Susanna Lira: “Fernanda Young está cada vez mais contemporânea”

Nos últimos anos, Susanna Lira tem se dedicado a extrapolar alguns dos caminhos que seguiu ao longo da carreira. Conhecida por filmes centrados em mulheres – de Positivas (2010) a Torre das Donzelas (2018) -, decidiu dirigir cinebiografias sobre o humorista Mussum (1941-1994) e os jogadores Adriano e Walter Casagrande. Experiente no documentário, lançou-se na ficção com as séries Não Foi Minha Culpa (2022) e Rotas do Ódio (2018). Acostumada a contar as histórias dos outros, voltou a câmera para si mesma em Nada Sobre Meu Pai (2023). E em seu trabalho mais recente, Fernanda Young: Foge-me ao Controle, permitiu-se ir mais longe na busca por uma linguagem cinematográfica que capture a essência de uma personagem.

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Em cartaz nos cinemas brasileiros, o documentário narra a trajetória da escritora, roteirista e apresentadora Fernanda Young (1970-2019) sem se propor a fazer um resumo linear de sua vida ou recorrer a entrevistas que comprovem a relevância de sua obra. Susanna optou, ao contrário, por construir um ensaio poético a partir do amplo material disponível sobre a artista, que escreveu 15 livros e fez inúmeras aparições televisivas antes de morrer, aos 49 anos, de uma crise de asma seguida de parada cardíaca.

Por um lado, tal escolha é surpreendente. Em se tratando de figura tão conhecida como Fernanda Young, poderia-se seguir linha mais convencional como forma de potencializar o apelo comercial do projeto, que é uma coprodução da Modo Operante, empresa de Susanna, com o canal GNT. Por outro lado, o caminho mais experimental e menos linear combina com a biografada, que atuava em diferentes frentes (literatura, cinema, televisão), falava sobre muitos assuntos e certa vez disse tentar “ser poética no romance e em todas as formas de comunicação”. “Foi um risco não seguir um formato convencional”, afirmou Susanna Lira, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Mas fazer algo sem risco sobre Fernanda Young seria não estar na vibe dela.”

A ideia de produzir um documentário sobre Fernanda Young foi da pesquisadora Marcella Tovar, que assina o argumento ao lado de Susanna. O projeto começou cerca de dois anos após a morte da escritora, e a decisão de deixar as entrevistas de lado não demorou a ser tomada. “Tínhamos um material muito vasto, e colocar qualquer pessoa falando sobre a Fernanda soava um pouco desnecessário”, explicou a diretora.

Assim, o filme se constrói a partir de trechos de poemas e romances escritos por Fernanda (lidos por ela ou pela atriz Maria Ribeiro), animações dos desenhos que fez, cenas das séries que criou e roteirizou – de Os Normais (2001) a Shippados (2019) -, imagens dos programas de televisão que apresentou, entrevistas que concedeu e gravações pessoais cedidas por Alexandre Machado, seu marido e principal parceiro profissional. O mosaico de sons e imagens também inclui cenas de filmes de artistas de vanguarda, entre eles Germaine Dulac (1882-1942), Maya Deren (1917-1961), Man Ray (1890-1976) e Jean Epstein (1897-1953).

Atenção especial é dada à carreira de Fernanda Young como escritora, aquela com a qual mais se identificava, e pela qual julgava ter recebido pouco respeito e reconhecimento – em parte por ser mulher, em parte por causa de seus outros trabalhos (especialmente os na televisão) e em parte pelo modo como falava e agia em público. “Não pareço intelectual e não me comporto como deveria”, disse, em uma entrevista. É uma ideia que o filme abraça, mostrando Fernanda Young como uma mulher que ousava ser quem era e dizer o que pensava num momento em que a sociedade estava (ainda) menos aberta a isso.

Ao Mulher no Cinema, Susanna afirmou que a experiência de realizar o filme lhe ajudou a “aceitar não ser querida”. “Por causa da Fernanda, estou trabalhando essa libertação”, disse a diretora. “Somos educadas a seguir modelos de comportamento de aceitação, de agradabilidade e de gentileza, mas não ser querida pode fazer parte do feminino. Temos de aceitar isso como nosso atributo também.”

Leia, abaixo, o principais trechos da entrevista com Susanna Lira:

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Imagem do documentário “Fernanda Young: Foge-me ao Controle”, dirigido por Susanna Lira – Foto: Divulgação

Ouvi você dizer, em outra entrevista, que este foi o filme mais difícil da sua carreira. Por quê?

Porque é muito difícil traduzir uma pessoa tão complexa como a Fernanda, que sempre foi uma inspiração para mim. Estudei com ela no segundo grau e, embora não fôssemos amigas, sempre acompanhei sua carreira na literatura e, depois, na televisão. Comecei o projeto há três anos, portanto dois anos depois de ela ter partido, e encontrei um terreno ainda sensível e delicado. Reler os livros mexeu muito comigo, porque eles falavam de diferentes épocas da minha vida. Quando a Clara Nunes [biografada por Susanna Lira e Rodrigo Alzuguir em Clara Estrela, de 2017] morreu, eu era criança. Embora gostasse dela, e tenha sido influenciada por ela, havia um distanciamento. Da mesma forma, em outras biografias que fiz havia um distanciamento em relação à personagem que me dava certo conforto. Com a Fernanda, não: ela me confrontava. Eu sonhava com ela me confrontando sobre algumas sequências, alguns caminhos que queria seguir. E também tinha a questão de que ela não era só escritora – era roteirista, performer, desenhista, pensadora, era tantas coisas para nós, mulheres. Então [fazer o filme] era uma super responsabilidade, e confesso que sofri bastante. Como traduzir essa mulher que é muito importante para mim e um farol para nós? Como conseguir fazer com que as pessoas que não conhecem a literatura dela tenham o interesse de conhecer? E as pessoas que conhecem, como fazer para que se reconheçam na síntese proposta pelo filme? Eram muitas questões, então foi sofrido e desafiador.

Em se tratando de um filme que não faz entrevistas, nem segue formato linear, imagino que o roteiro tenha sido criado principalmente durante a montagem. Como foi esse processo? Como colaborou com sua equipe para decidir qual caminho seguir?

Este é um filme de pesquisa, então a [diretora assistente] Clara Eyer e o [montador] Ítalo Rocha foram fundamentais para que ele se tornasse o que se tornou. Tínhamos um material muito vasto sobre a Fernanda, e colocar qualquer pessoa falando sobre ela soava um pouco desnecessário – ao menos num primeiro filme, pois acredito que muitas pessoas farão outros filmes sobre a Fernanda. Foi um risco [optar por um formato menos tradicional], mas fazer algo sem risco sobre a Fernanda seria não estar na vibe dela, que era o risco em pessoa. Fomos indo por sequência: “vamos montar esse poema”, “vamos montar a sequência da Madonna [ela se refere a um episódio do programa Saia Justa, do GNT, no qual Fernanda leu uma tradução da música “What it Feels Like For a Girl”, da cantora Madonna] e do trecho do [livro] Tudo que Você Não Soube no qual ela fala sobre o que é ser mãe de uma menina”. E aí essas sequências iam crescendo. Fizemos um mergulho no cinema também, trazendo o cinema para explicar alguém que era da imagem e da palavra. Foi uma pesquisa muito minuciosa, que contou ainda com a Rebecca Moure. A gente debatia muito. Decidimos falar sobre tempo, morte e memória. Mas o que é tempo para a Fernanda? O que é morte para a Fernanda? O que é memória? Foi muito importante ter a parceria dessas pessoas, porque podia trocar com elas. E a outra pessoa que trocou muito com a gente foi o Alexandre Machado. Assim como foi grande parceiro da Fernanda, ele também foi um grande parceiro do filme.

Em que sentido?

Mandei os primeiros dez minutos do filme para ele e disse: “E aí, o que você acha?”. Porque eu não queria errar, sabe? Ao menos não com ele. E no final, quando viu o resultado pronto, ele disse: “Acho que a Fernanda teria dirigido esse filme”. E com isso ele tirou toneladas das minhas costas e das costas da equipe. É a melhor coisa que você pode ouvir: que a pessoa teria gostado do filme, teria participado. E acho que no fundo ela participou. Não sou uma pessoa espiritualizada ou mística, mas acho que a Fernanda esteve presente de várias formas [durante a realização do filme]. A gente queria ir para um caminho, e não podia; não tinha dinheiro para comprar tal arquivo, então tinha que ir para outro…Acho que as dificuldades também ajudaram a tornar o filme o que ele é. E acho que a mãozinha dela estava ali, ajudando de alguma forma.

Imagem do documentário “Fernanda Young: Foge-me ao Controle”, dirigido por Susanna Lira – Foto: Gigi Kassis/Divulgação

Publiquei o trailer do filme em abril, quando o filme foi selecionado para o festival É Tudo Verdade, e fiquei surpresa com a reação das pessoas, que deixaram muitos comentários emocionados. Digo que fiquei surpresa porque, na minha lembrança, a Fernanda era uma artista muito conhecida e que sem dúvida tinha fãs, mas também alguém que incomodava um pouco as pessoas e estava longe de ser unanimidade. Era uma lembrança equivocada ou há uma maior aceitação da figura da Fernanda? Como você tem sentido a resposta do público?

Acho que a Fernanda foi precursora de um tipo de mulher. Ela ia para um programa de televisão e falava absurdos, falava tudo o que pensava, tudo o que sentia. Isto era assustador para muita gente, principalmente numa sociedade machista e patriarcal. Hoje, estamos buscando essas pessoas como faróis. Ao invés de rejeitarmos essas mulheres, passamos a nos juntar em coro com elas – e a Fernanda começou a ver isso no final da vida. A surpresa que você teve também foi uma surpresa para mim. Descobri que a Fernanda tem fãs ardorosos, que ela é um mito para várias pessoas. Exibimos o filme em sessões lotadas de gente jovem, então o pensamento dela está cada vez mais contemporâneo. Ela era vanguarda, e agora começa a ser compreendida. Por exemplo, há um momento no filme em que ela diz que a morte é um alívio para a busca pela perfeição. Nós, mulheres, buscamos a perfeição desde que nascemos, e agora estamos num momento [de questionar isso]. Para mim, o grande aprendizado do filme foi aceitar não ser querida. Eu aceito não ser querida. Aceito não ser amada por todos. Isso é muito libertador, porque somos educadas a seguir modelos de comportamento de aceitação, de agradabilidade, de gentileza. Enquanto isso, o homem bom, o homem maneiro, é o que bate de frente. Dá para ver isso até politicamente: os políticos em ascensão são aqueles que falam as maiores barbaridades – porque não estão preocupados em ser queridos. Estou trabalhando nisso, inclusive em terapia. Até pouco tempo atrás, se alguém falasse algo de mim ou da minha conduta, eu me magoava muito. Agora, se alguém falar mal de mim, ok. Por causa da Fernanda, estou trabalhando essa libertação. Então, que seja uma libertação para outras mulheres também. A gente não precisa ter o texto perfeito, não precisa ter o maior número de likes, não precisa ser magra, não precisa ser jovem. O que fica da Fernanda, para mim, é que [buscar a perfeição] é muito cansativo. Não ser querida pode fazer parte do feminino. Temos de aceitar isso como nosso atributo também.

Ilustração de Fernanda Young utilizada no documentário – Foto: Acervo pessoal Fernanda Young

Você faz muitos documentários, e muitos documentários biográficos, mas dentro desse gênero específico nota-se uma certa variedade. Às vezes seus filmes são mais comerciais, às vezes, menos; às vezes o projeto parte de você, e em outras, chega até você; às vezes os biografados estão vivos, às vezes, não; às vezes são pessoas ou discussões muito conhecidas, às vezes, nem tanto. Como faz para manter sua essência como cineasta e, ao mesmo tempo, estar aberta a diferentes visões e a entender o que cada projeto precisa?

Meu cinema, na essência, é muito político. Tento politizar os temas dos meus filmes, sejam mais ou menos comerciais. Em Mussum, queria falar sobre racismo e mostrar que aquele cara que era conhecido como bêbado e malandro, na verdade ensinou a mãe a ler, era rigoroso com os filhos e prezava a educação. No Clara Estrela, havia a questão de ser uma mulher independente e com certas opiniões políticas. Mesmo quando falo sobre o Adriano Imperador, fala do menino que saiu da comunidade e faço um estudo antropológico da figura do jogador. Sempre consigo manter minhas inquietudes. Consigo confrontar, a partir daquela biografia, algo que me incomoda na sociedade. Consigo manter essa essência e não perder meus valores mesmo [quando trabalho] dentro das plataformas de streaming e das corporações muito voltadas ao mercado. Em todos os filmes que fiz, me vejo de alguma forma. Acho que o que diferencia cada obra é o meu momento como diretora. Nos últimos anos, tenho confrontado minha própria linguagem e minha forma de expressão. Não quero me colocar em caixa nenhuma, não quero dizer “vou ser a diretora experimental” ou “vou ser a diretora comercial”. Quando me dizem que só faço filmes sobre mulheres, vou lá e faço [obras sobre] Casagrande e Adriano Imperador. Quando dizem que só faço biografias muito comerciais, vou lá e faço [o documentário sobre] Fernanda Young. Toda vez que colocam algum rótulo em mim, vou lá e tiro. Porque é isso que fazem com as mulheres de forma geral, e também com as mulheres diretoras. É uma forma de restringir a gente, e eu quero me ampliar, me expandir. Quero ter a liberdade de poder fazer coisas e não ser rotulada. Quero estar nesse lugar de liberdade, onde não querem que eu esteja. O cinema é meu lugar de expressão e eu posso ser várias. Posso ser muitas.

Mas é difícil conseguir manter sua essência e não perder seus valores quando o trabalho envolve grandes empresas? É algo pelo qual você precisa batalhar?

O tempo todo. É uma super batalha e é importante falar que é uma batalha. Porque parece fácil dizer que quero ser livre e fazer tudo. Não, cada coisa é muito negociada e muito conversada. Acho que, ao longo do tempo, as pessoas foram me reconhecendo pelo traço político. Ao me contratarem, ou ao se associarem a mim, elas sabem que vão ter uma conversa sobre isso, na qual vou colocar meu ponto de vista sobre as coisas. É um espaço que conquistei a duras penas – e é um espaço de conversa, não é um espaço em que as pessoas aceitam tudo o que falo e faço. Não é fácil, nunca, nem para mim, nem para ninguém. Encaro meu trabalho, e o cinema, como uma grande responsabilidade e algo muito sagrado. Acordo pensando em projeto, vou dormir pensando em projeto, estou super animada de estar aqui falando com você…Isso aqui é a minha vida, entende? E não dá para negociar meu prazer de estar viva. Mas é difícil, é uma batalha. E tem projetos que são mais batalha do que outros. Este da Fernanda, foi batalha. Não cabe a mim entrar em detalhes, mas os inimigos estão por toda parte [risos]. Então é duro, e sendo mulher, é mais duro ainda. Vejo filmes dirigidos por homens e fico imaginando como foi fácil para ele colocar aquele pensamento, como foi fácil para ele arriscar. O risco é um lugar de privilégio – e é um lugar ainda muito masculino. Falo isso com muita emoção, com ressentimento mesmo. Quando trabalhamos com grandes orçamentos, somos muito pressionadas a entregar. E aí vemos um cara com [um filme de] orçamento três vezes maior que não entregou e tudo bem. “Fazia parte do risco”. Para as mulheres, arriscar é muito difícil. Para a Fernanda, arriscar foi muito difícil. Acho que o grande legado dela é fazer com que a gente nunca perca a chance de poder arriscar. A gente tem de sempre poder arriscar, errar, falhar.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

Foto do topo: Leo Martins 

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