Autora, Helena Ignez rejeita título de musa: “A voz da musa é o silêncio”

Encontrar um texto sobre Helena Ignez que não use a palavra musa – do Cinema Novo, marginal, brasileiro – não é das tarefas mais fáceis. Com mais de 50 anos de carreira e papéis marcantes em alguns dos mais importantes filmes nacionais, a atriz e diretora é frequentemente citada como inspiração de outros cineastas – especialmente os dois com quem foi casada: Glauber Rocha (1939-1981) e Rogério Sganzerla (1946-2004).

Mas se musa supõe inspiração passiva, e não protagonismo próprio, parece uma palavra cada vez menos apropriada para definir Helena Ignez. Nesta quinta-feira (27), ela lança A Moça do Calendário, seu quinto e mais maduro longa-metragem como diretora, peça-chave do cinema “autoral, mas voltado para o outro” que ela faz. Não por acaso, o documentário sobre a artista que está sendo rodado pela filha, Sinai Sganzerla, já tem título definido: A Mulher de Luz Própria

“É um vício social diminuir a mulher. O homem é o protagonista, a mulher, a coadjuvante”, afirmou Helena, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Na verdade, cheguei à conclusão que Glauber e Rogério são meus musos. Porque só tenho coisas maravilhosas para falar deles, como influência cinematográfica e na minha personalidade.” A conclusão, segundo ela, é recente: “Me vinguei um pouco dizendo ‘meus musos'”, brincou. “É a primeira entrevista que faço isso. É novíssimo.” Em seguida, elaborou: “Talvez para os musos seja ótimo ser muso, mas a mulher fica como um objeto do olhar, uma inspiração passiva. A voz da musa tem de ser o silêncio. Então é muito perigoso ser musa.”

Esta ideia está presente em A Moça do Calendário, uma adaptação de Helena para um roteiro de curta-metragem escrito por Sganzerla em 1987, e por sua vez baseado em contos de Luis Antonio Martins Mendes. Além de optar por um longa, a artista também trocou o cenário de Rio de Janeiro para São Paulo, incluiu elementos da obra do filósofo Byung-Chul Han e desenvolveu melhor a personagem feminina (interpretada por outra filha, Djin Sganzerla). Ao contar a história de Inácio (André Guerreiro Lopez), mecânico que encontra motivação ao sonhar com a moça que estampa um calendário, Helena aborda desigualdade social, relações de trabalho, machismo e racismo com o humor e a leveza que marcam sua obra.

Veja o vídeo no qual Helena Ignez relembra suas personagens marcantes:

A carreira como atriz começou em O Pátio (1959), dirigido por Glauber Rocha, e incluiu trabalhos como Assalto ao Trem Pagador (1962) e O Padre e a Moça (1965). Ao lado de Sganzerla, criou personagens icônicas como Janete Jane, Sonia Silk e Ângela Carne e Osso. Passou para o outro lado das câmeras nos anos 1970, realizando filmagens para A Miss e o Dinossauro, curta que só seria finalizado e lançado em 2005. Já no longa-metragem, dirigiu Canção de Baal (2007), Luz nas Trevas: A Volta do Bandido da Luz Vermelha (2010), Feio, Eu? (2013) e Ralé (2016). Leia os principais trechos da entrevista:

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A Moça do Calendário é baseado em um roteiro de 1987. O que te fez querer filmá-lo?
[O roteiro] tinha uma essência extraordinária. Pensei: “É uma joia, mas que deverá ser transformada”. Tinha de acompanhar o tempo social, as mudanças. A visão primeira do Rogério era surpreendentemente moderna, mas ele estava adaptando contos e [o texto] fugia ao meu pensamento no geral, que era de a moça do calendário não ser um objeto sexual, mas uma mulher surpreendente, que ensina ao Inácio e lhe dá uma motivação para a vida. Apesar de ser bom moço, ele era machista. Então existe uma transformação: ele melhora por causa da relação com ela.

Cena do filme “A Moça do Calendário”, de Helena Ignez

Foi você quem deu o tom feminista do filme?
Sim, dei a mudança radical em dois momentos. Neste, de ter uma [personagem] mulher com experiência de vida, valorizá-la. Foi a primeira coisa que me interessou nesta adaptação. A outra coisa é que estamos no século 21 e vivemos em uma sociedade classificada como neuronal. Me interessou muito pesquisar sobre este universo. Fui em cima do livro A Sociedade do Cansaço, do filósofo Byung-Chul Han, e uni com esse Brasil eterno, que infelizmente não muda. As expectativas são sempre de melhora mas há um desencanto muito grande também.

Seu filme fala de assuntos sérios – desigualdade, machismo, racismo, reforma agrária, relações de trabalho – de forma leve e, a meu ver, sem nostalgia e saudosismo. Você concorda?
Não tenho nenhum tipo de nostalgia. Acho que temos de ir para frente, temos de melhorar. Não tenho saudades do passado nesse sentido. Em nenhum, né? É isso.

Você vê as lutas sociais e o engajamento dos jovens de hoje com otimismo?
Claro. Inclusive o feminismo é forte, né? Existe um pensamento feminista brasileiro forte, jovens com atitude, posição. Acho que os jovens só precisam envelhecer [risos]


“É sempre um bom momento para lançar um filme livre.
Não poderia fazer cinema se não fosse assim. Meu cinema é autoral,
mas não é egoísta: é voltado para o outro.”

Imagem do filme “A Moça do Calendário”, de Helena Ignez

A palavra “liberdade” é muito facilmente associada à sua carreira, e com A Moça do Calendário não é diferente. Como é lançar um filme tão livre em um momento em que as pautas conservadoras tentam avançar no Brasil e no mundo?
É sempre um bom momento para lançar um filme livre. Não poderia fazer cinema se não fosse assim. Meu cinema é autoral, mas não é egoísta: é voltado para o outro. O humor é uma arma política fortíssima: é perigoso, porque é transformador. Acredito profundamente no humor e nessa leveza profunda que orienta meu trabalho.

Muitos críticos disseram que este é o seu filme mais maduro como diretora. Você concorda?
Sim. A cada filme que faço, digo: “Nossa, estou aprendendo a dirigir”. Isso é legal. Dá uma satisfação. É o olho que vai sendo mais educado, [que fica] mais exigente e [vai] encontrando soluções para o que se quer expressar. Acho isso muito gostoso.

Seu primeiro filme como diretora foi lançado em 2005, mas teve filmagens nos anos 1970. Quando passou para o outro lado da câmera, tinha referências de cineastas mulheres?
Quando comecei a fazer cinema e teatro com o Glauber, aos 18 ou 19 anos, havia duas diretoras muito interessantes, das quais ele gostava bastante. Uma era a Ida Lupino (1918-1995), grande estrela e excelente diretora. A outra era Maya Deren (1917-1961), que não estava no cinema hollywoodiano e era autora experimental. Uma mulher extraordinária.


“Até hoje tem [comentários do tipo]: “Não é você que foi casada com Glauber Rocha? E também com o Rogério?” É um vício social de diminuir a mulher. Ela tem sempre de acompanhar: o homem é o protagonista, a mulher, a coadjuvante. Mas isso vai mudar. Acho que já mudou bastante. Na verdade, cheguei à conclusão que os dois são meus musos. Porque só tenho coisas maravilhosas para falar deles, como influência cinematográfica e na minha personalidade.”


No ano passado, ao receber uma homenagem, você disse que não foi fácil ter identidade própria tendo sido casada com Glauber Rocha e Rogério Sganzerla. Como foi esse trabalho para ser reconhecida como Helena Ignez, e não como a mulher de alguém?
Não fiz nenhum trabalho especialmente, as pessoas foram reconhecendo mesmo. Mas até hoje tem [comentários do tipo]: “Não é você que foi casada com Glauber Rocha? E também com o Rogério?” É um vício social de diminuir a mulher. Ela tem sempre de acompanhar: o homem é o protagonista, a mulher, a coadjuvante. Mas isso vai mudar. Acho que já mudou bastante. Mas eu especialmente não fiz nada. Na verdade, cheguei à conclusão que os dois são meus musos. Porque só tenho coisas maravilhosas para falar deles, como influência cinematográfica e na minha personalidade.

É difícil ler um texto sobre você que não use a palavra “musa”. Você gosta de ser chamada assim?
[Risos] Exatamente, me vinguei um pouco [dizendo] “meus musos”. É uma descoberta recente, nunca falei que eles eram meus musos. É a primeira entrevista que faço isso. É novíssimo.

Me parece que “musa” não supõe protagonismo, e sim inspiração.
É péssimo, né? Para uma mulher, é péssimo. Talvez para os musos seja ótimo ser muso, mas a mulher fica como um objeto do olhar, uma inspiração passiva. A voz da musa tem de ser o silêncio. Então é muito perigoso ser musa. Muito mesmo. Se você acreditar nessa, pode ficar completamente neurótica.


“Talvez para os musos seja ótimo ser muso, mas a mulher fica como um objeto do olhar, uma inspiração passiva. A voz da musa tem de ser o silêncio. Então é muito perigoso ser musa. Muito mesmo. Se você acreditar nessa, pode ficar completamente neurótica.”


Recentemente a Agência Nacional do Cinema (Ancine) divulgou uma pontuação dada aos cineastas com base em desempenho comercial e quantidade de obras. O Rogério foi um dos mais citados por quem criticou esses critérios, já que pela lista de desempenho comercial ele é um cineasta nota cinco. Você é nota seis. O que achou disso?
Achei absolutamente hilário, de um ridículo extraordinário. Fiquei em dúvida se as pessoas sabiam que o Rogério estava morto há 14 anos. Pelo amor de Deus: um cineasta morto há 14 anos, como você vai estabelecer se ele é comercial ou não? O Bandido da Luz Vermelha fez três milhões de espectadores em 15 dias só em São Paulo –  é o mesmo cineasta! Também achei o seis engraçadíssimo. Gostei demais, [porque é] mais do que ele [Rogério] e mais do que todos os meus amigos que são cinco. Ótimos artistas, grandes artistas…é um vexame, né? Isso não é critério, isso é um momento vexaminoso.

Como vê o momento atual da Ancine?
Acho um momento complicado, de expectativa. Como se diz no final de O Bandido da Luz Vermelha, ninguém sabe o que vai acontecer, vamos ver como vamos sair dessa. É um órgão poderoso, que teve significado muito grande durante toda a era Lula. Até o Manoel Rangel entregar a Ancine [ele ocupou o cargo de diretor-presidente de 2006 a 2017], ela estava funcionando perfeitamente. Agora estou com expectativas, espero editais…é delicadíssima a situação dos artistas de cinema.

Num debate você disse que gosta de filmes e cineastas que fazem pensar e não deixam o espectador acomodado demais. Que filmes e cineastas não te deixam acomodada atualmente?
Vários. Poderia citar Poesia sem Fim, do Alejandro Jodorowsky, que acho muito interessante. Os filmes dele têm essa qualidade de não deixar acomodar. A Naomi Kawase, também: você fica sempre atenta àquele mundo todo que ela apresenta. Acho o último filme dela, Esplendor, muito bonito, muito bom. [Jean-Luc] Godard sempre, a qualquer momento, em qualquer época. Acho impressionantemente forte. E gosto de diretores brasileiros variados, dos quais sempre espero o próximo filme, como Cristiano Burlan e Gustavo Vinagre, por exemplo.

Que conselho você daria às mulheres que querem trabalhar no cinema?
Não gosto muito de dar conselho, mas acredito que serem elas mesmas. Entender o que é a mulher, porque na verdade estamos fazendo a construção da mulher. Não fomos construídas com elementos de poder, protagonistas de nossas próprias vidas, e isso está ficando cada vez mais claro. As novas gerações estão surgindo com grande brilho. E brasileiras, né? Sem nenhum tipo de patriotismo babaca, acho que temos de ver esse sentido. Estou trabalhando [em um documentário] com artistas de circo, populares, faquires…você vê como o Brasil é especial. Existe uma coisa brasileira que a gente não deve deixar que seja destruída. Então é isso: ser você mesma, buscar essas raízes e enlouquecer.


Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema

Foto do topo: Leo Lara/Universo Produção

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