
Yasmin Thayná era criança quando a série Cidade dos Homens começou a ser exibida pela Rede Globo, em outubro de 2002. Como não podia esperar acordada pelo programa, que ia ao ar por volta das 23h, seu pai lhe dava uma força: gravava todos os episódios em fitas VHS, que a filha assistia depois.
Ao longo dos anos, Yasmin citou aquelas fitas em diversas entrevistas, e identificou a série como uma das obras que influenciaram a decisão de ser cineasta e o processo de se entender como mulher negra. Agora, duas décadas depois, é com um dos roteiristas de Cidade dos Homens que ela divide a direção de seu primeiro longa.
Yasmin colaborou com Jorge Furtado em Virgínia e Adelaide, filme que estreia nesta quinta-feira (8) nos cinemas brasileiros. Produzido pela Casa de Cinema de Porto Alegre, em coprodução com a Globo Filmes e a Globonews, o longa retoma a trajetória de Adelaide Koch (1896-1980), psicanalista alemã judia que se refugiou em São Paulo durante o nazismo, e de Virgínia Bicudo (1910-2003), pesquisadora brasileira negra que foi paciente de Adelaide e se tornou a primeira psicanalista do país.
Inicialmente, a ideia de Furtado era montar um espetáculo teatral inspirado no encontro de Virgínia e Adelaide. Com a pandemia e a impossibilidade de encenar o texto, decidiu adaptá-lo para o cinema. E decidiu, também, que para contar a história de uma mulher negra ele precisaria ter uma mulher negra como parceira na direção.
Foi aí que fez o convite a Yasmin, a quem conhecia pessoalmente e de quem tinha visto curtas como Kbela (2015) e Fartura (2019). Segundo Furtado, a cineasta chegou com muitas sugestões e trouxe “alegria” ao projeto, tanto em seu próprio modo de trabalhar como na forma de retratar Virgínia.
Vídeo: Veja uma cena inédira do filme Virgínia e Adelaide
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Yasmin disse ter identificado a alegria de Virgínia nas fotos que a mostravam em meio à elite política, intelectual e artística brasileira. “Para uma mulher negra que conviveu com a escravidão tão de perto [a avó paterna foi escrava alforriada], estar nesses espaços…se o muro é muito alto até hoje, nos anos 1940 e 1950 era absolutamente impensável. Mas Virgínia estava ali e não estava no canto, acuada – estava gargalhando”, afirmou. “Acho que ela, de forma muito inteligente, utilizou o humor para se fazer presente e para se fazer constante, para que a sua voz, o seu corpo e os seus pensamentos pudessem perdurar no tempo.”
Da mesma forma, ela vê 0 humor como um dispositivo poderoso para se contar histórias. “Há muitas obras de comédia que, se você coloca no drama, fica quase impossível de assistir”, disse a cineasta. “Então, para mim, a alegria também é uma forma de conversar. Gosto de conversar assim.”

Conversa é a palavra-chave do filme, que se desenvolve a partir das sessões de análise e se passa em uma única locação (a casa da psicanalista). O elenco é formado por apenas duas atrizes: Gabriela Correa no papel de Virgínia e Sophie Charlotte no de Adelaide.
A narrativa começa entre 1937, quando Virgínia, então fazendo mestrado sobre o racismo no Brasil, procurou Adelaide com o intuito de ser sua paciente. Nos termos do roteiro – a tela inicial diz que “fatos, nomes, datas e lugares são reais, o resto é ficção” -, ela buscou a análise para entender os efeitos do racismo em sua vida e, assim, poder compreender as experiências dos outros.
Ao longo da trama, que vai até o fim dos anos 1950, Virgínia e Adelaide traça um constante paralelo entre racismo e antissemitismo, identificando as duas mulheres como vítimas de opressão. Ao mesmo tempo, o filme pontua as diferenças entre elas e também toca em temas como colorismo, identidade, acesso à psicanálise e o preconceito de raça e gênero na universidade e na ciência.

Quando quebra as cenas de análise, o filme evoca sua origem teatral recorrendo a sequências gravadas em estúdio. Nestas, as atrizes falam diretamente à câmera, geralmente de um palco ou em frente a projeções.
A ênfase na fala representou um aprendizado para Yasmin, que até então realizara obras mais “silenciosas”. “Os meus filmes são o oposto de muitas coisas que o Jorge faz, sobretudo na televisão, que é algo mais falado”, afirmou. “Pude aprender muito com ele sobre como lidar com diálogos densos, longos, com informações que às vezes podem parecer um Telecurso 2000, e fazer isso com dinâmica”.
As diferenças entre Jorge e Yasmin vão além do estilo cinematográfico: ele é homem, branco, gaúcho, tem 65 anos de idade e 40 de carreira; ela é mulher, negra, carioca, tem 32 anos e é estreante em longas-metragens. Segundo a atriz Gabriela Correa, os dois “se complementavam de forma interessante” e a filmagem correu sem o “caos” e as disputas que podem ocorrer em codireções.
“A troca deles era muito generosa, muito aberta, inclusive com a gente”, afirmou. “O aspecto horizontal da direção dos dois privilegiou muito o filme. Cada um com a sua experiência, e com a sua genialidade, contribuiu para que a obra tivesse uma característica muito autêntica.”
Virgínia e Adelaide também marca o encontro entre Gabriela e Sophie, lançadas em um intenso processo de colaboração no qual uma era a única colega de elenco da outra. A preparação das duas começou de forma remota, em reuniões virtuais semanais nas quais liam cenas e trocavam ideias entre si e com os diretores.
“Logo nesses primeiros encontros, fiquei muito curiosa em saber mais sobre a Gabriela, o que acho que também fez parte do processo do filme. Estava no roteiro essa curiosidade, essa vontade de saber mais, de aprender mais, como ocorreu com Virgínia e Adelaide mesmo”, disse Sophie. “Gabriela é uma atriz muito interessante, de outra cidade, de outra escola, de outro jeito. Em cena, fiquei num estado de aprendizado e de reverência total por ela. Espero que a partir desse filme ela tenha cada vez mais sucesso e mais espaço, porque a voz e a inteligência dela são raras e importantes pra gente. Ela enaltece nosso ofício.”
Gabriela devolve os elogios e concorda que há paralelos entre a relação da vida real e a das atrizes: assim como Virgínia via Adelaide como referência, ela via a colega de cena como “ultra-experiente”.
“Sophie está no ar há muito tempo e é muito conhecida. Não sabia se ela ia querer trocar comigo ou não, mas logo no primeiro encontro entendi que íamos trocar muito”, afirmou. “Fico sempre impressionada com sua generosidade, sua doação e sua genialidade. São essas as características dos atores animados em investigar nossa alma, o que a gente pensa e sente.”
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema
Foto do topo: Fábio Rebelo