A primeira voz que ecoa em Alvorada, documentário de Anna Muylaert e Lô Politi sobre o processo que derrubou a primeira mulher presidente do Brasil, não é de Dilma Rousseff e, sim, de Jair Bolsonaro. Embora veja apenas um fundo preto e os créditos iniciais, o espectador se lembra bem da imagem que acompanha aquelas palavras: em pleno Congresso Nacional, rodeado por outros homens, o então deputado vota a favor do impeachment fazendo uma homenagem ao coronel que torturou Dilma durante a ditadura militar.
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Se em 2016 a cena foi estarrecedora, em 2021 parece uma espécie de marco inicial da atual tragédia política e sanitária brasileira. E é nesse espírito de revisão que Alvorada chega ao público nesta quinta-feira (27), com lançamento simultâneo nas plataformas digitais (Now, Oi, Vivo Play, Google Filmes, iTunes e Youtube) e nos cinemas de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Brasília e Maceió.
A estreia de Alvorada acontece consideravelmente mais tarde do que a de outros filmes sobre o impeachment, como O Processo (2018), de Maria Augusta Ramos; Excelentíssimos (2018), de Douglas Duarte; e Democracia em Vertigem (2019), de Petra Costa, este último indicado ao Oscar de melhor documentário. Mas as cineastas consideram que o contexto atual – na segunda metade do governo Bolsonaro e em meio à pandemia – é favorável a uma obra que propõe olhar para trás para entender o presente. “Não fosse o golpe, não haveria esse cara”, disse Anna Muylaert, também diretora de Que Horas Ela Volta? (2015) e Mãe Só Há Uma (2016), em entrevista ao Mulher no Cinema. “Embora seja um péssimo momento para o País, é um excelente momento para o filme e para se fazer uma revisão de quem foi a Dilma, uma figura tão maltratada no passado recente.”
Para Lô Politi, também diretora de Jonas (2015), a passagem do tempo pode ajudar Alvorada a superar um obstáculo comum a todos os documentários que se propuseram a retratar o impeachment: ser visto por espectadores do outro lado do espectro político em tempos tão polarizados. “Antes, só uma pequena parte da população achava que aquilo era golpe; agora, quase todo mundo acha, mesmo quem o apoiou”, afirmou a diretora. “Está mais fácil de as pessoas verem com outros olhos.”
Para realizar Alvorada, Muylaert e Politi não tiveram tempo de percorrer os caminhos tradicionais do cinema. Com recursos e equipamentos próprios, elas foram a Brasília acompanhadas de uma pequena equipe, formada basicamente por uma produtora, uma assistente de direção e um responsável pelo som, além do diretor de fotografia César Charlone, que operava uma das câmeras enquanto Politi operava a outra. Em geral, ambos filmaram separados e sozinhos, contando com equipe completa apenas em eventos maiores.
A proposta das diretoras era filmar não apenas a presidente, mas o cotidiano do Palácio do Alvorada, com a câmera acompanhando tanto políticos conhecidos como funcionários anônimos. Dilma aceitou a ideia, mas aos poucos demonstrou incômodo com a câmera e muitas vezes limitou o acesso das cineastas, uma dificuldade que o documentário não tenta esconder. Alguns dos melhores momentos, aliás, se dão durante uma conversa na qual as diretoras tentam acertar os pontos com a ex-presidente. “Houve uma crise, a gente conversou e ela falou bem claramente sobre os limites dela. A partir daí, acho que tudo foi se ajeitando”, disse Muylaert. “Mas, se você observar, no início do filme ela está mais próxima e no final, vai ficando mais distante.”
Leia os principais trechos da entrevista com Anna Muylaert e Lô Politi:
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Este é um filme de urgência, que retrata um acontecimento no calor do momento. Algum evento em particular motivou vocês a registrar o que estava acontecendo? Como se deu a decisão?
Lô Politi: A Dilma estava afastada havia cerca de um mês e a gente sentiu a necessidade de mostrar um lado que ninguém estava mostrando. A imprensa estava cobrindo o processo de impeachment intensamente e a partir de todos os pontos de vista, menos o dela. Ninguém sabia muito bem o que estava acontecendo com ela e ninguém a conhecia muito bem. Durante todo o período em que esteve na presidência, ela não se expôs muito do jeito que ela de fato é. Juntando as duas coisas, resolvemos sair correndo e ir até lá. Pedimos autorização para ela, apresentamos a nossa ideia de filmá-la dentro do Alvorada e, surpreendentemente, ela topou. E aí fomos na urgência mesmo, com o nosso dinheiro e o nosso equipamento.
Há momentos em que a Dilma pede para vocês pararem de filmar e se mostra bastante incomodada com a presença da câmera. Como vocês lidaram com essas limitações impostas por ela? Filmar os funcionários do Alvorada foi uma forma de driblar a falta de acesso?
Anna Muylaert: Desde o início já tínhamos a ideia de filmar os três andares do Alvorada, mas acho que a Dilma não tinha muita ideia do que era ter uma equipe atrás dela o tempo todo. E acho também que a nossa equipe foi muito…no início, [a equipe] achou que teria uma liberdade e a Dilma mostrou que não. Houve uma crise, a gente conversou e ela falou bem claramente sobre os limites dela. A partir daí, acho que tudo foi se ajeitando. Mas, se você observar, no início do filme ela está mais próxima e no final, vai ficando mais distante.
Lô Pôliti: Ela não tinha muita noção, e acho que ninguém tem, do que é ter uma câmera dentro de casa, ainda mais em um momento tão tenso e difícil. Ela foi se incomodando e isso foi determinando até a estética do filme. A gente começou a ir entrando pelas beiradas para chegar nela de outra maneira. Tínhamos bastante tempo para ir entrando mais profundamente, pois ficamos três meses por lá e não acontecia muita coisa. Tínhamos uma expectativa de que ia acontecer um milhão de coisas, de que ia ter resistência, gente na porta, protesto, um milhão de reuniões. E não teve. O que está no filme foi o que a gente de fato viu.
O filme começa com a voz de Bolsonaro votando a favor do impeachment e citando o homem que torturou a Dilma durante a ditadura. Hoje, Bolsonaro é o presidente. O tempo que se passou entre as filmagens e o lançamento alterou a montagem ou a pós-produção de alguma forma?
Anna Muylaert: A única coisa que mudou foi que, antes, a gente tinha outro deputado falando no começo do filme. Por razões óbvias, decidimos colocar o Bolsonaro. A montagem foi lenta mesmo, o filme tomou o tempo da depuração dele e por acaso saiu agora. Embora seja um péssimo momento para o País, é um excelente momento para o filme e para se fazer uma revisão de quem foi essa figura tão maltratada no passado recente.
Lô Politi: E uma revisão do que foi aquele momento. Foi ali que disparou, de fato, a corrosão da democracia que estamos vivendo de forma acelerada. Fica bem claro que todo o processo político dentro do congresso acabou gerando o que estamos vivendo agora. Então é bom ver o filme sob a luz do que está acontecendo agora. Ele ajuda entender onde a gente está e como a gente chegou até aqui.
Anna Muylaert: Quer dizer, para quem estava lá a corrosão era muito clara. Ninguém poderia imaginar que aquele cara viraria presidente, mas também isto foi consequência direta do golpe. Não fosse o golpe, não haveria esse cara. [Nas eleições de 2018] ele teria sido um candidato nanico, para pegar 3% dos votos. No entanto, acabou catalisando um ódio, um circo que já estava montado contra a Dilma e contra o PT – na imprensa, na classe política, nas oligarquias. Aí tudo se juntou. Só que o ator que apareceu foi uma zebra.
Num momento de forte polarização como o que vivemos, é um desafio atingir espectadores do “outro lado” do espectro político com um filme sobre o impeachment. Houve uma preocupação de vocês em tentar falar com um público mais amplo?
Lô Politi: Acho que este filme não é menos de esquerda, mas tem uma pegada mais humana. Ele foca em uma pessoa, e isso é interessante. Conheço pessoas que não simpatizavam nem a Dilma, nem com o PT, mas que, vendo o filme, viram uma outra pessoa e mudaram de opinião sobre ela. E acho que a curiosidade [sobre o impeachment] aumentou. Antes, só uma pequena parte da população achava que aquilo era golpe; agora, quase todo mundo acha, mesmo quem o apoiou. Está mais fácil de as pessoas verem com outros olhos.
Anna Muylaert: É um filme de observação sobre um tempo e um espaço. Ele não se propõe a contar o golpe, ele mostra o que a câmera viu. Claramente o filme toma o lado dela, já que estamos na casa dela. Do contrário, ela não abriria a porta. Mas ele não está contando o golpe, está mostrando um momento, então acaba sendo menos político do que os outros. Como a Lô disse, ele é mais humano, e muita gente que não gosta da Dilma politicamente vê ali outros lados de uma personagem histórica. Acho que este filme para sempre será consultado, tanto por estudantes de política quanto por mulheres e feministas. É um registro.
O impeachment da Dilma aconteceu cerca de um ano após o debate sobre gênero no audiovisual começar a ganhar força no Brasil, e o próprio lançamento de Que Horas Ela Volta? foi um dos acontecimentos que marcaram esse momento. Me parece interessante que, em meio a este debate, quatro cineastas mulheres tenham ido registrar o processo de impeachment. Existia uma identificação pessoal com a figura da Dilma, e com os ataques que ela estava sofrendo, que ia além da curiosidade histórica e de cineasta, e até da identificação política com ela?
Anna Muylaert: Para mim era muito claro que aquilo ali era machismo, que aquilo era uma surra na Geni. E sem dúvida isto fez com que as mulheres fossem até lá. Aliás, quando o Lula foi preso, também só foi mulher, o que é engraçado. [Havia um desejo de] mostrar a Dilma, mostrar o outro lado da Dilma, o lado culto, inteligente e curioso, que a gente conhecia e que a imprensa não dava. Ela sempre aparecia truculenta, a cobertura nunca foi simpática a ela. Sem dúvida revelar esses lados dela era um dos nossos objetivos.
Lô Politi: Não é à toa que tantos filmes sobre o impeachment foram feitos por mulheres. Houve de fato um levante de mulheres que falaram: “peraí, vamos mostrar isso aqui direito”. Porque a narrativa estava sendo totalmente contada pelo patriarcado.
Vocês se encontravam com as outras diretoras e equipes? Trocavam figurinhas?
Lô Politi: Sim. A Guta [Maria Augusta Ramos] estava no Congresso praticamente o tempo todo e a Petra [Costa] estava em todos os lugares. Mas elas iam ao Palácio às vezes, como quando a Dilma tinha encontros com correspondentes internacionais ou encontros com mulheres. E embora não esteja no filme, a gente também foi filmar no Congresso. Então nos encontramos várias vezes, trocamos figurinhas e nos ajudamos.
A saída da Dilma do poder também marca o início da crise da Agência Nacional do Cinema (Ancine), já que os problemas começaram no governo Temer e pioraram dramaticamente com a eleição do Bolsonaro. No que diz respeito às discussões sobre gênero e raça, havia um importante movimento de inclusão acontecendo dentro da Ancine, que ainda sobreviveu por algum tempo, em grande medida por causa da presença da Débora Ivanov na diretoria. Hoje esse movimento parece abandonado, já que até os dados sobre gênero e raça, fundamentais para qualificar o debate e pensar políticas públicas, pararam de ser divulgados. Diante da falta de atenção institucional a essa questão, como garantir que ela siga em pauta?
Anna Muylaert: Acho que a entrada desse cara [Bolsonaro] é, de certa maneira, uma reação a esse levante das mulheres e dos negros, até mundialmente. E isso [as ações inclusivas] parou na Ancine, mas nos âmbitos estaduais e municipais está rolando. Estou participando de um grupo da Associação Brasileira de Cineastas para dar esses parâmetros para os editais da Spcine, e vamos fazer a proposta de cotas, tanto de gênero quanto de raça. Acho que o mundo inteiro está indo para este lugar. Então mesmo eles parando na Ancine, de alguma maneira [o movimento] não parou. Temos de ir pelos âmbitos menores, mas o pensamento está aí. Ninguém mais quer fazer um edital e selecionar dez homens brancos.
Então não tem volta?
Anna Muylaert: Não, de jeito nenhum. Não tem volta porque todo mundo está consciente de que não dá para ficar só na mão dos mesmos. Até os mesmos estão achando isso.
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema