Mariana Bastos fala sobre filmar efeitos do tempo em ‘Alguma Coisa Assim’

Boyhood brasileiro” é como está sendo apelidado o longa-metragem Alguma Coisa Assim, dirigido pela dupla Mariana Bastos e Esmir Filho. Em cartaz nos cinemas, o filme acompanha a amizade de Mari (Caroline Abras) e Caio (André Antunes) em três momentos-chave, com filmagens realizadas em 2006, 2013 e 2016 – a maior parte em São Paulo, outra em Berlim.

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Mas há uma diferença importante entre o filme nacional e o de Richard Linklater: enquanto Boyhood foi desde o início pensado para ser rodado ao longo de 12 anos, Alguma Coisa Assim começou como um curta premiado no Festival de Cannes que a princípio seria uma obra fechada. Sete anos depois, em uma mesa de bar, a equipe brincou sobre como a história de Mari e Caio teria seguido. A brincadeira levou à produção de um novo curta e, finalmente, à opção por um longa-metragem. “Fomos pensando sobre as questões que estavam sendo discutidas em relação à sexualidade e sobre o que teria acontecido com os personagens”, contou a diretora, em entrevista ao Mulher no Cinema.

Sexualidade é um dos principais temas do longa, cujo título indica a intenção de retratar uma geração menos interessada em rótulos definidos. “O filme trata muito dos relacionamentos fluidos, orgânicos, em que você não se categoriza numa coisa ou em outra”, explicou Mariana Bastos. Além de acompanhar as mudanças sociais, os realizadores também viram as mudanças tecnológicas que os levaram da filmagem em película para a digital. “A gente sabia que as diferenças de formato também diziam algo sobre os tempos e que isso podia colaborar narrativamente”, afirmou.

Alguma Coisa Assim é o primeiro longa-metragem de Bastos, que atualmente desenvolve o “suspense bíblico pop” intitulado de Raquel 1:1, sua estreia solo na direção de longas. Leia os principais trechos da entrevista:

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O que os motivou a voltar à história de Mari e Caio?
Tivemos um encontro poderoso de mentes criativas [no primeiro curta]. Ficamos muito amigos e a experiência transformou a vida de todos, pessoal e profissionalmente. Sete anos depois a gente se reencontrou em uma mesa de bar e falamos, brincando, sobre como seria se a história deles continuasse. Acontece uma mágica quando a gente se encontra, então como daria para fazer isso? Fomos pensando sobre as questões que estavam sendo discutidas em relação à sexualidade e sobre o que teria acontecido com os personagens. Enquanto fazíamos um segundo curta, o Sete Anos Depois, decidimos fazer um longa, abordando os temas de cada época como pano de fundo para a relação entre eles.

A atriz Caroline Abras em três momentos de “Alguma Coisa Assim”: 2006, 2013 e 2016

No período de dez anos entre o primeiro curta e o longa, mudou o modo como se fala de sexualidade?
Acho que sim. Falar sobre se descobrir sexualmente e ser gay ou não ser gay era ainda mais tabu há 12 anos. O casamento gay foi aprovado, há maior inserção e participação das relações homoafetivas em programas populares, as pessoas estão mais acostumadas com o tema. Isso apesar de a gente estar em um país onde o índice de assassinato da população LGBT é gigantesco. Então também existe a necessidade de continuar falando sobre isso, de fazer com que seja cada vez mais [parte da] nossa vida e das nossas conversas, para que as pessoas não tenham mais de esconder determinadas coisas. Acho que o filme também trata muito dos relacionamentos fluidos, orgânicos, em que você não se categoriza numa coisa ou em outra. Por isso se chama Alguma Coisa Assim. É algo comum entre o jovem de hoje que procuramos retratar.

Tecnicamente, quais foram os desafios do projeto? A tecnologia certamente mudou muito neste período. Houve preocupação, por exemplo, nas diferenças técnicas das imagens de cada fase?
Era um dos desafios do filme, pois em 2006 filmamos em película, em 2013 com uma 5D e em 2016 com uma Amira. Além disso, houve fotógrafos diferentes – um em São Paulo e outro em Berlim. Mas a gente sabia que as diferenças de formato também diziam algo sobre os tempos e que isso podia colaborar narrativamente. É assustador o que você consegue fazer hoje em tratamento de imagem, e poderíamos ter escolhido tirar os grãos da película ou adicionar muito grão [nas imagens filmadas] em 2016 para deixar tudo mais igual. Mas a proposta não era essa – era justamente marcar os tempos. Então entendemos que se a gente tratasse um pouquinho aqui, um pouquinho ali e desse uma regularizada nas cores, isso poderia contribuir com a história e a linguagem.

Como é voltar a lidar com um trabalho de início de carreira? Quando vê o curta, pensa no que faria diferente?
O curta foi uma coisa tão bem-vinda nas nossas vidas que acho difícil querer que ele fosse diferente. Claro que existe um amadurecimento dos atores e dos diretores. Você enxerga esse amadurecimento, e ao mesmo tempo parece que isso colabora para você contar o que é o filme. Quando vejo o curta, sinto um carinho enorme, uma gratidão por esse projeto ter existido, pois até até hoje ele rende uma troca de experiências profissionais e pessoais.

Imagem do filme “Alguma Coisa Assim”, de Mariana Bastos e Esmir Filho

Este é seu primeiro longa na direção. Qual o maior desafio da passagem do curta para o longa?
Comecei no longa-metragem com uma codireção, que é um processo intenso. Tudo é decido a dois: da hora que constrói a história até a de finalizar. É uma experiência enriquecedora e complexa. Cada um tem seu mau humor, sua personalidade, suas virtudes e defeitos. Foi um desafio pegar um projeto grande como este e trabalhar em dupla. Fomos criando dinâmicas específicas, entendendo como funcionaria melhor. Sabíamos, por exemplo, que para a equipe tínhamos de ter uma voz só – então definíamos tudo antes. São muitas decisões, a montagem é uma loucura. Foi desafiador, mas extremamente rico.

Você e o Esmir fizeram juntos o curta Tapa na Pantera (2006), que foi um dos primeiros vídeos virais brasileiros. Agora estão lançando um longa-metragem no contexto do cinema nacional, em que a distribuição é um dos maiores desafios. Como vê essa questão de chegar ao público?
É uma loucura. Lembro de o Tapa na Pantera ter gerado essa discussão, porque eram três estudantes – o Rafael Gomes também fez com a gente – que pegaram uma câmera, foram na casa de uma amiga, fizeram [a gravação], gastaram R$ 30 para almoçar e chegaram a milhões de pessoas. Acho que a primeira coisa é o interesse que a produção acaba causando e o quanto aquilo move as pessoas. Filmes lançados timidamente às vezes acabam ganhando o circuito e o público porque as pessoas gostam da história. Ao mesmo tempo a maior complicação do processo de produção de um filme é garantir que ele vai estar na salas e competir com o que é de fora. Temos múltiplas telas e principalmente o público jovem assiste as coisas via internet. Acho que o importante é que o filme seja visto. Como vai ser visto…aí cada um escolhe a sua maneira. A gente tem que se renovar no sentido de entender como pode manter a indústria dos filmes se a pessoa assiste [em cópia] pirata, por exemplo. Precisamos renovar este aspecto porque o que a gente quer, como realizador, é que o filme chegue.

Que conselho você daria para as mulheres que querem trabalhar no cinema?
Estamos num momento propício porque isto está muito em foco. Mas todas que foram se aventurar no cinema, principalmente em cargos de liderança, vão enfrentar uma resistência maior – inclusive das mulheres. Você demora muito mais para se provar, ganhar confiança, ganhar oportunidades, demora muito mais para tudo do que um homem com o mesmo talento. O próprio mercado valoriza e dá mais espaço aos profissionais homens. Ao mesmo tempo, as mulheres estão colocando as cartas na mesa, [porque a desigualdade existe] desde a hora que você consegue um estágio até a hora de ser criticada numa revista. Sinto que existe mais abertura tanto para se falar sobre isso quanto para mostrar trabalhos.

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Veja o trailer de Alguma Coisa Assim:


Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema.

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