Nos últimos dez anos, Pernambuco tornou-se uma espécie de capital do cinema brasileiro, berço de alguns dos melhores e mais premiados lançamentos nacionais. E destes vários talentos pernambucanos, muitos chegaram às telas com a ajuda de uma mulher francesa: Emilie Lesclaux, produtora de títulos como Recife Frio (2008), O Som ao Redor (2010), Sem Coração (2014), Permanência (2015), Aquarius (2016) e Bacurau (2019), aguardadíssimo longa-metragem de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles que chega aos cinemas nesta quinta-feira (29), embalado por um histórico Prêmio do Júri no Festival de Cannes.
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Nascida em Bordeaux e vivendo no Recife desde 2002, Emilie encontrou no Brasil o caminho para concretizar a antiga vontade de trabalhar com cinema. Seu encontro com Kleber Mendonça Filho rendeu um casamento, dois filhos, a produtora CinemaScópio e a direção do festival Janela Internacional de Cinema, além de curtas e longas premiados internacionalmente. Com Bacurau, o casal chega a seu projeto de maior escopo: uma coprodução francesa com orçamento de R$ 7,7 milhões e elenco numeroso, filmada durante três meses em Sertão do Seridó, divisa do Rio Grande do Norte com a Paraíba. Do ponto de vista da produção, Bacurau representou desafios que vão do complexo planejamento inicial aos cenários destruídos pela chuva. E se muitos produtores passam longe do set, Emilie acompanha o antes, o durante e o depois das filmagens. “Gosto de estar [presente] desde a primeira ideia”, afirmou, em entrevista ao Mulher no Cinema.
Bacurau se passa em um futuro próximo, quando um povoado no sertão de Pernambuco desaparece do mapa e assassinatos inexplicáveis começam a acontecer. Diante de um inimigo incerto, os moradores tentam se defender numa trama ao mesmo tempo tipicamente brasileira e fortemente marcada por referências do cinema americano. Há elementos de faroeste, ação e suspense, mas também a crítica social e a observação das desigualdades brasileiras que marca a parceria de Kleber e Emilie. “A gente nunca calcula isso, mas Bacurau está se comunicando muito com o estado do mundo e do Brasil”, afirmou a produtora.
Prova disso é a expectativa em torno do filme, que começou em Cannes e ganhou força nas últimas semanas. As primeiras pré-estreias tiveram ingressos esgotados e enormes filas nas portas das salas, motivando a marcação de várias outras sessões antecipadas em mais de 20 cidades, algo incomum para filmes brasileiros. De acordo com o portal especializado Filme B, antes mesmo da estreia oficial Bacurau já levou 18 mil pessoas ao cinema.
Na entrevista a seguir, Emilie fala sobre a expectativa para o lançamento, os desafios da produção e a contradição de o cinema brasileiro viver, ao mesmo tempo, um momento artístico brilhante e um momento político preocupante. “Quando a gente chega a esses resultados incríveis, está tudo sendo questionado.”
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Tenho a impressão de que você é uma produtora que se envolve bastante nas diferentes etapas dos filmes que produz. Esta impressão é correta?
Sim. Gosto de estar [presente] desde a primeira ideia, de trocar. Não me meto no roteiro, mas fico dando opiniões quando me pedem. Gosto muito da parte em que a gente começa a preparar, pensar nos atores, nas locações. Gosto de me envolver nessas decisões, e em Bacurau era importante achar a locação e a combinação de atores perfeita. Então acompanhei bastante toda esta fase. Vários produtores não gostam de visitar o set, mas eu gosto muito de saber o que está acontecendo. E depois, na montagem, [o grau de envolvimento] depende do filme. Em Aquarius, acompanhei todas as fases. Em Bacurau, esperei vários meses para ver o primeiro corte.
Você deixa os realizadores escolherem a melhor hora de te mostrar o filme?
Sim. Eles preferiram esperar para me mostrar, e também achei melhor, pois pude ter mais distância.
Este é o projeto de maior orçamento que você e Kleber realizaram até agora. Quais os principais desafios que você enfrentou do ponto de vista da produção?
Foram vários. O filme foi se transformando muito, foi um processo bem demorado. Outros filmes passaram na frente, os meninos não estavam satisfeitos com o roteiro e continuaram trabalhando. Conforme o projeto se transformou, o tamanho dele também cresceu. Então houve um desafio de tentar acompanhar essas mudanças e achar novas parcerias. O filme ficou mais complicado do ponto de vista da produção: foi preciso captar mais recursos, aumentar a equipe. Acho que tentar entender o tamanho do filme foi a primeira dificuldade. Depois, teve o fato de que sim, este foi o maior orçamento com o qual a gente trabalhou, mas, ao mesmo tempo, fui percebendo que ele não era suficiente. A gente fez tudo muito apertado, no limite. Eram locações distantes, um elenco gigantesco…e aí tem as complicações que acontecem no meio do caminho de qualquer produção. Por exemplo, depois de sete anos começaram chuvas torrenciais na região em que a gente ia filmar. Aí houve destruição de cenários, problemas de acesso à locação principal…não foi fácil administrar.
A Silvia Cruz [dona da Vitrine Filmes, distribuidora de Bacurau] disse ao Filme B que, de todos os filmes do Kleber, este é o que tem perfil mais amplo de público. Você concorda?
É muito difícil entender isso quando se termina um filme. É o trabalho dela, né? Por um lado, sim, enxergo isso. Pelo roteiro, achava que seria um filme de maior potencial [de público]. Depois, fiquei em dúvida, porque comparando com Aquarius, Bacurau não é um filme que tem uma protagonista e uma história fácil de explicar. Do ponto de vista narrativo, acho mais complexo. Ao mesmo tempo, ele é muito envolvente, tem elementos de filme de ação, de gênero, tem aspectos que se comunicam muito bem. E depois tem o contexto do filme. A gente nunca calcula isso, mas acabou que ele está se comunicando muito com o estado do mundo e do Brasil. Estou vendo isso acontecer pelas reações nos festivais e principalmente pela reação dos exibidores aqui no Brasil. Está todo mundo com muita fé de que o filme vai ser visto.
“Pude ver todos os progressos que aconteceram nestes anos, todas as conquistas, como todo mundo cresceu e amadureceu. É meio chocante ver como tudo pode sumir tão rápido. Ao mesmo tempo, quando estávamos fazendo os filmes, me lembro de o Kleber [Mendonça Filho] sempre falar: ‘A gente está numa época de ouro. A gente tem de curtir o que estamos conseguindo fazer, porque pode acabar.’ É muito fácil acabar. É mais fácil destruir do que construir.”
O filme é lançado em um momento de crise do audiovisual, com muitas dúvidas sobre como a Ancine e todo o setor vai funcionar no governo de Jair Bolsonaro. Como vê esta situação?
É muito contraditório. Estamos em um ano muito difícil, de crise, tentando entender o que vai acontecer. Ao mesmo tempo, estamos em um ano incrível de reconhecimento do cinema brasileiro. Desde o início do ano, os filmes brasileiros têm sido destaque nos principais festivais do mundo. E não apenas o cinema brasileiro, mas o cinema brasileiro fora do eixo: filmes do Nordeste e de Minas Gerais que percorrem o mundo. Isso é fruto de mais de uma década de políticas públicas para incentivar o cinema. E no momento em que a gente chega a esses resultados incríveis, está tudo sendo questionado. Então é um sentimento de tristeza e, ao mesmo tempo, de lutar, de tentar participar das discussões e de a classe ficar unida para defender o que a gente ainda tem.
De certa forma, você e o Kleber são símbolos de uma geração de artistas que amadureceu justamente ao longo destes anos de políticas públicas para o audiovisual.
Totalmente. Comecei a trabalhar quando os talentos de Pernambuco estavam começando a aparecer e todo mundo trabalhava junto. Ainda tem um pouco disso no cinema que a gente faz: todo mundo colaborando de alguma maneira com o outro, fazendo diferentes funções. Pude ver todos os progressos que aconteceram nestes anos, todas as conquistas, como todo mundo cresceu e amadureceu. É meio chocante ver como tudo pode sumir tão rápido. Ao mesmo tempo, quando estávamos fazendo os filmes e vendo tudo isso acontecer, me lembro de o Kleber sempre falar: “A gente está numa época de ouro. A gente tem de curtir o que estamos conseguindo fazer, porque pode acabar.” É muito fácil acabar. É mais fácil destruir do que construir.
Especificamente no caso da descentralização da produção, qual a importância da continuidade de políticas públicas que fomentem a produção de filmes fora do eixo Rio-São Paulo?
É importante que os brasileiros possam se enxergar na tela e nas manifestações culturais. É algo que faz parte da nossa cidadania, que ajuda a gente a se construir como cidadão. A representatividade dos estados foi um aspecto muito bom das políticas do audiovisual. O Som ao Redor foi produto de cotas regionais em edital de baixo orçamento. Vários filmes vieram também do fortalecimento dos estados na construção de políticas audiovisuais. Pernambuco começou um edital em 2008 que foi crescendo e hoje é um dos mais importantes do Brasil. Então não é apenas que [o cinema brasileiro] tem de crescer: tem de crescer de maneira diversa.
“É importante que os brasileiros possam se enxergar na tela. É algo que faz parte da nossa cidadania, que ajuda a gente a se construir como cidadão.”
Você tem vontade de assumir outras posições além da produção, como roteiro ou direção, por exemplo? Ou foi mesmo na produção que você se encontrou?
Já tive essa vontade quando era mais jovem e estava tentando entender o que ia fazer no cinema. Escrevi algumas coisas, pensei em realizar. Nos primeiros projetos com o Kleber, fiz um pouco de várias coisas: montagem, produção, som. Gostei de saber um pouco de tudo, mas naturalmente você vai se especializando em algo. Hoje estou tão envolvida nas questões de produção que não tenho cabeça para pensar em fazer outra coisa. Não descarto, mas por enquanto não apareceu oportunidade.
Quais as características de um bom produtor?
Gosto dos produtores que são cinéfilos, que têm conhecimento sobre a história do cinema, continuam assistindo aos filmes e têm uma relação passional com o cinema. Me identifico com este tipo de produtor. Claro, há qualidades de organização, de entender a parte prática e logística. Mas, antes de tudo, é preciso amar o cinema.
Quais são alguns dos filmes que você ama?
Comecei minha cinefilia com filmes antigos, que assistia com a minha mãe: [Alfred] Hitchcock, [Stanley] Kubrick, Billy Wilder. Depois, o cinema americano dos anos 1970, que adoro. Mas a cinefilia vai mudando. Quando era criança e adolescente, não gostava tanto de filmes de ação, de gênero. Com o Kleber comecei a ter mais contato e a apreciar mais. Descobri que o cinema de gênero é profundo, e hoje também adoro.
Que conselho você daria para as mulheres que querem trabalhar no cinema?
Sempre fiz o que quis, sem questionar se poderia ou não fazer por ser mulher. Sempre gostei de cinema, sempre soube que queria fazer algo com cinema. Para mim, ser mulher nunca foi uma questão. Então acho que você tem de fazer o que você acredita. E o fato de vermos cada vez mais mulheres numa posição de protagonismo, principalmente na direção, é muito estimulante para quem tem essa ambição.
Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema
Fotos: Victor Juca