Athina Rachel Tsangari: “Estamos todos em estado de choque”

Quando a cineasta grega Athina Rachel Tsangari lançou Attenberg (2010), o filme que a projetou internacionalmente, ela o definiu como uma “tragédia maluca”. A expressão unia universos aparentemente incompatíveis (a tragédia e a comédia maluca, ou screwball comedy) e anunciava algo central na obra da diretora: o desejo de explorar diferentes gêneros e tonalidades narrativas em uma mesma história.

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A seu trabalho mais recente, A Colheita, que chega à MUBI em 8 de agosto, Tsangari ofereceu outra definição inusitada: “faroeste niilista”. Para ela, o filme se aproxima dos faroestes clássicos ao retratar uma comunidade pequena, e cercada por paisagem vasta e monumental, que é subitamente abalada pela chegada de forasteiros. No entanto, não há herói capaz de aplicar o código moral e ajudar os moradores a se proteger da invasão. O que vemos, ao contrário, são pessoas comuns e imperfeitas que apenas observam a destruição ao seu redor.

Se A Colheita parece apontar para nossa própria impotência diante dos conturbados tempos atuais, é porque de fato o faz. Em entrevista ao Mulher no Cinema, Tsangari falou com pessimismo sobre o estado das coisas, fazendo menção (ainda que sem citar nomes) ao governo de Donald Trump, ao genocídio em Gaza e ao impacto da inteligência artificial no cinema. “Somos apenas seres humanos pequenininhos”, afirmou. “Estamos apenas vendo tudo cair.”

Tsangari desenvolveu sua carreira entre a Grécia, onde nasceu e abriu sua produtora, e os Estados Unidos, onde estudou e agora leciona cinema. Como aluna da Universidade do Texas, ela realizou o primeiro longa-metragem, The Slow Business of Going (200o), e se envolveu com a cena independente da cidade de Austin. Em 1990, atuou em Slacker, dirigido pelo amigo Richard Linklater, e em 1995 foi um das criadoras do Cinematexas, festival internacional dedicado à exibição de curtas-metragens.

De volta à Grécia, Tsangari produziu Kinetta (2005), Dente Canino (2009) e Alpes (2011), os três primeiros longas solo de Yorgos Lanthimos, que por sua vez foi produtor e ator de Attenberg. Ambos os cineastas foram (relutantemente) incluídos entre os principais nomes da chamada Greek Weird Wave, uma leva de filmes realizados no contexto da crise econômica grega e marcados por humor ácido e protagonistas excêntricos. Após o sucesso do “movimento” em festivais, Tsangari lançou o longa Chevalier (2015), seguiu atuando como produtora dentro e fora da Grécia e dirigiu a minissérie britânica Trigonometry, que foi ao ar em 2020.

A Colheita é seu primeiro longa-metragem em inglês, a primeira adaptação literária e a produção de maior escala, realizada numa parceria entre empresas de Reino Unido, Grécia, Alemanha, Estados Unidos e França. O projeto chegou à diretora pelas mãos dos produtores, entre eles a americana Joslyn Barnes, que comprara os direitos de adaptação do romance Colheita, escrito pelo inglês Jim Crace. 

Tsangari e Barnes trabalharam no roteiro durante a pandemia, de forma remota, buscando contar uma história moderna, e não de época. O livro se passa em um vilarejo rural da Inglaterra pré-industrial, mas evita definições precisa de tempo e espaço para reforçar o caráter atemporal e alegórico da trama. Da mesma forma, as roteiristas abraçaram a oportunidade de ir ao passado para falar sobre temas atuais, como a destruição causada em nome do dinheiro e do progresso, os deslocamentos humanos forçados, a xenofobia, o racismo e a desconfiança em relação a tudo que é estrangeiro ou diferente.

Caleb Landry-Jones interpreta Walter Thirsk, morador de uma pequena comunidade rural que pertence a seu amigo de infância, Master Kent (Harry Melling). O vilarejo é autosuficiente, mas tem enfrentado dificuldade para se manter assim, e o filme registra uma período conturbado de apenas sete dias. Primeiro, um misterioso incêndio destrói um estábulo. Depois, aparecem os forasteiros: o cartógrafo Quill (Arinzé Kene), contratado para criar um mapa da região; o aristocrata Jordan (Frank Dillane), que tem planos de modernizá-la; e três refugiados de uma comunidade similar, mas já “modernizada”, a quem imediatamente se atribui a culpa pelo incêndio. Os dois homens são presos em praça pública e tratados de forma desumana; a mulher, Mistress Beldam (a brasileiro-britânica Thalissa Teixeira), tem os cabelos cortados, mas ganha permissão para fugir.

Cena de Harvest, dirigido por Athina Rachel Tsangari
Caleb Landry-Jones em “Harvest”, dirigido por Athina Rachel Tsangari – Foto: Jaclyn Martinez

Uma das primeiras decisões tomadas por Tsangari foi a de não filmar no interior da Inglaterra, e sim no oeste da Escócia, que oferecia uma paisagem mais dura e dramática. Outra foi a de fomentar um senso de comunidade entre os profissionais da equipe e do elenco, que incluiu moradores locais. Na entrevista ao Mulher no Cinema, Tsangari disse ter se inspirado no longa Comuna de Paris, 1871, lançado por Peter Watkins em 2000, no cinema dos diretores Ken Loach, Mike Leigh e John Cassavetes (1929-1989), e em “um século de cineastas experimentais que filmaram com seus amigos e familiares”.

“O filme lamenta o desaparecimento de um mundo, então tínhamos de construir esse mundo, e não apenas fazer de conta”, explicou. “Construímos tudo juntos, literalmente. Reformamos os estábulos, criamos as máscaras, tosquiamos as ovelhas, cozinhamos a comida que você viu no filme, dançamos, tocamos a música, plantamos as sementes, colhemos, fizemos o pão. Tudo isso fez parte de dois anos de trabalho para nós.”

Para inserir o espectador no universo de A Colheita, Tsangari também contou com a fotografia imersiva de Sean Price Williams, que filmou em 16 mm e aproveitando a iluminação natural. Cada tomada era rodada do início ao fim, sem pausas, seguindo os ensaios mas também abrindo espaço para o que acontecia no momento.

Uma sequência especialmente espontânea foi a inicial, na qual Walt circula pela paisagem local e aparece nu. “Disse a Caleb: ‘Vamos simplesmente começar. Vamos lá filmar você e qualquer coisa que você queira fazer’. E ele respondeu: ‘Ok, então vou comer uns pedaços de árvore, vou capturar uns insetos e borboletas, vou nadar e vocês vão me seguindo'”, contou Tsangari, que estava acompanhada apenas do diretor de fotografia e do responsável pelo som. “Caleb é um ator que que pergunta onde a câmera vai ficar e que lente vamos usar. Então foi ele quem nos deu essa cena inicial, que é basicamente o corpo humano se unindo à natureza.”

Thalissa Teixeira em cena de "A Colheita", filme de Athina Rachel Tsangari - Foto: Jaclyn Martinez
Thalissa Teixeira em cena de “A Colheita”, filme de Athina Rachel Tsangari – Foto: Jaclyn Martinez

A diretora também não poupou elogios à Thalissa Teixeira, com quem tinha trabalhado anteriormente em Trigonometry, e a quem sempre teve em mente para o papel de Mistress Beldam. 

“Ela é extremamente inteligente. É dramaturga, é diretora, é uma mulher renascentista. O que posso dizer? Ela é genial. Ela foi a melhor aliada que eu poderia ter, porque discute, entende, oferece imersão e dedicação total”, disse Tsangari. “Nossa relação é especial porque ela era muito jovem quando a conheci. Foi como trabalhar com alguém da família, com uma irmã mais nova que, em muitos sentidos, era bem mais madura do que eu.”

A escalação de Teixeira e de Arinzé Kene, ambos atores negros, inseriu um componente racial ao preconceito e à violência dos moradores, ainda que o filme não chegue a verbalizar esta questão. A sequência em que os dois contracenam é, na visão da diretora, “o centro da tragédia de A Colheita“, e inclui algumas palavras em português. “Tivemos muitas conversas sobre a dinâmica racial entre os dois, que são, basicamente, tratados como bodes expiatórios”, afirmou a diretora. “Pensamos cada detalhe desta cena, e os diálogos em português foram ideia da Thalissa. Aliás, a personagem é totalmente criação dela.” 

Athina Rachel Tsangari no set de "A Colheita" - Foto: Jaclyn Martinez
Athina Rachel Tsangari no set de “A Colheita” – Foto: Jaclyn Martinez

Corajosa e determinada a sobreviver, Mistress Beldam destoa das personagens apáticas de A Colheita, também descrito por Tsangari como “um filme sobre pessoas que não fazem nada”. Durante a entrevista, disse à diretora que a falta de ação dos moradores me causou desconforto, talvez por reconhecer neles a minha própria passividade – e portanto, cumplicidade – em relação aos acontecimentos do noticiário. Quando perguntei se esta questão também a perturbava, e se via alguma forma de reagir, ela me respondeu:

“Sofro com isso a cada segundo e cada vez mais. Deixei de ser romântica. Meus sonhos foram destruídos. Não há futuro. Não há nada. Sou 100% niilista. E não acho que exista qualquer coisa que possamos fazer. Este é um momento particularmente sombrio. Vivo e dou aulas em Los Angeles e não sei quantos dos meus alunos estarão de volta em setembro. Não tenho nem certeza de que eu mesma vou poder voltar. E sabe, o cinema é uma operação enorme que em breve, muito em breve, será uma indústria de inteligência artificial.”

Em seguida, ela pareceu tentar oferecer algum otimismo ao listar os artistas que a “educaram” – Samuel Beckett, Eugène Ionesco, Henrik Ibsen, Anton Chekhov, Eurípedes e Aristófanes – e ao enaltecer o valor da comédia: “Acho que é sobre ficar alerta e pelo menos ter um senso de humor meio cáustico, para poder comentar o que está acontecendo”, afirmou a diretora. “Este filme não é uma comédia, mas há algo de tragicômico no absurdo de ninguém conseguir fazer nada.”

Tsangari também comparou a realização de A Colheita a um pequeno e simbólico ato de Walt, o qual não é possível detalhar sem spoilers. “Nós fizemos esse filme, e isso é alguma coisa. O filme está sendo visto, existe uma conversa. Mas vamos conseguir parar o genocídio e alimentar todas as crianças que estão morrendo?”, questionou. “É o teatro do absurdo. Não dá nem para…sei lá, acho que estamos todos em estado de choque.”


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

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