O primeiro longa-metragem da diretora Brunna Laboissière surgiu de um hábito: pegar carona pelas estradas do Brasil. Estudando Arquitetura e Urbanismo em São Paulo, ela costumava viajar assim para visitar os pais em sua cidade natal, Goiânia. Um dia, foi surpreendida ao ver quem dirigia o caminhão que parou para que ela subisse na boleia: não era um homem, como costumava acontecer, mas, sim, uma mulher trans.
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Os dois dias e meio de viagem levaram à realização de Fabiana, documentário que fez sua estreia nacional no Olhar de Cinema, em Curitiba, e foi selecionado para a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. O filme acompanha a última viagem de Fabiana pelas rodovias brasileiras antes de sua aposentadoria. Durante 28 dias e munida apenas de câmera, microfone e gravador, a diretora recuperou algumas das muitas histórias que a motorista acumulou em 30 anos de viagens.
Como Meu Corpo É Político, de Alice Riff, Fabiana propõe ao espectador que acompanhe a rotina de uma pessoa trans, optando por uma ideia de convivência e não por um debate explícito sobre determinadas questões. “Pensei que ia fazer muitas entrevistas, mas logo vi que quando fazia perguntas muito diretas, ela não respondia, ficava dura”, contou a diretora, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Percebi que as histórias viriam mais do tempo na estrada.”
Assista ou leia os principais trechos da entrevista com Brunna Laboissière:
Como você conheceu a Fabiana?
Viajei muito de carona pelo Brasil, para vários lugares, desde os 20 anos. Por não ter dinheiro, ser estudante e querer viajar, mas também por entender que o caminho é tão importante quanto chegar a algum lugar. As pessoas dão caronas porque querem conversar, querem contar histórias, geralmente ligadas aos lugares pelos quais se está passando. Então a gente ouve as histórias e vê a paisagem pela janela. É uma maneira de conhecer esse caminho: é paisagem e cartografia sentimental e oral dessas pessoas. Sou de Goiânia e moro em São Paulo há 12 anos. Ia até Goiânia, visitar meus pais, pegando carona. Numa dessas viagens, a Fabiana parou, o que me surpreendeu, pois geralmente quem para são os caminhoneiros homens. Aí já fiquei encantada.
E o que a levou a fazer um filme sobre ela?
Viajamos juntas durante dois dias e meio e já conheci muitas histórias. Ela me lembrou os contadores de causo de Goiás, que falam de coisas simples da vida, mas de maneira engraçada e lúdica. Dava vontade de ouvir mais. Pensei que ia fazer muitas entrevistas, mas logo vi que quando fazia perguntas diretas, ela não respondia, ficava dura. Percebi que as histórias viriam mais do tempo na estrada. Eu jogava algumas coisas que dali algumas horas, ou no dia seguinte, ela ia lembrar, relacionar com outra coisa e me contar.
Você era a única pessoa da equipe?
Sim. Tinha uma câmera com um tripé e Fabiana usava um microfone de lapela ligado num gravador. No caso do som, a equipe da pós trabalhou bastante, pois como estava sozinha era difícil controlar [a qualidade]. Mas era uma opção para a gente criar uma relação e ela se sentir mais livre para contar [suas histórias]. E também por causa das leis de trânsito: era mais fácil seguir em duas pessoas.
O filme me lembrou Meu Corpo É Político, de Alice Riff, no sentido de propor a convivência com uma pessoa trans e mostrar sua rotina, abordando suas questões sem necessariamente entrar no tema de forma explícita. Foi sua intenção fazer isso?
Em primeiro lugar, a Fabiana não costuma trazer muito isso. Acho que ela está mais interessada em se apresentar como lésbica e, no filme, preferia falar sobre o enfrentamento em relação aos caminhoneiros e dizer que conquista [mais mulheres] do que eles, do que falar dos preconceitos que sofreu. Outra questão é que muitas pessoas não a conhecem como mulher trans: para muita gente, ela não se apresenta assim. E como é uma forma de ela se apresentar para o mundo, eu também fui respeitando. Fui dando o espaço para a maneira como ela queria se colocar. Mas fiquei em dúvida se estava deixando muito de lado [a possibilidade de fazer] esse debate trans de maneira mais explícita. Mas conversando com outras pessoas trans, muitas diziam: “a gente não é só isso, é isso também”. Então me senti mais confortável. Outro ponto é que, além de não ser militante, Fabiana tem quase 60 anos e não está num processo de transição ou aceitação, está em outra fase da vida.
O filme está começando a ser visto pelo público agora, e as sessões na Mostra são as primeiras em São Paulo. Considerando o contexto político do Brasil, como vê este lançamento?
De um lado, está em jogo o cinema independente, que não sei se a gente vai conseguir produzir, dependendo do que virá. De outro, a existência de pessoas como a Fabiana está completamente em risco. As pessoas trans, lésbicas, mesmo mulheres cis fazendo coisas que o status quo não espera…isso vai estar completamente em risco. Passar o filme na Mostra também é juntar pessoas no sentido de pensar uma resistência, de se unir. Está em jogo a gente se unir, ter mais afeto, se cuidar, estar mais juntos. Muita transformação vem do afeto.
Qual o maior desafio que encontrou na realização deste seu primeiro longa-metragem?
A montagem. É tênue a linha entre mostrar e não mostrar. Às vezes queremos proteger demais, mas a realidade é cheia de conflitos e tudo deve ser colocado. Ao mesmo tempo você pode mostrar mais do que deveria, mostrar o que não deveria ser público. Fabiana brigava comigo quando eu deixava de filmar, mas em alguns momentos achava que não deveria estar gravando. Foi um desafio aprender o que era para ser o filme e o que não era.
Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema
Foto do topo: Mario Miranda Filho/Agência Foto