Em uma das primeiras cenas de América Armada, documentário de Alice Lanari e Pedro Asbeg que chegou neste mês ao streaming, a ativista colombiana Teresita Gaviria ouve a história de uma das muitas mulheres que a procuram em busca de informações sobre parentes desaparecidos. Com semblante triste, mas sem chorar, a mulher conta que o conflito armado do país primeiro lhe tirou o marido e, depois, o filho. Teresita então pergunta: “Qual dor foi maior?”. Cedendo às lágrimas, a interlocutora responde: “O filho”.
Este diálogo dá o tom de um documentário que, sem recorrer a números, entrevistas ou narração, retrata os efeitos da militarização da sociedade civil na América Latina. Disponível no NOW, Vivo Play e Oi Play, e com exibição marcada para 25 de abril na Globo News, América Armada acompanha ativistas na Colômbia, México e Brasil, identificando particularidades de cada país, mas entendendo a violência como fenômeno regional.
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Teresita é uma destas ativistas, também ela mãe de uma vítima do conflito armado colombiano. Integrante do grupo Madres de La Candelária, ela busca informações sobre desaparecidos e promove encontros entre dezenas de mulheres e os assassinos de seus filhos, num esforço de reconciliação. No México, o retratado é o jornalista Heriberto Paredes, que registra, em texto e imagem, a luta de grupos de autodefesa na região de Michoacán. Formados por indígenas, estes grupos armados defendem seu território tanto do Estado quanto do narcotráfico. Por fim, no Rio de Janeiro, o filme acompanha Raull Santiago, membro do Coletivo Papo Reto, que usa o telefone celular e as redes sociais para gravar e transmitir os abusos da polícia no Complexo do Alemão.
O documentário começou a ser pensado em 2014, quando Lanari, que é carioca, vivia no México. Durante um jantar na casa de um amigo em comum, ela e Pedro Asbeg conversaram sobre as semelhanças e diferenças entre a atuação dos grupos de autodefesa indígena mexicanos e as milícias do Rio de Janeiro. A conversa informal evoluiu para reuniões no Skype e um processo de pesquisa que rapidamente passou a incluir também a Colômbia. Do jantar no México ao lançamento nas plataformas digitais foram quase sete anos, um período no qual os problemas diagnosticados pelo filme apenas se aprofundaram, principalmente no Brasil. Quando as filmagens terminaram, em 2017, o país ainda não tinha sido abalado pelo assassinato da deputada Marielle Franco (1979-2018), nem pela eleição de Jair Bolsonaro à presidência. Cerca de um mês antes da estreia do documentário, e em meio à pandemia que já matou mais de 287 mil brasileiros, Bolsonaro editou quatro decretos para aumentar e facilitar o acesso da população a armas e munições.
A diretora definiu o momento do lançamento como “assustador”. “Nos preocupávamos com as milícias e percebíamos que o monopólio da violência estava sendo esgarçado no Brasil, mas não podíamos imaginar que o cenário seria esse”, afirmou Lanari, em entrevista via Zoom ao Mulher no Cinema. “O que Bolsonaro está fazendo é dar porte de armas para as pessoas na rua. Não há dúvida de que se trata de um projeto de desestabilização da democracia, que está caminhando a passos rápidos e largos.”
América Armada é o primeiro longa-metragem de Lanari, que foi produtora associada de Democracia em Vertigem, o filme de Petra Costa que concorreu ao Oscar no ano passado, e é sócia-diretora da produtora Tantas, com sede em Brasília, numa parceria com Melina Bomfim e Micaela Neiva.
Lanari também já trabalha no segundo documentário como diretora, Nunca Mais Serei a Mesma, que tem lançamento previsto para o segundo semestre e aborda a violência contra a mulher em Brasil, Argentina, México e Honduras. A conexão com a América Latina, portanto, é traço marcante na obra e na vida da cineasta, que também já morou na Argentina e agora vive no Equador. “Há alguns anos me entendi como uma mulher latino-americana”, contou. “E ao me entender assim, foi como se tivesse ganhado muitas irmãs, muitas primas, uma capacidade de me sentir em casa em outros lugares, de entender, de escutar e de me sentir mais acolhida.”
Leia a entrevista com Alice Lanari sobre os bastidores de América Armada:
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Como o projeto começou e como se deu o processo de pesquisa?
Começamos pesquisando sobre as semelhanças e diferenças entre as milícias do Rio de Janeiro e os grupos de autodefesa indígena do México, especialmente na região de Michoacán. Conforme nos aprofundamos, percebemos que era preciso trazer a Colômbia para a conversa. Era um país que tinha muito a nos ensinar por já estar mais avançado nesse processo, vivendo um conflito armado de 50 anos, com todas as suas dimensões trágicas. A partir daí começamos a definir a cara do filme que a gente queria fazer. Decidimos que teríamos um personagem de cada país, que faríamos cinema direto, de observação, sem talking heads. E decidimos que, ao invés de pensar nos problemas isolados de cada lugar, teríamos um olhar mais regional. Fomos para o México e a Colômbia e viajamos dentro do Brasil também, em busca dos personagens e de entender quais eram os elementos mais importantes dentro dos conflitos que estávamos tentando retratar.
Como chegaram a Heriberto, Teresita e Raull?
Foram diferentes processos. Na Colômbia tínhamos um perfil mais aberto, e encontramos muitas pessoas incríveis, que poderiam ser personagens. Mas optamos pela Teresita, que chegou ao filme logo no início da pesquisa, quando ainda estávamos no Brasil. No México, buscávamos especificamente um jornalista. No Rio de Janeiro, a princípio queríamos alguém que tivesse sido vítima das milícias, mas ninguém topou participar. Depois, buscamos pessoas que lutavam contra as mílicias e, nesse momento, conheci Marielle Franco. Ela integrava o gabinete de Marcelo Freixo na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e acompanhava os autos de resistência [homicídios praticados pela polícia contra civis e classificados dessa forma para evitar que os oficiais sejam responsabilizados, alegando se tratar de legítima defesa]. Eu e a Natasha Neri, que era nossa pesquisadora, tivemos um encontro incrível com Marielle no café do Paço Imperial. Ela disse que podíamos contar com ela para todo tipo de ajuda e informação, mas que ela precisava continuar fazendo o trabalho dela, e por isso não poderia colocar a cara no filme. Na época, ela era menos conhecida, mas já era aquela mulher – já era aquela coragem. Seguindo com a pesquisa, chegamos ao Raull e ao Coletivo Papo Reto, que surge da ideia de registrar a violência policial dentro do Complexo do Alemão. Como conhecemos os personagens cerca de um ano antes das filmagens, conseguimos ter um espaço de confiança e intimidade com eles.
A Teresita é uma presença muito forte no filme, talvez a mais forte para mim. Gostaria que você falasse um pouco sobre como foi a relação com ela.
Conhecer a Teresita foi muito forte, muito emocionante. O papel que ela tem ali, o da mãe de desaparecido, é um papel que está em toda a América Latina. Em toda cidade da América Latina existe essa pessoa. E ela também traz um outro arco a partir do trabalho de perdão e reconciliação que ela faz, resultado de um enorme processo de negociação na Colômbia, que envolve Estado, Justiça, escuta das vítimas. Embora o Brasil esteja longe deste processo, e embora o filme mostre que cada país tem as suas particularidades culturais, acho que a Teresita nos ensina alguma coisa. Ela abre uma possibilidade, uma capacidade de escuta. A partir da desmobilização dos paramilitares e das negociações, ela mesma muda de percepção: ao invés de vítimas e vitimários, todos passam a ser sobreviventes de 50 anos de guerra civil.
O documentário acompanha a preparação para um destes encontros de reconciliação, no qual uma mulher vai a um presídio encontrar o responsável pela morte de um membro de sua família. No entanto, não vemos o encontro. Vocês não puderam ou não quiseram filmá-lo?
Todo o nosso plano de filmagem, todo o cronograma, tudo foi montado em cima da autorização que tínhamos para entrar no presídio e filmar esse encontro. Tudo foi preparado para estarmos na Colômbia naquela exata data. Chegamos alguns dias antes, filmamos toda a preparação. No dia do encontro, quando estávamos na porta do presídio e depois de um longo atraso, nos informaram de que não poderíamos entrar com a câmera. Aparentemente, imagens que tinham sido feitas por uma equipe jornalística estavam sendo utilizadas em um plano de fuga. Tentamos argumentar, mas eles sugeriram que entrássemos sem câmera e voltássemos para filmar outro dia. Entramos e foi incrível, fortíssimo. Não apenas ela conseguiu as informações que precisava como também houve um jogo de futebol entre guerrilheiros e militares. No dia seguinte começamos a tentar resolver a questão da autorização de filmagem, mas saímos da Colômbia sem conseguir. Seguimos tentando durante um ano, mas não teve jeito. E é uma falta, uma falta sentida. Ela descreve, descreve e descreve uma situação, mas a gente não vê a situação no filme, infelizmente.
As três pessoas retratadas são muito corajosas e estão no centro de situações tensas e arriscadas. Por exemplo, no momento em que Raull tem um embate com um policial armado e muito nervoso, a quem filma o tempo todo, sem vacilar. Como foi acompanhar esse tipo de situação, inclusive em termos de logística? Como era a equipe?
Éramos quatro pessoas no set: Pedro, eu, o diretor de fotografia Pablo Baião, que não tinha assistente de câmera, e o Marcel Costa no som direto. A partir do momento em que decidimos retratar pessoas ameaçadas de morte, que lutam contra a violência usando outras armas que não as de fogo, tínhamos de estar na mesma situação que eles. Fazia parte da relação de confiança que estabelecemos: não podíamos filmá-los apenas em casa e no escritório, tínhamos de estar para jogo. Aliás, o América Armada nos ensinou o quanto a gente tem de estar preparado para encontrar o inesperado sem entrar me pânico, tanto em termos de embasamento teórico quanto nas relações que estabelecemos com os personagens. Curiosamente, a cena que você descreveu foi exatamente a primeira filmagem que fizemos. Tínhamos marcado de encontrar o Raull na entrada do Complexo do Alemão para juntos subirmos até a casa dele e passarmos o dia lá. Quando estávamos a caminho, ele ligou perguntando se estávamos preparados para ir para a rua, porque um morador tinha feito uma denúncia e ele tinha de ir verificar. Dissemos que sim, mudamos o ponto de encontro e já fomos direto para aquela situação.
Imagino que vocês não tinham o mesmo treinamento que ele. Sentiram medo?
Eles ensinaram muitos protocolos para a gente. No caso do Raull, uma semana antes da filmagem demos um rolezão com ele pelo Complexo do Alemão, não apenas para conhecermos mas também para sermos vistos, tanto pelos policiais como pelos traficantes e pela comunidade em geral. Um dos protocolos que adotamos foi nos dividirmos em dupla: Pedro e eu éramos uma, Pablo e Marcel eram outra. Em qualquer situação, eu tinha de saber onde o Pedro estava e vice-versa. Da mesma forma, Pablo e Marcel tinham de ficar ligados o tempo todo um no outro. Mas é claro que tivemos medo. Por mais que seguíssemos protocolos e estivéssemos muito atentos, os policiais estavam armados e completamente descontrolados.
Eles não tentaram evitar as filmagens ou tirar a câmera de vocês, por exemplo?
Nunca, até pelo próprio ativismo do Raull, que passa muito pela questão da imagem, por registrar a violência policial. Ele tem seus direitos e deveres na ponta da língua. Por exemplo, sabe que qualquer cidadão pode filmar qualquer policial fardado, sem precisar de autorização ou direito de imagem. Então não houve tentativa de nos impedir de filmar. Mas é claro que a gente também foi filmado. Eles nos filmaram, levantaram a nossa ficha. No dia seguinte já estavam me chamando de Alice Lanari. E eu não me apresentei para ninguém, sacou?
Vocês filmaram em 2017, portanto antes do assassinato da Marielle e da eleição do Bolsonaro. De lá para cá, não há dúvida de que os problemas diagnosticados pelo filme só ficaram mais graves, ao menos no caso do Brasil. Como vê o momento do lançamento?
É assustador. De certa forma, acho que a gente vislumbrou algo. No México, por exemplo, no momento da pesquisa, a guarda indígena que aparece no filme estava armada e era tolerada pelo Estado. Mas na época da filmagem, eles não eram apenas tolerados, eles já estavam legalizados, já usavam farda de polícia. É muito grave quando o Estado abre mão do monopólio da violência. Da mesma forma, a milícia carioca foi muito tolerada. É fácil encontrar declarações do Eduardo Paes e do Sérgio Cabral dizendo: “tudo bem”, “menos mal”, “pelo menos estão se organizando”. O monopólio da violência também foi esgarçado no Brasil, e a gente percebia isso, mas não podia imaginar que o cenário seria esse, e tão rapidamente. Os quatro decretos [sobre porte de armas] do Bolsonaro são a fórmula para armar a sociedade dele, a galera dele. Não é só a quantidade de arma e de munição, é o tipo de arma, a retirada dos limites que existiam em relação a trajeto, deslocamento, tempo. O que ele está fazendo é dar porte de armas para as pessoas na rua. Isso sem falar das pessoas que já poderiam ter armas, como policiais, que na verdade são o grosso da milícia dele. Não há dúvida de que se trata de um projeto de desestabilização da democracia, e que está caminhando a passos rápidos e largos.
Seu próximo filme também conecta diferentes países da América Latina, desta vez a partir das histórias de quatro mulheres. O que motiva seu interesse pela região?
Há alguns anos me entendi como mulher latino-americana. E ao me entender assim, foi como se tivesse ganhado muitas irmãs, muitas primas, uma capacidade de me sentir em casa em outros lugares, de entender, de escutar e de me sentir mais acolhida. O Brasil está muito de costas para a América Latina, pelo idioma e por uma questão cultural também: a gente sai do Brasil e vai para os Estados Unidos, para a Europa, no máximo para Buenos Aires. Mas para mim é uma riqueza ser uma mulher latino-americana. No momento em que percebi isso dentro de mim, tive um clique muito clique. Inclusive em relação ao cinema. Me senti irmanada como cineasta e como documentarista, o que para mim é muito bacana.
Que conselho você daria para as mulheres que querem trabalhar no cinema?
Há quem ainda tente fazer cinema dentro de uma hierarquia rígida, e dentro dessa rigidez há muito machismo, violência, abusos de diferentes formas. É fundamental que a gente crie e traga nosso feminino para esses espaços, e percebo que também os homens querem, cada vez mais, formas de produção inclusivas e afetuosas. As estruturas ficam mais saudáveis com mulheres no poder e o cinema pode e quer ser esse espaço saudável. Então meu conselho seria para jamais deixarmos de fazer do nosso jeito. Esse processo patriarcal, velho e careta está caindo. E como toda estrutura que está caindo, eles estão ali meio desesperados tentando manter seu poderzinho. Mas estão caindo, estão sendo cada vez menos tolerados. A gente nunca esteve tão sob o jugo do fascismo como hoje, mas, ao mesmo tempo, a gente nunca teve tanta força feminina e feminista, e as questões identitárias nunca estiveram tão em voga. Quando comecei como assistente de produção no Rio de Janeiro, vigorava a escola da brutalidade, da grosseria, e como mulher você tinha de ser pior ainda, gritar mais alto. Sabemos que não é preciso ser assim. Podemos fazer o trabalho na delicadeza, no trato e na gentileza.
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema
Foto do topo: Paula Carrubba