Parece apropriado que o júri do Festival do Rio tenha decidido premiar todas as três atrizes de Malu, filme que estreia nesta quinta-feira (31) nos cinemas. Celebrar apenas a protagonista, Yara de Novaes, ou escolher uma entre as duas coadjuvantes, Carol Duarte e Juliana Carneiro da Cunha, seria como individualizar um trabalho claramente coletivo, e ignorar que é na relação de uma atriz com a outra que o longa encontra sua grande força.
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Também parece apropriado que, antes de chegar ao Brasil, Malu tenha feito sua estreia mundial no Festival de Sundance, nos Estados Unidos. Por um lado, o evento já tinha selecionado Benzinho (2018), parceria anterior das produtoras Tatiana Leite, da Bubbles Project, e Sabrina Garcia, da TvZero. Por outro, o cinema independente americano é uma das inspirações do diretor e roteirista Pedro Freire, que em Malu, seu primeiro longa-metragem, buscou inspiração nos filmes de John Cassavettes (1929-1989) e Gena Rowlands (1930-2024).
A outra inspiração de Freire foi sua mãe, Malu Rocha (1947-2013), que fugiu da família conservadora para tornar-se uma das grandes atrizes do teatro brasileiro dos anos 1970. O filme está ambientado duas décadas depois, quando Malu tem 50 anos, está desempregada e morando em uma casa precária no Rio de Janeiro (RJ). Os tempos áureos no palco ficaram no passado, por razões que o filme não revela categoricamente, mas sugere o tempo todo, entre eles a brutalidade da ditadura militar, o machismo que limita oportunidades às atrizes, questões de saúde mental e a relação de Malu com a mãe, dona Lili, que carrega seus próprios traumas.
Entre as duas está Joana, a filha de Malu, personagem ficcional que combina a figura do diretor à de sua irmã mais velha, a atriz e diretora Isadora Ferrite. Quando o filme começa, Joana acaba de voltar ao Brasil após uma temporada estudando teatro na França. Rapidamente, a jovem percebe que a mãe precisa de ajuda. E também rapidamente, começa a bater de frente com ela.
Toda a narrativa se constrói a partir da conflituosa relação entre essas mulheres, que num piscar de olhos passam da violência ao carinho, do grito ao abraço, da rivalidade à cumplicidade. Num momento, Malu e dona Lili estão se agredindo fisicamente; no outro, estão preocupadas em saber se a outra se machucou.
São mulheres multifacetadas e que desafiam classificações fáceis, algo ainda raro no cinema. Nos últimos anos, muitos filmes responderam à demanda (e cobrança) por melhor representação feminina nas telas com personagens inspiradoras, admiráveis, irretocáveis – as chamadas “mulheres fortes”, um termo frequentemente usado em tom de elogio, mas que não necessariamente se traduz em maior complexidade ou humanidade.
Malu, ao contrário, transborda as duas coisas. É certamente uma mulher forte e admirável, mas seu comportamento está longe de ser irrepreensível, o que também pode ser dito sobre dona Lili. Na dança proposta pelo filme, o espectador tende a não assumir lados, compreendendo e repreendendo as personagens na mesma medida, o que é tanto qualidade do roteiro (premiado no Festival do Rio) quanto das atrizes.
Juliana foi a primeira a se associar ao projeto, já que Freire, com quem tinha trabalhado em um curta, escreveu o papel de dona Lili para ela. Carol veio depois, quando o diretor a viu em A Vida Invisível (2019) e pensou nela para interpretar Joana. Já a escalação de Yara se deu poucos meses antes do início das filmagens, quando questões de saúde impediram a participação da atriz originalmente escolhida (o cineasta não revela qual).
Como Malu Rocha, Yara construiu seus 40 anos de carreira principalmente no teatro, onde atua e dirige. Em agosto ela foi indicada ao Prêmio Shell pela direção de dois espetáculos (Lady Tempestade, com Andrea Beltrão, e Prima Facie, com Débora Falabella) e, agora, protagoniza seu primeiro longa-metragem.
O elenco se completa com Átila Bee, intérprete de Tibira, artista que aluga um quarto na casa de Malu. Os atores passaram três semanas num processo de ensaio que foi compartilhado com o restante da equipe antes de chegarem ao set. O diretor de fotografia, Mauro Pinheiro, compareceu à maioria dos ensaios, enquanto os demais profissionais assistiram a uma edição de duas horas e meia do material filmado por Freire com o celular.
O Mulher no Cinema entrevistou Yara, Juliana e Carol um dia depois da premiação no Festival do Rio, em uma conversa conjunta via Zoom. Leia os principais trechos da entrevista:
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Este é um daqueles filmes em que é difícil pensar em cada atuação individualmente, já que vocês estão muito ligadas, sempre puxando uma à outra, às vezes até literalmente. Como criaram essa relação e essa unidade que se vê na tela?
Yara de Novaes: Tivemos uma preparação de três semanas com o Pedro, que é excelente diretor de atores. Primeiro ficamos mais livres, trabalhando improvisos ligados às cenas do filme, sempre conduzidas por prerrogativas das personagens e das circunstâncias dramáticas. E aí, só depois, organizamos essas cenas. Foi um período super importante para que a gente tivesse não só confiança [uma na outra], mas também para que se produzisse uma grande amizade. Em uma obra como essa, que lida tanto com lugares tão extremos, é preciso que haja liberdade entre os parceiros de cena. Quanto mais liberdade, mais possibilidade de ir fundo. Certamente teria sido mais difícil se a Juju [como ela chama Juliana Carneiro da Cunha] ou a Carol fossem atrizes que não compreendessem a desmesura e o excesso da Malu, ou se eu não compreendesse o excesso da dona Lili e por aí vai. Essa relação de confiança e liberdade foi importantíssima pra que a gente pudesse se derramar nas personagens e essas personagens pudessem se derramar umas sobre as outras.
Juliana Carneiro da Cunha: Moro na França há 40 anos, e é uma sensação estranha voltar para o seu país e a sua cidade. Leva um tempo para [a pessoa] chegar. E tenho a lembrança de ter sido recebida imediatamente com tanto amor, com tanta admiração, com tanta aceitação, com tanto humor. Acho que o humor que existiu entre nos três foi muito importante, porque a gente já começou a ter essa cumplicidade nas coisas engraçadas, nos detalhes. A gente ia indo, ia errando, ia teatralizando, ia dando risada de nós mesmas e uma da outra. Ninguém julgava ninguém, ninguém dava nota para ninguém. A gente estava numa brincadeira muito grande, desde o começo, graças ao Pedro. Mas éramos profissionais também. Era uma brincadeira muito profissional.
Yara: Sabe uma outra coisa da qual estou me lembrando, Luísa? A Juju nunca ia embora pra casa. Nesses ensaios, havia cenas nas quais a Juju não estava, então ela poderia não estar ali. Mas ela nunca ia embora. Nunca. Ela ficava às vezes o ensaio inteiro sem fazer nada.
Juliana: Como sem fazer nada? Recebendo vocês!
Yara: Não, é…
Juliana: Sem atuar.
Yara: Exatamente. Para você, ser espectadora da cena é estar em ação. É fazer alguma coisa. E a mesma coisa acontecia com a Carol. Só não acontecia comigo porque eu estava na doideira o tempo todo. Mas elas ficavam o tempo todo ligadas na cena, como se faz em teatro, né? A gente fica ali, ligado. Isto é muito bonito porque a gente sabia que era uma coisa nossa. Não tinha a cena da Yara, a cena da Carol, a cena da Ju, a cena do Átila. Era a nossa cena. Era o nosso filme. Era um todo.
Juliana: E éramos muito honestas, assim como o Pedro, o que é muito bom. Não havia pudor em dizer nada, porque não estávamos criticando o outro, estávamos trabalhando juntos e contentes de ver a coisa avançar. Foi o tempo todo [um grupo] foi muito unido.
Estes ensaios já foram feitos na casa que serve de locação, e que é tão importante no filme?
Carol Duarte: Não, foram em uma casa da produtora. O Pedro chamou artistas de teatro e falou assim: “Aqui é o jardim”. E era um lugarzinho mais aberto, que dava para ver o céu, mas não tinha um jardim. Aí falou: “Aqui é a casa da Malu, aqui é a casa em que a dona Lili vai ficar”. E acabou. Foi falar isso pra que as coisas se construíssem. A Juliana fechadinha num banheirinho…vocês lembram? [todas riem] Quer dizer, é muito louco ver o início de um filme que vai para Sundance, que ganha prêmio no Festival do Rio, ser feito artesanalmente. A casa é muito principal, a casa é um personagem, e a gente não tinha a casa. Quando a gente chega [na locação], vai explorar aquilo tudo. Mas de início não tinha.
Juliana: Era um lugar que não era nada, mas que para a gente já era. E o Pedro ficava filmando. Ele filmou [os ensaios] com o celular, então a gente tinha o olhar da câmera. A gente não estava fazendo para um público imaginário, estava fazendo para ele filmar. Isso deixou a gente num estado…a gente já estava fazendo o filme ali.
Yara: Era uma coisa muito rudimentar, mas ao mesmo tempo a gente estava muito tomado.
Carol: É, as relações já estavam. Quando a gente foi para o set, foi ligar a câmera.
Yara: Não, teve também [o impacto de ir para] a casa [que de fato serviu de locação]. Foi foda chegar ali e ver aquele acúmulo, o trabalho da direção de arte. Aumentou para a gente, né?
Carol: Aumentou, claro que aumentou. Mas minha sensação é que as personagens nasceram naquela sala que não tinha nada. E aí na casa elas foram florescendo.
Yara: É verdade.
Queria saber um pouco sobre o seu processo, Yara, já que a personagem é real e conhecida. Você tinha referência da Malu? Buscou assistir a entrevistas e trabalhos dela para reproduzir seus trejeitos ou a ideia era construir uma Malu totalmente independente da Malu real?
Yara: Eu a conhecia muito pouco, de ver em uma novela ou outra. Infelizmente não cheguei a a assistí-la no teatro, mas sabia da importância dela. Inicialmente não, não vi nada, apenas fotos. Há fotos muito lindas dela tiradas pela Thereza Eugênia, e eu ficava parada nessas fotos, vendo, imaginando…ficava tentando criar uma história para aquele momento que foi registrado, aquele flash. Depois o Pedro liberou o vídeo de uma entrevista, no qual ela estava na casa dela contando histórias. Algumas falas desse vídeo foram para o roteiro, aliás. E ali, naquele momento, tive talvez uma revelação de quem era a Malu. Foi muito importante. Tentei não mimetizar, porque isso era um pedido do Pedro, não fazer “essa Malu”. Certamente eu iria ficar muito engessada, querendo fazer coisas que meu corpo talvez não desse tanto conta, ou para as quais talvez não tivéssemos tempo. No entanto, sei que muitas coisas que vi ali migraram para personagem. Acho que, sobretudo, um temperamento de falar de coisas sem necessariamente ficar derrubada com elas. De a Malu ser muito mais solar do que tudo. E de ser uma pessoa que age. Para ela não é um lugar de falar: “Ai, não estou aguentando, minha mãe é isso, aquilo”. Não, ela vai lá, pega a mala da mãe e bota para fora. Foi muito importante [ver] esse lugar ativo da Malu. Por mais que se fale isso no roteiro, é importante ver a pessoa saltando sobre as coisas. A Malu é uma pessoa que vai saltando sobre as coisas. E se ela está realmente com um problema, cria uma narrativa xis para aquilo ser uma coisa maravilhosa. Aquela casa está ferrada, mas ela diz: “Não, aqui vai ser um centro cultural, as pessoas vão ter isso e aquilo”. Esse lugar da Malu, que pude ver ela fazendo, foi importante. Foi mais importante do que ler no roteiro, apesar de o roteiro já conter tudo isso.
As personagens desse filme dizem e fazem coisas violentas, mas também têm momentos de grande carinho uma pela outra. Elas não são uma coisa só, o que é algo raro no que diz respeito às personagens femininas no cinema, e que destoam deste momento do mundo, de forma geral, já que todas as discussões sobre qualquer assunto são muito polarizadas, muito isso ou aquilo. Como foi para vocês lidar com essa humanidade e complexidade das personagens?
Yara: Concordo plenamente com você sobre a dramaturgia que a gente tem visto hoje. E acho que a dramaturgia do Pedro é forte exatamente por isso.
Juliana: Acho que a gente [o ator] está no presente. Está na hora de ter um araque de fúria porque a Malu foi completamente desrespeitosa com o padre que é meu amigo. Depois ela leva um chute na canela. Depois fica preocupada. Quer dizer, é assim. É assim que está escrito, e é uma delícia ter essa versatilidade. Você não pode ficar cristalizada no “eu sou boazinha”. É um estado, é humano, foi escrito assim. Isto que é maravilhoso: a gente está simplesmente se deixando viver o roteiro. E tem que ser assim. É um absurdo total imaginar que uma pessoa só é branca, só é preta, só é rosa ou só é azul. Esta é a nossa realidade: somos feitos de um tecido diverso.
Carol: Acho que a grande sacada do roteiro do Pedro é essa. A grande identificação do público com esses personagens é que eles não estão chapados. A Malu ama muito a dona Lili, ama a Joana, e ao mesmo tempo é agressiva, ataca a Dona Lili e fala coisas horríveis para a Joana. Acho que as relações humanas estão mais aí do que nessas figuras heroicas, sem humanidade, sem contradição. Malu não deixa de ser uma grande mulher porque fez aquilo tudo, e mesmo Dona Lili ou Joana. É na relação que as coisas se complicam. E isso é verdade. Por mais que a gente não queira admitir em tempos de cancelamento, é verdade que a gente sente tudo junto. Talvez a gente não queira lidar com isso, tente apagar. Mas acho que é aí que o roteiro acerta. É aí que a direção acerta. Me parece que a identificação está aí. Uma pessoa [que assistiu ao filme] me falou uma coisa maravilhosa, e difícil de verbalizar: “Quem é que nunca quis chutar um pouquinho a canela da própria mãe?” [risos]. Isto tudo é tão difícil de admitir, mas é tão verdade. Taí a terapia e os terapeutas que podem falar melhor do que a gente, numa sala em segredo, o que sentimos.
Yara: A gente é muito mais fundo do que parece.
Carol: E o Pedro não tem medo [de colocar isso] no roteiro.
Yara: Não, o Pedro é muito corajoso.
Juliana: E também tem esse não dito nas famílias, né? Aquilo que não se ousa dizer. Tem muito não dito que vai se acumulando e de repente a pessoa explode. Não é que ela quer explodir, mas explode.
Yara: Às vezes faço um exercício com os atores nos quais eles fazem um memorial sócio-politico-afetivo que vai desde os bisavós até eles. E acontece uma coisa muito louca. As pessoas começam a descobrir coisas que não eram ditas. Descobrem que o tio era gay e se matou, descobrem que o tio matou a tia. Estou falando de coisas muitos violentas, que já chegaram até mim vindas de atores, só para a gente entender que essa violência da Malu existe. É claro que existe. O que o Pedro faz é colocar, é assumir. É dizer que existe, e que nem por isso a Malu é uma pessoa ruim, ou a dona Lili é uma pessoa ruim.
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema