Crítica: “Anatomia de uma Queda” questiona percepções do espectador

Dirigido pela francesa Justine Triet, Anatomia de uma Queda chegou aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (25) com credenciais de respeito: venceu a Palma de Ouro no Festival de Cannes, figurou nas listas de melhores do ano publicadas pelas revistas Sight and Sound e Cahiers du Cinéma, dominou a última edição do Prêmio do Cinema Europeu e recebeu cinco indicações ao Oscar, incluindo a única de uma mulher na categoria de direção.

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Independentemente do que ocorrer na premiação americana, que entregará seus prêmios em 10 de março, Triet já pode ser considerada uma das maiores vencedoras da temporada. A trajetória internacional impecável de Anatomia de uma Queda certamente elevou a outro patamar a carreira da diretora, que já era conhecida em seu país natal e por espectadores com especial interesse pelo cinema francês ou o Festival de Cannes. Seu primeiro longa-metragem de ficção, A Batalha de Solferino (2013), também entrou na lista de melhores da Cahiers du Cinéma; o segundo, Na Cama com Victoria (2016), foi exibido na Semana da Crítica; e o terceiro, Sibyl (2019), competiu pela Palma de Ouro. Todos, vale dizer, estão disponíveis para streaming no Brasil.


Em Anatomia de uma Queda, Triet volta a colaborar com dois parceiros de Sibyl: o roteirista Arthur Harari, com quem assina o texto (e com quem tem duas filhas), e a atriz alemã Sandra Hüller, agora elevada a protagonista. A cineasta estava tão convicta quanto à escalação de Hüller para Anatomia de uma Queda que, ao começar a escrever o roteiro durante a pandemia, batizou a personagem com seu nome: Sandra.

Quando o filme começa, Sandra está dando uma entrevista, mas tem de interrompê-la por causa da música alta que o marido, Samuel (Samuel Theis), põe para tocar. Ambos são escritores (ela alemã, ele francês; ela bem-sucedida, ele, nem tanto) e vivem em um chalé nos Alpes franceses com Daniel (Milo Machado Graner), o filho de onze anos que perdeu a visão em um acidente. Embora nada seja dito, o volume e o timing da canção (um cover de “P.I.M.P.”, do rapper 50 Cent, gravado pela Bacao Rhythm & Steel Band) sugerem que há tensão entre o casal. A entrevistadora vai embora e Daniel sai para um passeio com o cachorro. Ao voltar para casa, encontra do lado de fora o corpo do pai, cuja morte foi provocada por uma queda.

Teria esta queda sido um acidente, suicídio ou homicídio? Espera-se que o filme se ocupe de responder a essa pergunta, já que dedica grande parte de sua duração ao julgamento de Sandra, acusada pela promotoria de ter matado Samuel. Na primeira reunião com seu advogado, Vincent (Swann Aurlaud), ela trata de assegurar sua inocência: “Eu não o matei”, diz a escritora. “Não é essa a questão”, responde o advogado, no primeiro indicativo de que Anatomia de uma Queda não está interessado em revelar a verdade sobre o que aconteceu, e sim mostrar como a verdade pode ser questão de interpretação.

Sandra Hüller em cena de “Anatomia de uma Queda”, filme dirigido por Justine Triet – Foto: Divulgação

Para que Sandra possa ser declarada culpada ou inocente, o julgamento tem de expôr a intimidade do casal: os problemas financeiros que enfrentavam, o impacto causado pelo acidente de Daniel, a bissexualidade e os relacionamentos extraconjugais de Sandra, seu desagrado em trocar Londres pela pequena cidade natal do marido e o ressentimento dele em relação ao desequilíbrio profissional que se estabeleceu entre os dois.

É fácil perceber que o casamento passava por problemas, mas não tão fácil decidir se esses problemas podem ser considerados provas. A opinião de um especialista forense pode ser questionada pelo parecer conflitante de outro. Trechos dos livros de Sandra podem ser encarados como ficção pura ou como reflexo da personalidade e dos desejos da autora. As explicações dadas por ela podem ser sinceras ou ensaiadas. As lembranças de Daniel podem ser fiéis à realidade ou alteradas pela passagem do tempo e por fatos do presente. E mesmo o que a princípio parece objetivo, como a gravação em áudio de uma discussão do casal, também é relativizado. “São as nossas vozes, mas não é o que somos”, diz Sandra. “As pessoas exageram quando brigam.”

O roteiro e a direção se propõem a manter o público em estado de incerteza, e fazem isso muito bem. Uma cena marcante é a do depoimento de Daniel, que fala de pé no centro do tribunal tendo de um lado o promotor e, do outro, o advogado de defesa. A câmera se move da esquerda para a direita conforme os dois debatem, mantendo em quadro o menino que, assim como o público, pende de um lado para o outro sem saber o que pensar.

Neste cenário de dúvida constante quem também tinha papel fundamental era a atriz Sandra Hüller, que mais uma vez faz um trabalho excepcional (e em inglês e francês, que não são suas línguas maternas). Um pequeno excesso aqui ou ali poderia colocar toda a ambiguidade e tensão a perder, mas Hüller calibra perfeitamente a personagem, mantendo-a indecifrável até aos olhos do próprio filho.

Justine Triet foi a terceira mulher a ganhar a Palma de Ouro em Cannes – Patricia de Melo Moreira/AFP (publicada no site do festival)

Anatomia de uma Queda retoma temas que Triet explorou em filmes anteriores, incluindo disputas entre casais e os limites entre ficção e realidade. Outro elo entre as obras está no modo como representa a mais sagrada figura feminina do cinema (e fora dele). Suas protagonistas são não apenas mulheres, mas mães, e não apenas mães, mas mães que namoram e fazem sexo, que têm desejo e ambição, que são vistas mais no trabalho do que em casa, que não encontram nos filhos o único (e talvez nem o maior) propósito de suas vidas.

Será que Sandra nos pareceria mais confiável ou menos suspeita se não fosse tão independente? Se tivesse passado mais tempo sofrendo pelo acidente do filho? Se tivesse se ocupado mais dele e da casa? Se não tivesse traído Samuel? Se tivesse sacrificado sua carreira pela dele? Será que o crime de Sandra foi assassinato ou, como sugere seu advogado, alcançar sucesso naquilo em que o marido fracassou?

Diante de tantas questões, o veredicto torna-se quase irrelevante e Anatomia de uma Queda, um drama inquietante. Há um interessante diálogo entre o longa de Triet e o ainda mais contundente Saint Omer (2022), de Alice Diop, que está disponível para streaming no Telecine. Ambos são filmes franceses elogiados pela crítica internacional e premiados em festivais importantes, que têm escritoras como protagonistas e usam o contexto de um julgamento para refletir, também, sobre a vida das mulheres e das mães. No caso de Saint Omer, estas mulheres e mães são negras e imigrantes, o que talvez dê pistas sobre o motivo de o filme não ter feito o mesmo sucesso no Oscar, nem conseguido distribuição nos cinemas do Brasil.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

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