Amandine Gay: “Quis mostrar mulheres negras se apropriando da narrativa”

Em 2014, a francesa Amandine Gay estava cansada de interpretar imigrantes ilegais, traficantes, prostitutas e outras personagens calcadas em estereótipos que costumavam ser oferecidas a atrizes negras como ela. Uma dia, uma amiga lhe deu um conselho: “Se você quer papéis melhores, escreva-os você mesma.”

Amandine então começou a escrever roteiros, inclusive o de uma série de televisão sobre um grupo de amigas em Paris. Na busca por possíveis produtores, ouviu outra fase marcante, desta vez sobre a sommelier negra e lésbica que incluíra entre as protagonistas. “Isso é muito americanizado”, disse um produtor. “Mulheres assim não existem na França.” Um comentário no mínimo surpreendente para Amadine, que já trabalhou em bares, se identifica como pansexual e via na personagem uma versão de si mesma. “Estava indo em reuniões para ouvir homens brancos de 50 anos me dizerem que eu não existia”, relembrou.

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Tais experiências ecoam no documentário Abrir a Voz, o primeiro longa-metragem de Amandine como roteirista e diretora, que está disponível para streaming no Reserva Imovision. O documentário, que também foi selecionado para a edição 2020 do Festival Internacional de Mulheres no Cinema (FIM), entrevista 24 mulheres para compor um retrato do que é ser negra na França. Seguindo o formato “talking heads” [quando pessoas são entrevistadas diretamente, geralmente filmadas do ombro para cima], o filme é dividido em 16 capítulos temáticos que discutem de religião e sexualidade à saúde mental e padrões de beleza. 

Discute-se, também, sobre o contexto bastante particular da França, um país que proíbe a coleta de dados relativos à raça e que em 2018 tirou esta mesma palavra – raça – de sua Constituição. Se na teoria o universalismo ressalta a igualdade entre todos os cidadãos, na prática dificulta o reconhecimento de obstáculos e desafios que são específicos de determinados grupos populacionais. Isso significa que mesmo organizações dedicadas a questões de gênero – como o Coletivo 50/50, que busca paridade para homens e mulheres no audiovisual francês – não abordam a questão racial de forma frontal.

Abrir a Voz, ao contrário, se propõe a derrubar tabus dentro e fora da comunidade negra e levar o debate sobre racismo e machismo para a esfera pública. Também pesquisadora e afrofeminista, Amandine financiou, produziu e distribuiu o filme de forma independente, com a ajuda do parceiro e diretor de fotografia Enrico Bartolucci. Para que seu filme chegasse ao público, a diretora fez campanha de financiamento coletivo, telefonou ela mesma para as salas de cinema e fez a divulgação nas redes sociais.

Em novembro de 2020, quando Abrir a Voz foi exibido no FIM, Amandine concedeu uma entrevista via videoconferência à Luísa Pécora, criadora do Mulher no Cinema. A entrevista foi publicada no mesmo mês no site do FIM e uma versão editada pode ser lida também abaixo:

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Enquanto muitos cineastas fogem ao formato talking heads, você parece abraçá-lo com orgulho em Abrir a Voz. Por que optou por esse formato?

É preciso escolher o formato que melhor se adequa ao que cada filme busca dizer. Abrir a Voz, como o próprio título indica, aborda a necessidade de as mulheres negras poderem falar sobre suas experiências sem serem interrompidas. O filme quer criar uma conversa entre mulheres negras, e o formato talking head era perfeito para isso. Então, Enrico e eu começamos a pensar em como usar este gênero de forma cinematográfica. Na televisão, as emissoras temem que a gente mude de canal e ficam tentando nos distrair o tempo todo. No cinema, isso não é necessário: há um acordo tácito segundo o qual você vai à sala e aceita o que é proposto a você durante duas horas. Não é preciso distrair as pessoas, especialmente quando o que as entrevistadas estão dizendo é extremamente interessante. Nossa referência foi Sob a Névoa da Guerra, de Errol Morris, pelo modo como usa o jump cut [corte busco para remover parte de uma tomada]. Como não tínhamos dinheiro para trilha sonora, encontramos o ritmo na própria edição. Os respiros ficaram por conta das telas que separam cada capítulo e das cenas em que mulheres negras fazem arte, de teatro clássico a apresentações de burlesco. Isso era importante porque a arte e a criação me ajudaram a escapar daquilo que eu tinha de fazer ou ser como mulher negra na França. Queria mostrar que não nos limitamos como artistas – quem nos limita é a indústria.

Imagem do filme “Abrir a Voz”, de Amandine Gay

Você também optou por filmar as entrevistadas bem de perto e com luz natural. Por quê?

Uma das coisas que ouvia trabalhando como atriz era que pessoas negras não eram contratadas por serem difíceis de iluminar. Quis mostrar que mulheres negras podem ser lindamente filmadas e com luz natural. Enrico e eu fizemos vários testes com uma amiga, que também é atriz e aparece no filme, para brincar com a luz e descobrir o quão perto podíamos chegar das entrevistadas. Os enquadramentos buscaram colocá-las realmente em quadro, tomando conta da tela, para lhes dar poder. Nossa intenção era mostrar a beleza de cada uma, mas não o tipo de beleza que vemos em comerciais. De forma geral, todas as decisões estéticas foram ditadas ou pela falta de recursos, ou pela ideia central, que é mostrar mulheres negras se apropriando da narrativa.


“O primeiro público do filme, para mim, são as pessoas negras, especialmente as mulheres. Queria garantir que elas sentissem que tudo o que vivem é legítimo. Há um mito de que as pessoas negras estão sempre felizes, de que as mulheres negras são muito fortes e podem superar tudo. Isso simplesmente não é verdade. Passar por tanta violência desde cedo tem impacto na saúde. Se você é parte de um grupo que supostamente é forte e feliz, mas não consegue performar isso, se sente mal, culpada. Minha primeira intenção era dizer: tudo bem não se sentir bem.”


O filme aborda vários temas importantes, mas os capítulos sobre saúde mental e sexualidade são especialmente marcantes. Por que quis abordar estes temas?

O primeiro público do filme, para mim, são as pessoas negras, especialmente as mulheres. Queria garantir que elas sentissem que tudo o que vivem é legítimo. Há um mito de que as pessoas negras estão sempre felizes, de que as mulheres negras são muito fortes e podem superar tudo. Isso simplesmente não é verdade. Passar por tanta violência desde cedo tem impacto na saúde. Se você é parte de um grupo que supostamente é forte e feliz, mas não consegue performar isso, se sente mal, culpada. Minha primeira intenção era dizer: tudo bem não se sentir bem, tudo bem ir ao terapeuta. É um trabalho pedagógico mesmo, pois saúde mental e depressão ainda são tabus dentro da comunidade negra. O mesmo vale para questões de sexualidade. Muitas entrevistadas falam sobre como cresceram achando que eram as únicas mulheres negras lésbicas ou bissexuais do mundo. Queria colocar alguns assuntos para serem debatidos na esfera pública. Se não podemos falar sobre raça, como encontramos terapeutas que possam nos ajudar a lidar com o racismo? Se não temos estatísticas, como sabemos se as mulheres negras estão morrendo no parto por causa do racismo? Então há diferentes propósitos para cada público: o filme diz às mulheres negras que elas têm muitas opções e podem fazer o que quiserem; mostra a importância de a comunidade negra desconstruir sua própria homofobia e transfobia; e fala com os brancos também, pois há uma tendência a se pensar que todas as pessoas negras são heterossexuais. Isso faz com que muitas associações e grupos LGBTQIA+ nem sempre entendam o que significa ser negra e lésbica, por exemplo.

Imagem do filme “Abrir a Voz”, de Amandine Gay

Em muitos países, inclusive o Brasil, chamar a atenção para as questões e estatísticas específicas das mulheres negras é uma forma de tentar assegurar que estas questões sejam atendidas. Do contrário, muitas vezes o conceito “mulher” na prática passa a significar “mulher branca”. Como contornar isso na França, onde não se pode falar em raça? Um coletivo como o 50/50, por exemplo, aborda as questões específicas das mulheres negras do audiovisual francês?

Quando o 50/50 foi criado, eu e mais duas cineastas negras decidimos ir a todas as reuniões, pois sabíamos que, do contrário, elas seriam apenas sobre mulheres brancas. Sou ativista há muito tempo, fui parte de uma grande organização feminista por anos e já estive nesse tipo de situação várias vezes. Há uma mulher negra entre as líderes do 50/50 [Amandine se refere à produtora Laurence Lascary, que deixou a presidência do coletivo em maio de 2022, cerca de um ano e meio após a realização desta entrevista] e ela trabalha muito para levar estas questões aos debates e oficinas. Mas vou te dar um exemplo: em uma oficina sobre financiamento, levantei questões raciais e ouvi uma mulher me dizer que eu estava atrapalhando a conversa, que o assunto eram “mulheres”. Então há trabalho sendo feito, mas não muitos resultados, porque não podemos abordar a questão racial de maneira frontal. Queríamos criar um diretório de profissionais não brancas, mas virou um diretório de profissionais em geral. Queríamos fazer uma versão do “inclusion rider” [cláusula que estrelas de Hollywood podem colocar no contrato para exigir maior inclusão na equipe], mas virou um documento que as produtoras podem assinar e dizer que se comprometem com diversidade. É um trabalho exaustivo, então dei um passo para trás: ainda sou integrante, mas não tão ativa quanto nos primeiros anos. Outras profissionais negras entraram para o conselho e vão trazer energia renovada para lutar por essas questões. Mas a indústria cinematográfica francesa não é um lugar de ativistas. Nos Estados Unidos as atrizes, mesmo as brancas, usam seu poder para buscar igualdade, em movimentos como #MeToo e Time’s Up. Na França, há atrizes assinando cartas para dizer que querem poder receber cantadas e defendendo o Roman Polanski. Pessoas que vêm do ativismo, como eu, não se identificam com esse tipo de feminismo. Ao mesmo tempo, o 50/50 é o único grupo que existe, e de fato está tendo conversas com instituições e empresas. Então sigo fazendo parte, mas entendo que devo pensar sobre quanta energia investir em um espaço que claramente não foi feito para mim.


“Enquanto as instituições não mudarem, e as pessoas dentro destas instituições não se engajarem para acabar com o patriarcado e a supremacia branca, nada vai mudar. Podemos ser ativistas, artistas, cruzar limites, bater recordes – chega uma hora em que não conseguimos mudar as pessoas. Elas têm de fazer o trabalho.”


Você financiou, produziu e distribuiu Abrir a Voz de forma independente, e obteve sucesso de público. Considerando tantos outros filmes de mulheres e minorias que tiveram trajetórias similares, por que instituições e empresas ainda não entendem que a plateia quer ver filmes como o seu? O que ainda falta para que apoiem estes filmes?

Falta vontade de mudar [risos]. Quando comecei a buscar distribuidores, me disseram que o filme era de nicho, que apenas negros iriam assistir. De lá para cá, Corra!, Moonlight, Pantera Negra e tantos outros tiveram ótimos resultados de bilheteria inclusive na França. Não é mais uma questão de provar que nossos universos podem ser universais. Enquanto as instituições não mudarem, e as pessoas dentro destas instituições não se engajarem ativamente para acabar com o patriarcado e a supremacia branca, nada vai mudar. Podemos ser ativistas, artistas, cruzar limites, bater recordes – chega uma hora em que não conseguimos mudar as pessoas, são elas que têm de fazer o trabalho. Na França, é isso que falta: que as pessoas no poder façam o trabalho delas, reconheçam as desigualdades, contratem quem veja os projetos com outros olhos. E que paguem essas pessoas também, porque participar de algo como o 50/50 significa muito trabalho de graça. Quando trabalho como “consultora de diversidade” para empresas, sou paga. Acho que deveria ser paga se vou trabalhar para o governo e ajudá-lo a melhorar suas políticas. Ou, se for para trabalhar de graça, as políticas têm de ser implementadas.

Que conselho você daria para as mulheres que querem trabalhar no cinema?

Não limitem suas ambições à situação em que se encontram. Comecem pensando sobre o que querem falar e de que forma querem falar. Meu segundo longa é sobre adoção e queria fazer um filme de arquivo, o que custa caro. Se pensasse primeiro nisso, desistiria da ideia. Mas o arquivo é importante para falar sobre adoção, sobre não ter acesso ao registro do seu nascimento, sobre o que temos ou não temos de arquivo das nossas vidas. Essa é a forma que combina com o que eu quero dizer. Por saberem como é difícil encontrar apoio, muitas cineastas mulheres ou de minorias tentam se adequar ao estreito espaço que lhes é permitido. Mas é melhor começar pelo que você quer e, depois, tentar encontrar formas de fazer acontecer.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do site Mulher no Cinema. A entrevista com Amandine Gay foi realizada em novembro de 2020 e originalmente publicada no site do FIM – Festival Internacional de Mulheres no Cinema. Alguns trechos foram editados na versão publicada acima.

Foto do topo: Nathalie St-Pierre

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