Um diálogo entre passado e presente conduz a narrativa de Chico Rei Entre Nós, primeiro longa-metragem da diretora Joyce Prado, que integra a programação da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e pode ser visto online em todo o Brasil. Como o título indica, o documentário investiga o legado de Chico Rei e os ecos da escravidão na sociedade brasileira contemporânea, valorizando uma fonte de conhecimento que muitas vezes é descartada pelos registros oficiais: a tradição oral.
Leia também: 8 filmes dirigidos por mulheres para ver de graça na Mostra
Saiba mais: Veja todos os filmes dirigidos por mulheres na Mostra 2020
Apoie: Colabore com o Mulher no Cinema e acesse conteúdo exclusivo
De acordo com o que se conta, especialmente na região de Ouro Preto, Chico Rei foi um monarca congolês que os portugueses trouxeram ao Brasil como escravo. No século 18, durante o Ciclo do Ouro, ele comprou sua liberdade e a de outras pessoas negras ao seu redor, sendo coroado por elas em uma cerimônia conhecida como Reinado, que é realizada anualmente na cidade mineira.
O documentário narra essa trajetória, mas não se propõe a buscar o que é tido como evidência formal para comprovar a existência de Chico Rei. Num entendimento de que o registro oficial conta, em grande medida, a história narrada pelo colonizador, a diretora e sua equipe – formada inteiramente por mulheres e majoritariamente por mulheres negras – oferecem uma contranarrativa.
“O filme é afirmativo no sentido de dizer que Chico Rei é fato, é existente, é presente e foi presente – não só ele como muitas pessoas negras daquele período, que tiveram movimentos, ações e estratégias semelhantes”, afirmou Joyce Prado, em entrevista via Zoom ao Mulher no Cinema. “O que tenho buscado, dentro da minha realização autoral, é possibilitar que o cinema seja nosso encontro com o passado. Um passado que não é uma massa homogênea, mas, sim, que começa a ver as subjetividades das pessoas e a complexidades dos grupos.”
Abaixo, leia a entrevista com Joyce Prado:
Como o projeto começou e por que você quis contar essa história?
A [produtora] Abrolhos Filmes já tinha uma pesquisa relacionada a Chico Rei, que caminhava para um estudo mais histórico, do ponto de vista dos especialistas. Quando me convidaram para o projeto, e eu aceitei, foi na perspectiva de começar a entender a oralidade e a possibilidade de colocar a história oral no centro do filme. Ou seja, deslocar da ideia de pesquisa acadêmica e aproximar a experiência do Chico Rei às pessoas que estão presentes hoje. Quando olho para essa história, começo a pensar na trajetória de Chico Rei – do momento do sequestro na África até ele ir a Minas Gerais e conseguir a alforria – como grandes conceitos. Há um primeiro momento de cárcere, que é um não reconhecimento, um estímulo para não reconhecermos a nossa identidade racial. Depois, o momento de ter a construção dessa consciência, do que representa ser uma pessoa negra na sociedade. E, depois, o momento de a gente buscar a construção de uma emancipação coletiva. Conforme fui olhando dentro dessa dinâmica, cada vez mais fui me interessando por essa investigação, por encontrar as pessoas e revisitar os espaços nos quais Chico Rei existiu, sejam as minas, a irmandade ou o congado.
O documentário valoriza uma história que não é tradicionalmente “documentada” e, por isso, é descartada em alguns círculos. Por que a questão da oralidade era tão central para você?
A história oficial tem a perspectiva dos colonizadores, do povo que oprimiu outro povo. Então como a gente começa a investigar a história oral, que é a possibilidade de transmissão [de conhecimento] entre uma população que não se vê dentro dos registros oficiais, e nem tem o acesso para estar presente dentro desses registros oficiais, colocando suas perspectivas? O registro oficial também é uma maneira de manutenção de um sistema que promove o racismo, o classismo, o patriarcado, todas essas questões que temos buscado contestar cada vez mais. A questão da oralidade era importante desde o início para entendermos quais são as perspectivas que não estão presentes na história oficial.
“O que tenho buscado, dentro da minha realização autoral, é possibilitar que o cinema seja nosso encontro com o passado. Um passado que não é uma massa homogênea, mas, sim, que começa a ver as subjetividades das pessoas e a complexidades dos grupos. A população preta ainda tem ausência de imagens e o desejo de se ver representada de diferentes formas. Minha busca é para que a gente consiga, pouco a pouco, ir preenchendo essas ausências e desejos.”
Como foi o processo de pesquisa?
Entrei no projeto em novembro de 2018 e a filmagem já começou em janeiro de 2019. Portanto, houve uma intensidade muito grande. Já havia uma pesquisa prévia sobre Chico Rei, realizada pela roteirista Natália Vestri, sobre a qual me debrucei na época. Depois houve a entrada da pesquisadora Luana Rocha, que foi para Ouro Preto fazer pesquisa de campo, ou seja, entender os espaços e encontrar pessoas que conseguissem traduzir esse ideal de liberdade e de construção de coletivo. Em dezembro, eu e a diretora de fotografia Nuna Nunes fomos a Ouro Preto para dar continuidade à pesquisa, conhecer as pessoas e entender o que estava rendendo. Como a filmagem foi intensa, o tempo de finalização foi mais estendido. Cada personagem apresentou perspectivas e conhecimentos que eram novos para nós, seja a engenharia por trás das minas, a relevância do congado ou o que eram as irmandades. Foi preciso um tempo para entendermos tudo isso.
Este é seu primeiro longa-metragem. Qual o maior desafio desse novo formato?
Na produção, foi o ritmo de filmagem. Fizemos nove diárias em Ouro Preto, e nove diárias praticamente direto, porque tínhamos de garantir imagens durante o reinado. Era uma mescla de acompanhar o reinado com realizar as entrevistas, assistir o material, pensar o dia seguinte e entender como garantir que a narrativa fosse contruída e as coisas continuassem caminhando para o mesmo lugar. Na pós, o maior desafio foi esse debate com o tempo [mencionado na resposta anterior]. E, também, a condução da narrativa. Ao invés de uma condução de curta-metragem, que tem 15 minutos, você está conduzindo as pessoas por uma hora e meia. Então há o desafio de estimular, de proporcionar sensações e um processo de imersão para o público.
Muitas das pessoas que você retrata atuam, tanto em suas vidas como no filme, no sentido de mostrar outro lado da história ou de contrapor a narrativa do colonizador. Como na cena em que alguém diz que o escravo não era apenas “burro de carga”, mas também responsável pela engenharia das minas; ou que a vinda dos negros ao Brasil trouxe sofrimento, mas também beleza. Considerando que o cinema é uma área tão dominada por pessoas brancas, e que com frequência foram elas quem contaram as histórias dos negros, você também se sente oferecendo uma contranarrativa, ou uma contra-imagem, no seu trabalho como realizadora?
Sim, inclusive no fato de estar desafiando a ideia de que Chico Rei é um mito. O filme é afirmativo no sentido de dizer que Chico Rei é fato, é existente, é presente e foi presente – não só ele como muitas pessoas negras daquele período, que tiveram movimentos, ações e estratégias semelhantes. O que tenho buscado, dentro da minha realização autoral, é possibilitar que o cinema seja nosso encontro com o passado. Um passado que não é uma massa homogênea, mas que começa a ver as subjetividades das pessoas e a complexidades dos grupos, que começa a entender os desejos, os anseios, as motivações. Dentro da comunidade negra, entendemos que nossos ancestrais um dia sonharam com nossa liberdade e com a nossa presença no hoje. Entendemos que essas pessoas existiam e eram movidas por esses sentimentos. Há um desejo de humanizar mais esse passado, e a contranarrativa também vem desse lugar. Vem no sentido de a gente não mais lidar com a história de maneira hegemônica, de a gente começar a questionar o que recebe. Ao mesmo tempo, penso muito nas ausências. A população preta ainda tem ausência de imagens e o desejo de se ver representada de diferentes formas. Minha busca é para a gente consiga, pouco a pouco, ir preenchendo essas ausências e desejos.
Você é uma das fundadoras da Associação dxs Profissionais do Audiovisual Negro (Apan), que completa quatro anos em novembro. Que balanço você faz destes primeiros anos de trabalho?
A Apan é consequência de uma série de mobilizações que já existiam, como o Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul, o Dogma Feijoada [movimento que se criou a partir de um manifesto escrito pelo cineasta Jeferson De em 2000; saiba mais aqui] e diferentes ações de cineastas de outras gerações que seguem presentes. Nossos primeiros quatro anos foram de muita intensidade, porque ações afirmativas não eram dicutidas de maneira objetiva na administração pública, seja federal, estadual ou municipal. A associação caminha para esse lugar, buscando não apenas a inserção dos profissionais, mas, também, o fortalecimento das produtoras que são vocacionadas para o audiovisual identitário. E além do diálogo com a esfera pública, há o diálogo com o mercado, que também envolve a sinalização da ausência de pessoas negras nos sets, nas posições de tomada de decisão e nos cargos executivos. É um processo lento, mas urgente, pois temos pessoas pretas se formando em audiovisual e ansiando se inserir na área, colocar sua perspectiva e sua relação com o mundo na tela. Nesses quatro anos, também passamos de um grupo de 30, 40 pessoas para um grupo de 650 pessoas. Então é o momento de nos fortalecermos institucionalmente e de compreendermos como nos organizarmos enquanto associação nacional. Sinto que é muito importante que a comunidade preta tenha espaço para ir construindo suas possibilidades e entender o que espera da área. Precisamos pensar não apenas no que precisa ser transformado, mas também no que desejamos para dentro dos nossos espaços de construção coletiva.
Que conselho você daria às mulheres que querem trabalhar no cinema?
Uma pergunta muito importante é: o que você deseja exercitar? Vejo o cinema como exercício contínuo, e é preciso entender que a gente vai errar e vai acertar, que cada projeto é uma possibilidade de amadurecer nossa linguagem e de amadurecer pessoalmente também. Esse conselho vem da minha experiência com Chico Rei Entre Nós, durante a qual amadureci muito como diretora e me permiti exercitar muitas coisas, sabendo que se errasse, tudo bem, porque haveria um próximo projeto. Acho muito importante ter essa perspectiva de que vai haver um próximo projeto. Senão, a gente coloca toda a nossa expectativa em um só, o que é desgastante e traz insegurança. Trabalhe com a perspectiva de que vai haver um próximo, e que no próximo você vai poder fazer diferente. Os equipamentos já não são mais tão inacessíveis, e cada vez mais a gente tem possibilidade de criar.
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema