
Em 1970, após lançar o álbum New York Tendaberry, a cantora americana Laura Nyro (1947-1997) falou à revista Down Beat sobre a inusitada palavra que criara: “Tendaberry é uma essência. Não é morte, é nascimento. E é muito terno, muito frágil, muito forte, muito verdadeiro. É um disco muito sensorial, é todo sentimento. Ele entra em você, talvez pela parte de trás do seu pescoço. É abstrato, não é óbvio, mas ao mesmo tempo é muito verdadeiro. Sinto que é a vida, ou pelo menos o que a vida é para mim.”
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Esta declaração dá algumas pistas sobre Tendaberry, o primeiro longa-metragem da cineasta americana Haley Elizabeth Anderson. Disponível para streaming na MUBI, o filme tem o espírito da música de Nyro e também busca ser uma experiência sensorial, um retrato da vida cotidiana e uma carta de amor à cidade de Nova York – mais especificamente, neste caso, à região sul do Brooklyn.
É lá onde mora a cineasta e também sua protagonista, Dakota. Aos 23 anos, ela divide um apartamento com o namorado, Yuri, compõe suas próprias músicas e se apresenta nos vagões do metrô. Mas para pagar as contas, também bate cartão, muitas vezes atrasada, em uma loja de conveniência do bairro.
A rotina se altera quando Yuri tem de voltar a seu país, a Ucrânia, e Dakota é forçada a encontrar uma nova forma de levar a vida. Nas palavras da diretora, Tendaberry acompanha, durante um ano, “uma garota vivendo no Brooklyn, cantando no trem, tentando pagar o aluguel, sentindo saudade, perdendo e encontrando amigos.”
Por essa definição, talvez já fique claro que Tendaberry não é um filme de grandes acontecimentos. Na verdade, o que acontece é menos importante do que como acontece, e para a experiência valer a pena é preciso estar de olhos e ouvidos abertos. O estado emocional e as mudanças da protagonista se refletem nos diferentes formatos cinematográficos (16mm, Super 8, fita DV) e dialogam com a paisagem sonora e visual da cidade – aqueles sons e imagens que, de tão corriqueiros, costumam nos passar batido.
“Estar presente é a coisa mais importante para um artista, para um cineasta e para qualquer pessoa”, afirmou Haley Elizabeth Anderson, em entrevista ao Mulher no Cinema. “É algo que nos ajuda a nos sentir conectados, a nos lembrar de que somos apenas um entre muitos, a colocar as coisas em perspectiva. E é algo que alimenta muito a minha criatividade. Há tanta coisa acontecendo, tantos pequenos detalhes que nunca poderíamos construir. A vida real é mais interessante e, às vezes, mais cinematográfica.”

Relatos sobre os bastidores de Tendaberry sugerem que a diretora costuma mesmo estar atenta ao que está ao seu redor. A protagonista do longa, Kota Johan, é alguém que ela conheceu por acaso em 2018, cerca de três anos antes do início oficial das filmagens. Ao ouvir Kota cantando no vagão do metrô, Anderson puxou conversa, manteve contato por telefone e, um dia, escalou-a para o papel.
Antes de a pandemia mudar os rumos do filme, a ideia era que Tendaberry acompanhasse múltiplos personagens por lugares como Coney Island e Brighton Beach. Em sua declaração oficial sobre o projeto, Anderson disse ter desenvolvido grande parte da narrativa a partir de perguntas que fazia a si mesma: “Será que consigo escrever algo para a garota que conheci no metrô? Será que consigo escrever sobre aqueles idosos que conheci no calçadão? Será que consigo colocar num diálogo aquela frase que alguém falou para mim ?”.
Anderson nasceu em Houston, no Texas, e mudou-se para Nova York há dez anos para estudar cinema. Antes de chegar à cidade, dedicou-se a conhecê-la pela lente de Nelson Sullivan (1948-1989), um videomaker amador que documentou a cena noturna e artística de Manhattan nos anos 1980. Tendaberry é sua tentativa de fazer algo parecido: registrar, ainda que na ficção, a vida no sul do Brooklyn no período entre 2014 e 2019.
Trechos dos vídeos de Sullivan também integram o mosaico de imagens de Tendaberry, e ajudam a propor sua reflexão sobre a transitoriedade da vida. “O tempo é nosso, mas apenas por um segundo”, conclui Dakota, em tom nostálgico, mas sem pessimismo. A jovem do final do filme não é a mesma do início, assim como sua Nova York não é a de Nelson Sullivan, que também já não era a de Laura Nyro. Mas tanto a jovem quanto a cidade seguem em frente, e trazem consigo um pouco do que foram.
Leia os principais trechos da entrevista com Haley Anderson Elizabeth:

Sua ideia original era fazer um filme sobre múltiplos personagens vivendo no sul do Brooklyn. Por causa da pandemia e de outras circunstâncias, o longa tornou-se apenas a história de Dakota. Por que escolheu ficar com esta personagem entre todas as que tinha?
Ela sempre foi a espinha dorsal do filme. Eram vários personagens vivendo no mesmo prédio, mas ela tinha um dos fios narrativos mais importantes. Além disso, [a atriz Kota Johan] tinha uma presença muito forte em cena, e eu vinha falando com ela há bastante tempo. Todas as histórias eram baseadas em episódios que tinham acontecido no meu bairro, mas em alguns casos ainda estava tentando achar as pessoas [para o elenco]. Kota, ao contrário, eu já conhecia há alguns anos. Por fim, os produtores do filme também disseram: “Ela é arrebatadora, por que não focamos nela?”. Então foi uma combinação de coisas.
Tendaberry é, para mim, um filme sobre o desapego, sobre como deixar as coisas irem embora faz parte da vida. Assim como Dakota, estamos sempre nos despedindo de relacionamentos, pessoas, planos, apartamentos e até das cidades em que moramos, já que elas seguem mudando. Li um texto que você escreveu para o Talkhouse e percebi que o próprio ato de realizar o filme foi um exercício de desapego para você, que teve de dizer adeus a personagens, histórias e imagens que claramente considerava especiais. Como foi esse processo?
Foi muito difícil. Abrir mão das ideias, inclusive aquelas que iam aparecendo durante o processo, não poder executá-las…foi muito difícil. Estava conversando com meu diretor de fotografia [Matthew Ballard] e ele disse ter aprendido uma lição: o filme é o que é. Ou seja, estamos trabalhando naquilo que o filme é, não no que deveria ser ou no que poderia ser. Então aprendi a me adaptar, a mudar de rumo, algo no qual já era razoavelmente boa por ter experiência no documentário. Mas acho que aprendi a mudar a energia também. A sequência final tem a energia que queria para todo o filme. Quando estávamos filmando livremente pela cidade durante o verão, estava ciente de que aquelas imagens, que estariam no fim do filme, teriam de encapsular o sentimento que eu tinha desde o começo. Espero que tenha conseguido. Mas, sim, todo cineasta tem de aprender a desapegar. Acho que o mais importante é extrair a essência do que você quer comunicar e do sentimento que deseja capturar. E então, se tiver de abrir mão de alguma coisa, será preciso descobrir como dizer aquilo com menos palavras, ou menos imagens, ou mais imagens, mas de forma diferente. É uma habilidade que terei de continuar aprimorando, porque fazer cinema é sempre difícil. É de partir o coração.

O título do filme se refere a uma música da Laura Nyro e você também disse ter se inspirado no álbum Wildflower, do grupo The Avalanches. Além disso, soube que uma das primeiras coisas que você e o diretor de fotografia fizeram, quando começaram o projeto, foi criar uma playlist. Isso me chamou a atenção porque não costumo ver cineastas falarem de música como referência visual, ou ao menos não na mesma frequência com que citam fotos, pinturas e outros filmes. Ao ouvir a playlist, me surpreendi ao conseguir “ver” o filme a partir das músicas. Mas, obviamente, estava ouvindo depois de ter assistido, e portanto já tinha o visual na minha cabeça, enquanto vocês estavam ouvindo justamente para criar esse virtual. Queria saber sobre esse processo. De que maneira a música te ajuda a comunicar suas ideias e chegar às imagens?
São várias camadas. Quando comecei o projeto, ainda na época em que eram vários personagens, a história se inspirava na Nova York de 2014 a 2019. Estava sempre pensando nas músicas que tocavam nesta época na Hot 97, que é a estação local de hip hop. No verão de 2016, por exemplo, tocava muito ANTI [o disco da cantora Rihanna], Drake, Frank Ocean. Você saía do carro ouvindo uma música, e quando entrava na loja de conveniência, a mesma estação estava tocando. Eu queria que essa sincronia musical também existisse no filme, o que não foi possível fazer, porque o orçamento [para comprar os direitos autorais] teria de ser enorme. Mas comecei com essa ideia: uma estação de rádio tocando constantemente.
Matt é músico e foi baterista de jazz. Não me lembro se foi ele quem começou a playlist, talvez tenha sido, mas naquele momento inicial ele estava ouvindo Duval Timothy e eu estava ouvindo Cktrl. Juntamos esses artistas e a coisa foi crescendo a partir daí.
Sempre digo que meu objetivo é fazer um filme que você possa apenas ouvir. E quando você ouve um disco dos Avalanches, consegue ouvir o mundo, porque há muitos efeitos e edição de som. Sempre quero que meus filmes soem assim, especialmente Tendaberry, que foi pensado como um misto de coisas.
Matt e eu sempre começávamos com o som, antes da imagem ou junto à imagem. É o jeito como a gente pensa. Na nossa primeira reunião, ficamos conversando sobre qual é o som da neve em um estacionamento vazio e qual a sensação que fica no ar. O som está muito conectado com as sensações, nos faz sentir as coisas de um jeito específico. Como sempre começavamos com a sensação, o som se ligava a isso. E este foi outro aspecto sobre o qual tivemos de ter desapego, porque tínhamos muitas outras ideias musicais. Mas acho que a trilha sonora de James [Newberry], que é um ótimo compositor, conseguiu capturar o espírito das músicas que estávamos ouvindo.

Os sons da cidade são muito importantes em Tendaberry, assim como as imagens do cotidiano e de pessoas comuns. É um filme que dá grande valor àquilo que facilmente nos passa batido, sobretudo agora que estamos sempre olhando para os nossos telefones e usando fones de ouvido. Para um artista, ou ao menos para você como artista, qual a importância de realmente estar presente, de realmente ser parte da cidade e do mundo ao seu redor?
Nossa, é a coisa mais importante de todas! Para um artista, um cineasta, qualquer pessoa. Porque nos ajuda a nos sentir conectados, a nos lembrar que somos apenas um entre muitos, que nossos problemas são provavelmente muito pequenos comparados ao de todo mundo que está ao nosso redor. Queria que o filme tivesse um pouco esse sentimento: “Talvez meu dia esteja ruim, talvez eu esteja triste, mas sou uma pessoa bem pequenininha em um mar de gente”. Acho que isso coloca as coisas em perspectiva, nos ajuda a ter consciência do nosso lugar no mundo e do que os outros estão passando.
Citando os Avalanches novamente, quando você ouve o álbum Wildflower, sente-se como se estivesse dando uma volta: você passa por alguém que diz alguma coisa, e aos poucos [a voz] vai sumindo. Da mesma forma, se você tira os fones de ouvido e anda pela cidade, parece [estar em] um álbum conceitual. Eu amo viver assim. E isso alimenta muito a minha criatividade e deixa meu trabalho mais fácil, porque o que acontece ao nosso redor é mais interessante [do que a ficção].
Hove um ano, durante a pandemia, no qual usei muito o Uber a trabalho. E neste ano me senti muito privada de sentir o que estava acontecendo ao meu redor. Quer dizer, se você abaixa o vidro do carro e o motorista é interessante, começa toda uma outra sinfonia. Mas se você estiver sempre com o fone de ouvido, vai perder alguma coisa. Há tanta coisa acontecendo, tantos pequenos detalhes que nunca seria possível construir. A vida real é tão mais interessante e, às vezes, tão mais cinematográfica.
Mas claro, o cinema também é uma arte. A arte é fazer as pessoas acreditarem que algo é real. Eu ainda estou buscando alcançar a beleza que está diante de nós. Estou buscando de verdade, tentando realizar a arte que faz o que está na tela parecer real. E não sei se…bom, talvez um dia eu consiga. Vamos ver.

Você agora está trabalhando em seu segundo longa-metragem, que muita gente diz ser o projeto mais difícil de uma carreira. Como está sendo essa experiência?
Sim, é muito difícil. Acho que os filmes são uma coisa impossível: tantas coisas em movimento, tantas coisas para tentar acertar. E cada filme é um animal diferente, cada projeto exige uma matemática diferente. Mas estou muito animada. É um projeto no qual comecei a trabalhar antes de Tendaberry, então já estou nele há uma década. É um road movie para o qual fiz bastante pesquisa, porque viajo muito sozinha. E que já teve muitas versões, que precisou de tempo. Acho que eu também precisava de tempo para me desenvolver, para mudar, para conhecer as pessoas que inspiram o filme, para ter certas experiências que o alimentam. Mas eu lido bem com o tempo que as coisas tomam. Para mim, o tempo não é problema, contanto que sinta que as coisas estão sendo feitas. O tempo nos permite absorver mais do mundo e da verdade que estamos tentando retratar.
Então [o segundo longa] é difícil, é desafiador, mas eu também adoro desafios. Acho que a parte divertida de fazer cinema é pensar: como podemos fazer isso dar certo? É estabelecer algumas metas impossíveis e dizer: será que vamos conseguir fazer o público acreditar que isso é real? Se não for assim, para que fazer cinema? Vamos juntar as peças do quebra-cabeças e descobrir como fazer acontecer.
Que conselho você daria às mulheres que querem trabalhar no cinema?
Façam isso e não se deixem distrair. Vocês vão se deparar com pessoas que não acreditam em vocês, porque isso acontece muito. Mas eu ignoro e ajo como se não estivesse acontecendo. O que também não é fácil, então é preciso ter uma rede de apoio. Acho muito importante que as mulheres cineastas conversem entre si. Porque não existe departamento de Recursos Humanos, não existe nada, só temos umas às outras. É muito importante compartilhar observações e poder dizer: “Estou louca ou isso está realmente acontecendo?”. Quando temos alguém para conversar, nos sentimos mais sãs. Em algumas situações vocês vão se sentir muito pequenas, como se estivessem nadando sozinhas no mar. Mas vocês não estão sozinhas. Então meu conselho é ir em frente. Nunca há a hora certa, então o melhor é simplesmente fazer. Quando sentirem os obstáculos vindo na sua direção, ignorem e sigam em frente. E se for preciso chorar depois, façam isso sozinhas ou com seus amigos.
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema