Os filmes da cineasta francesa Julia Ducournau são daqueles que permanecem com você por horas, até dias, goste-se ou não deles. Seu primeiro longa-metragem, Grave (2016) – também conhecido pelo título em inglês, Raw -, dividiu o público por seu conteúdo gráfico e controverso, com relatos de pessoas que passaram mal e desmaiaram durante a exibição no Festival de Toronto. Não é diferente em seu trabalho mais recente, Titane (2021), disponível para streaming na MUBI. Aliás, a diretora potencializa aquilo que a tornou conhecida, realizando um filme ainda mais violento e incômodo.
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Ducournau tem filmografia enxuta: além de Titane e Grave, dirigiu o curta Junior (2011), também disponível na MUBI e o primeiro de três trabalhos com a atriz Garance Marillier; e dois episódios da série Servant, da Apple TV+. Apesar disso, ela já figura entre os cineastas mais interessantes do momento – e com Titane, tornou-se a segunda mulher a vencer a Palma de Ouro em 74 edições do Festival de Cannes, depois de Jane Campion.
Titane acompanha Alexia (Agathe Rousselle), jovem dançarina que, após uma série de assassinatos brutais na região onde vive, cruza o caminho de Vincent Legrand (Vincent Lindon), capitão do corpo de bombeiros cujo filho, Adrien, desapareceu dez anos antes. É o tipo de trama sobre a qual convém revelar o mínimo possível, e que lembra à de Crash – Estranhos Prazeres (1996), uma das produções mais aclamadas e polêmicas de David Cronenberg e vencedora do Prêmio Especial do Júri em Cannes. Ambas as obras causaram reações inflamadas pelo modo como retrataram o desejo, e em ambas as protagonistas nutrem um fascínio por automóveis.
Visceral e frenético, o longa de Ducournau está repleto de contrastes. A violência é, em certo momento, acompanhada de um humor sombrio, principalmente quando uma noite sai do controle e acaba em matança. Alexia ostenta uma cicatriz em espiral na cabeça devido a um acidente de carro na infância, e inicialmente se mostra taciturna e fria. No entanto, ao longo da narrativa ela perde seu caráter ameaçador e se mostra deslocada, isolada e vulnerável. Da mesma forma, o quartel de bombeiros transpira virilidade e homoerotismo reprimido, e Vincent, avatar do homem másculo, carrega suas próprias fragilidades.
Os corpos dos dois protagonistas são explorados de diferentes formas. Alexia dança sensualmente no capô de um carro em uma exposição automobilística para a excitação dos homens que a assistem, porém quem parece mais se divertir é ela mesma. Seu corpo e o de Vincent servem ao desejo, mas também a outro propósito: reagir com dor, lacerações e hematomas às transformações que atravessam, cada um à sua maneira. Aí residem os momentos mais brutais e desconfortáveis de Titane, sobretudo quando Alexia está em cena; seu corpo é o mais fisicamente afetado pela força que empurra o filme até uma resolução dramática e intensa.
A circunstância do encontro entre a protagonista e Vincent pode parecer duvidosa, mas é eficiente para elevar o suspense e a tensão que duram até o último segundo do filme. O elenco também colabora para isso. Estreante em longas-metragens, Rousselle incorpora perfeitamente a mulher de olhar rígido e de poucas palavras, enquanto Lindon carrega o desalento de um homem que anseia pelo senso de controle sobre sua própria vida em meio a ausência do filho e dos desafios do envelhecimento.
Assim como Grave, Titane não oferece respostas óbvias para suas questões, temas e metáforas, permitindo que o público preencha os espaços deixados pela cineasta. Some-se isso à brutalidade das imagens e o resultado é uma obra que requer certa disposição do espectador. Quando isso ocorre, o filme retribui com originalidade e ousadia, colocando óleo no motor da representação cinematográfica de questões de gênero, identidade, sexualidade, trauma e perda.
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“Titane”
[França/Bélgica, 2021]
Direção: Julia Ducournau
Elenco: Agathe Rousselle, Vincent Lindon, Garance Marillier.
Duração: 108 minutos
Tainara Alexandre é redatora e bacharel em Estudos Literários pela UFPR
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