória corpórea, a caracterização. Ela esmiuçava todas essas coisas, que no fundo eram uma coisa só: emprestar a alma para esse personagem. Como ela ia andar, como ela ia falar, como ia respirar, como ia se comportar, aquelas roupas que eu vestia para vivenciar a Macabéa…E aí, no set de filmagem, eu ficava sentada em uma cadeira virada para a parede. Ela não deixava que nada e ninguém tocasse em mim. A gente acordava às 4h e ia para o set só eu e ela, no carro dela. Ninguém da equipe chegava perto de mim – só ela. E isso durou o processo inteiro, justamente para que ninguém maculasse essa personagem, para que eu não ficasse influenciada pelo fato de estar em São Paulo e fazendo esse projeto.
Quando a Suzana me conheceu, no teatro, eu fazia uma personagem muito próxima à Macabéa. E eu também vim de uma cidade do interior. Minha mãe era costureira e meu pai, agricultor. A gente não tinha luxos, a comunicação era totalmente diferente. Eu tinha gestos contidos, era tímida. Então tudo isso influenciou [no processo de criação]. A Suzana me deixou muito livre, mas, ao mesmo tempo, presa à história da Macabéa. [A ideia era a de que] aquela menina que vinha do interior não fosse maculada, não se deslumbrasse com a cidade grande, com restaurantes, peças de teatro, com outras possibilidades que eu poderia ter tido. [Eu poderia] ter saído com o José Dumont e a Tamara Taxman [atores que interpretam Olímpico de Jesus e Glória], ter ido a bares, ter ido passear. Mas não, ela deixou tudo preparado para que eu não vivenciasse essas coisas. E isso foi fundamental. Alguns dias eu chorava, com raiva de Suzana, porque queria ir para os cantos e ela não deixava. Aí ela dizia: “Um dia você vai me agradecer”. E toda vida que vejo A Hora da Estrela digo: “Suzana, muito obrigada”. Porque também eu sabia que aquilo tinha começo, meio e fim. Não era para a vida toda, era um momento da minha vida. Suzana teve muita compreensão comigo. Ela teve um grande entendimento da minha pessoa, da personagem e de tudo o que a gente ia vivenciar.
A trajetória da Suzana me parece refletir as dificuldades de se fazer cinema no Brasil e, também, de se fazer cinema no Brasil sendo mulher. É significativo, por exemplo, que ela tenha começado a estudar cinema depois de já ter criado os filhos e feito seus primeiros filmes com 40, 50 anos. Ou seja, ela tinha uma paixão antiga pelo cinema, mas só pode persegui-la profissionalmente num segundo momento da vida, o que é algo muito menos comum no caso dos homens. Além disso, é muito significativo que ela, mesmo depois do sucesso de A Hora da Estrela, tenha tido grande dificuldade para realizar outros filmes, principalmente por falta de financiamento. Ela só lançou o segundo longa em 2001, e depois um terceiro e último em 2009. Você acompanhou essa jornada dela para seguir com a própria carreira? Como vê essa trajetória?
A gente sempre teve, no nosso país, um embate dos políticos com a cultura. A [formação de uma] indústria [cinematográfica] não era bem vista, a cultura não podia ter esse crescimento. Então sempre entrava algum político que queria podar a gente, e aí vivenciávamos uma baixa no cinema brasileiro. Consequentemente, as mulheres eram mais podadas ainda, porque também tinha a questão de que, naquela época, e nesse formato de 35 mm, os equipamentos eram muito caros. Existiam poucas produtoras, que os homens administravam, e eles dificilmente abriam espaço até mesmo para outros homens se aperfeiçoarem. Eles viam um mercado ali, para eles, e se fechavam. Não era só a Suzana Amaral [que tinha dificuldades de seguir com a carreira], mas também outros diretores de outras regiões, já que o cinema, nessa época, ficava no eixo Rio-São Paulo. Ele não se abria. Para poder ser artista, a gente era obrigado a sair [das outras regiões do país] e vir para cá tentar ter um nome, mas dificilmente tinha oportunidade de crescer cinematograficamente. Quando mudou o formato, e quando começou também a mudar a luta feminina, foi que Suzana conseguiu fazer outros filmes.
Mas todo o nosso problema é político. Tivemos dois governos que podaram muito a gente: o do Collor e o do [Jair] Bolsonaro. Infelizmente, sempre corremos o risco de viver essas barreiras. Eles vão podando as pessoas que têm voz – os artistas, os jornalistas -, para que [o cinema] não vire indústria. Mas a gente está renovando essa indústria. Depois que o cinema se regionalizou [com políticas públicas que apoiaram a produção audiovisual de diferentes regiões brasileiras], depois que entrou o sistema digital, a gente pôde ver outras janelas, participar de outros festivais. Apareceu muita gente em todos os segmentos, realizando seus sonhos, seu desejo de ser diretor de fotografia, ou diretora, ou mexer com som. Hoje temos muitas equipes de mulheres se formando e abrindo outros caminhos. Que assim seja! Que assim siga! Que a gente possa ter a oportunidade de galgar outros mercados e virar indústria, para que não dependamos totalmente desses governos. Mas que também tenhamos os editais necessários para contar nossas memórias e a realidade das coisas.
O relançamento de A Hora da Estrela acontece em um momento especial da sua carreira, depois de filmes como Pacarrete, A Mãe e A Praia do Fim do Mundo. Como você vê esse momento e que balanço faz desse período entre a Marcélia que estreava no cinema e a Marcélia de hoje?
A Hora da Estrela foi um filme muito especial para aquela época e eu ganhei muitos prêmios. Mas a Embrafilme logo acabou e a indústria já estava descendo ladeira abaixo. Para mim, foi muito difícil me levantar. Passei um longo tempo me preparando para que de dez anos para cá minha carreira mudasse. Para que percebessem que eu ainda estava no páreo, que ainda estava lutando para fazer um belo personagem, um personagem diferente, que não fosse empregada. Por questão de sobrevivência, fui ficando no Rio de Janeiro e fazendo empregadas na televisão – e que muitas vezes não tinham voz ou história. Chegou um tempo em que falei: “Não, vou voltar para minha cidade, vou colocar a mão na massa, vou começar a escrever personagens para mim”. E foi o que fiz. Voltei para minha cidade e dirigi três curtas-metragens. Foi também quando conheci o Allan [Deberton, diretor de Pacarrete] e o Camilo Cavalcante, que veio com A História da Eternidade.
Em que momento você diria que teve início essa nova fase da sua carreira?
Essa reflexão toda veio depois de Madame Satã. O Karim me deu a oportunidade de fazer a personagem [Laurita] quando todo mundo dizia: “Não, essa personagem é carioca, é uma prostituta carioca”. E ele disse que não, que [o filme era sobre] um povo que vem do Nordeste, que vem migrando. A história que ele queria contar era a de Madame Satã, que veio do Nordeste, que era negro, pobre, homossexual, que foi vendido e escravizado. E as prostitutas que ele encontrava no caminho, debaixo das marquises no Rio de Janeiro, eram como ele. Então o Karim me deu essa oportunidade. E eu disse: “Karim, apesar de tudo, apesar de toda a luta dessa mulher, ela não vai ter dor, ela vai sorrir para a vida”. E Karim deixou que eu vivenciasse essa mulher, com essa alegria, cheirando o pó que tinha de cheirar, bebendo, indo para a noite com Madame Satã. Fiquei feliz da vida de poder ter essa oportunidade diferente. E foi aí que disse: “Preciso repaginar essa carreira”. Comecei com os curtas, me inscrevendo nos editais. Aí senti necessidade de preparar atores de teatro para atuarem nos meus curtas, porque não queria buscar atores de fora, e nem tinha grana para isso. Então também comecei a preparar elenco. Fiz muitas aulas de direção, muitos cursos preparatórios com professores das universidades de João Pessoa, o que foi incrível. Deu um boom na minha vida, mudou meu pensamento e minha relação com o cinema.
Que conselho você daria às mulheres que querem trabalhar no audiovisual?
Nunca desistam dos seus sonhos. Devemos nos juntar e ter a consciência de que precisamos umas das outras, de que precisamos abrir caminho para todas. Em vez de colocarmos uma equipe com maioria de homens, vamos misturar mais. Não é que a gente vá tirar os homens de campo, mas vamos dar oportunidade. Vamos mudar essa mentalidade de que a gente se dá bem em cima do outro. Vamos dar energia, força e oportunidade.
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema