Múltiplos elos ligam os filmes da diretora e roteirista Ursula Meier, homenageada desta edição do Panorama do Cinema Suíço Contemporâneo, que ocorre de 5 a 12 de junho no CineSesc, em São Paulo (SP).
As obras da cineasta, que virá ao Brasil para o festival, frequentemente exploram a complexidade e o frágil equilíbrio das relações familiares, evitando a representação idealizada das mulheres, e especialmente das mães. São dramas realistas, mas que contêm algo de absurdo e, às vezes, elementos de humor. E são frutos de colaborações com parceiros que se repetem, como o ator Kacey Mottet Klein, o roteirista Antoine Jaccoud e a diretora de fotografia Agnès Godard, também conhecida pelo trabalho com Claire Denis.
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Mas nada é mais marcante e característico do cinema de Ursula Meier do que o modo como ela define e utiliza o espaço. Nos filmes da diretora franco-suíça, o ambiente ao redor dos personagens nunca é mera locação ou paisagem e, sim, um elemento narrativo essencial, que está carregado de significado e simbolismo e intimamente ligado à premissa ou ao conflito central da trama.
Em seu primeiro longa-metragem, Home (2009), Meier conta a história de uma família que vive literalmente à beira de uma rodovia abandonada. Quando a estrada começa a funcionar, a paz e o isolamento dão lugar ao barulho ensurdecedor, à poluição e à falta de privacidade, levando pais e filhos ao limite.
No longa seguinte, Minha Irmã (2012), um garoto sustenta a família vendendo artigos esportivos roubados, e passa boa parte do filme movimentando-se por meio de um teleférico que une e divide dois mundos: ao pé da montanha, estão os moradores pobres; no topo, os ricos frequentadores de um resort de esqui.
No trabalho mais recente, A Linha (2023), a importância narrativa do espaço fica ainda mais explícita. A protagonista é Margaret, uma mulher impedida pela Justiça de se aproximar da casa da mãe, a quem agrediu fisicamente durante uma reunião familiar. Uma linha pintada no chão demarca os cem metros de área proibida, e é nesta fronteira que a maior parte da ação se desenvolve.
Nota-se, portanto, que para Ursula Meier o espaço serve como ponto de partida para a criação. “Quando começo a escrever, às vezes não tenho toda a história, ou mesmo uma história. Só tenho um personagem e uma topografia”, afirmou, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Preciso que os personagens encontrem a tensão daquele espaço, tenham uma conexão com ele. O lugar vira minha paisagem mental, à qual tudo se liga.”
Meier nasceu em 1971 em Besançon, na França, e estudou cinema na Bélgica, mas desenvolveu sua carreira na Suíça. Começou como assistente de direção do celebrado cineasta Alain Tanner (1929-2022), e, mais tarde, passou a dirigir filmes para a televisão e curtas como Des heures sans sommeil (1998) e Tous à table (2002). Com Home, chegou à Semana da Crítica do Festival de Cannes; com Minha Irmã e A Linha, à competição oficial do Festival de Berlim. Hoje, é um dos principais nomes do cinema de seu país, como sugere a retrospectiva organizada pelo Panorama do Cinema Suíço Contemporâneo.
Além dos três trabalhos já citados, o festival também exibirá mais duas obras de Meier: o longa Diário da Minha Cabeça (2018), parte de uma coleção de filmes inspirados em crimes que abalaram a Suíça, e o curta Kacey Mottet Klein, Nascimento de um Ator (2015), um retrato do artista que a diretora ajudou a revelar.
Meier estará presente em todas as sessões de seus filmes no festival (consulte a programação) e participará de um bate-papo com o público no dia 6 de junho, às 20h30, no CineSesc. Antes de embarcar para o Brasil, ela falou com o Mulher no Cinema sobre sua carreira, seu processo criativo e a expectativa para as exibições que ocorrerão no País. Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista:
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Seus filmes fazem um uso interessante do espaço ao inseri-lo na narrativa e ao atribuir a ele muitos significados e simbolismos. Minha impressão é a de que você pensa sobre essa questão logo no começo de cada projeto. Seria uma impressão verdadeira? De que forma o espaço informa sua criação como roteirista e diretora?
Sim, você está totalmente certa. De início, não era algo consciente. Mas agora, olhando para trás e com uma compreensão maior do meu processo de trabalho, noto que, quando começo a escrever, às vezes não tenho toda a história, ou mesmo uma história – só tenho um ou dois personagens e uma topografia. E aí preciso que esses personagens encontrem a tensão daquele espaço e tenham uma conexão com ele. Minha Irmã, por exemplo, nasceu da paisagem. Estava rodando um telefilme quando vi aquela montanha e a fumaça saindo da fábrica. Depois olhei para cima e vi um resort de esqui. Percebi que aquela verticalidade dizia algo sobre o mundo contemporâneo: a pobreza embaixo e a riqueza em cima. Então é algo muito simples e esquemático, que obviamente se torna mais complexo durante o processo de escrita. De início, o roteiro tinha muitas locações, pois seguíamos a personagem da Léa Seydoux pelos lugares para onde ela ia. Mas fui cortando, cortando e cortando, para ir direto àquela verticalidade. Não vemos para onde ela anda, não vemos outros lugares, não vemos a escola do menino. E, no cinema, o que não vemos é tão importante quanto o que vemos.
Depois que encontro o lugar [em que a história será ambientada], ele vira minha paisagem mental, à qual tudo passa a se ligar. Aplico a ideia a todos os elementos, como a trilha sonora e a fotografia, por exemplo. E a precisão é muito importante. Na filmagem de Home, disse à equipe que a casa tinha de ficar a poucos metros da estrada. Por alguma razão tive de ir a algum lugar, e quando voltei, a casa estava mais longe do que havia pedido. Eles [a equipe] disseram: “É que estava perto demais da estrada, não nos sentimos bem lá”. E eu respondi: “Mas o filme é justamente sobre isso!” [risos]. No caso de A Linha também ocorreu algo interessante. Inicialmente, o roteiro estabelecia que o limite [que a protagonista não pode ultrapassar] estaria a 200 metros da casa. Mas durante a preparação para a filmagem, a diretora de fotografia, Agnès Godard, me disse que essa distância deixava a casa muito longe. Ela falou: “Se você mudar para 100 metros, vai poder ver a casa, a tensão vai ser maior e a frustração, mais interessante.” Então, de fato, o espaço é muito importante para mim.
Além da questão do espaço, outro ponto que une esses três longas-metragens é o fato de todos serem centrados em famílias pouco convencionais, complicadas ou disfuncionais, dependendo de como você prefira chamá-las [risos]. Por que as relações familiares te atraem tanto?
É verdade, eu sempre acabo voltando para a família, embora o filme no qual estou trabalhando agora [Quiet Land, sobre um homem que vive em Montana, nos Estados Unidos] não siga essa mesma linha. Acho que, uma vez que defino o território, gosto de ir bem fundo na complexidade humana. Vou cavando, como se estivesse trabalhando em uma mina. A família tem essa complexidade, e o equilíbrio familiar pode mudar completamente de uma hora para a outra. Em A Linha, por exemplo, a briga não é provocada por nenhum grande acontecimento, e sim, por coisinhas pequenas. Então, tenho de ir bem fundo na complexidade daquela família para entender porque cada pessoa é do jeito que é. Em Home, desde o início dá para perceber que as coisas naquela casa são um pouco loucas. Mas quando a estrada abre, as coisas de repente ficam totalmente loucas. Da mesma forma, em Minha Irmã a relação entre os protagonistas é estranha, mas funciona – até que algo acontece, a situação fica insustentável e tudo muda. Acho que [a atração por esse tema] é um pouco por aí. E também tem o fato de que gosto muito de trabalhar com crianças e desenvolver personagens infantis. E, naturalmente, crianças estão envolvidas com questões de família.
Por que você gosta de trabalhar com crianças?
Porque elas são livres. Tudo é possível para uma criança.
Muitas das suas personagens fogem à representação idealizada da experiência feminina. Me refiro, por exemplo, às mães que não são exatamente maternais, ou à protagonista de A Linha, uma mulher que sente muita raiva e é fisicamente violenta, inclusive contra a própria mãe. Gostaria que você falasse um pouco sobre como cria suas personagens. Há um tentativa consciente de ir contra determinados estereótipos relativos às mulheres?
Não, não é consciente. Talvez tenha a ver com o fato de eu ser mulher e acreditar que devemos falar sobre a gente e fazer perguntas também. O que é ser mãe? Acho esta pergunta interessante. E o que significa ser mulher? A Linha foi o filme no qual fui mais longe no que diz respeito a essa pergunta. [A atriz e corroteirista] Stéphanie Blanchoud e eu começamos a escrever o roteiro juntas e muito rapidamente chegamos à ideia de uma mulher que briga. Durante o processo de pesquisa, fomos atrás de filmes que mostrassem mulheres violentas, e percebemos que grande parte deles são sobre adolescentes. Quando a mulher que está brigando é adulta, geralmente a razão da briga está ligada à prostituição ou ao uso de drogas. Ou seja, a violência é consequência de alguma outra coisa. Mas quando assistimos a um filme no qual um homem briga, não nos perguntamos: por que ele briga? Não questionamos o motivo da violência, apenas aceitamos, e às vezes achamos até sexy.
Durante a escrita do roteiro, foi interessante para nós pensar: por que essa mulher precisa ter uma razão para brigar? Nesse sentido, escrevemos a personagem como se ela fosse um homem e evitamos ao máximo dizer o motivo pelo qual ela briga. É claro que a questão aparece em algum momento, e naturalmente nos leva de volta à família, à figura da mãe e a um outro tipo de violência, que é a violência psicológica. Então foi muito interessante fazer todos esses questionamentos acerca da violência, que ainda é um tema tabu. As pessoas não querem ver mulheres brigando. Elas pensam: “Não, mulheres não brigam, isso é muito estranho”. Acho que talvez o filme esteja um pouco à frente de seu tempo, porque as pessoas me perguntam: “Por que ela está brigando?”. E eu respondo: “Por que ela não estaria?”.
Você sentiu que o filme incomodou alguns espectadores nesse sentido?
Senti. Eu não gosto de dividir o público [por gênero]. Nunca faço isso, nem falo em cineasta mulher e cineasta homem – primeiro de tudo, sou cineasta. Mas, para ser sincera, no caso de A Linha tanto eu quanto Stéphanie recebemos um retorno muito bonito das mulheres, que se emocionaram e nos contaram suas próprias histórias. Acho que o filme toca direto na dor que algumas mulheres carregam. Alguns homens também [deram um retorno positivo], mas sempre que alguém realmente não se comove [com o filme], esse alguém é homem. Talvez, para eles, esta visão da mulher seja estranha. Não sei.
Você mencionou a diretora de fotografia Agnès Godard, uma profissional muito importante e que trabalhou em vários de seus filmes. O que pode contar sobre a colaboração de vocês?
Trabalhar com ela representava uma grande oportunidade para mim e conhecê-la era um sonho. Eu a convidei para fotografar Home porque adorava o seu trabalho. E nós meio que nos apaixonamos [na primeira conversa]. Geralmente, esse tipo de reunião dura uma hora, uma hora e meia. Mas Agnès e eu nos encontramos em um café e ficamos cinco horas conversando. Ela tinha adorado o roteiro e nosso encontro foi ótimo. Posso dizer que aprendi muito com ela, muito mesmo. Aprendi sobre como fazer cinema, sobre como olhar para os atores, sobre como ver. Ela é muito mais experiente do que eu, e eu cresci muito ao trabalhar com ela. Agnès é incrível, é uma artista. Quando digo isso, ela fala que não, não é. Mas sei que estou certa [risos].
Qual a sua expectativa para as sessões de seus filmes no Brasil?
Eu realmente tento fazer filmes universais. Isso é algo muito importante para mim: que meus filmes sejam universais e possam viajar pelo mundo. Sim, rodei a maioria deles em um pequeno território na Suíça, mas sempre espero que possam tocar as pessoas em qualquer lugar, porque abordam questões humanas. E fico emocionada quando isso acontece. Então estou muito curiosa para ver a reação das pessoas no Brasil. Nossas realidades não são exatamente iguais, mas podemos nos emocionar da mesma forma.
Escrevo sobre o cinema feito por mulheres há nove anos, e, neste período, a Suíça me parece ser um dos países em que a discussão ganhou mais força. Houve, por exemplo, a criação da Swiss Women’s Audiovisual Network (SWAN), um grupo muito ativo do qual você integra o conselho criativo, além de estudos regulares e iniciativas para promover a igualdade de gênero em alguns fundos de financiamento e festivais. Obviamente, estou falando como alguém que observa à distância. Para você, que de fato está inserida nesta indústria, é possível dizer que avanços foram feitos? E quais desafios permanecem?
Sim, acho que temos muita sorte na Suíça, se fizermos uma comparação com vários outros países. Fiz faculdade de cinema na Bélgica, há muito tempo atrás, e, na minha turma, só havia uma outra mulher além de mim. Naquele momento não dei atenção a isso, porque tinha uma grande paixão por tudo. Mas hoje percebo que ter apenas duas mulheres numa turma não deveria ser considerado normal. Nesse sentido, acho que as coisas mudaram bastante, pois há muitas mulheres estudando cinema na Suíça. Os cursos, hoje, ou têm paridade de gênero ou até têm mais mulheres. Além disso, é comum ver diretoras vencendo o principal prêmio de cinema do país, o que considero bom sinal. Mas ainda há muita disparidade, por exemplo na questão dos orçamentos. As mulheres estão principalmente no documentário, que são filmes mais baratos, o que é um problema. Precisamos continuar olhando para esta questão, ser vigilantes e tomar cuidado para que os esforços continuem.
Que conselho você daria às mulheres que querem trabalhar no audiovisual?
Sigam em frente, façam seus filmes, corram riscos. Muitas vezes ouço estudantes de cinema dizerem que querem fazer um curta-metragem que funcione como cartão de visitas. Mas eu participo de muitos júris em festivais e o tipo de filme que não gosto de ver é aquele que tem boas atuações, uma luz ok, uma história ok, aquele tipo de filme em que tudo é ok, mas, no final, eu não me importo [com o que assisti]. Prefiro ver um filme totalmente louco, que não seja tão perfeito, mas no qual exista alguém, exista algum risco. Não acho que o cinema morreu – pelo contrário, ainda há muita coisa a ser feita. Então, façam! Sejam loucas!
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema
Foto do topo: Jens Koch, publicada no site do Festival de Berlim