Em 2015, a ficção franco-marroquina Muito Amadas provocou reação violenta ao colocar quatro prostitutas como protagonistas. Dirigido por Nabil Ayouch, o filme foi banido pelo governo do Marrocos e duramente criticado por autoridades religiosas, enquanto a atriz Loubna Abidar foi vítima de agressão física, recebeu ameaças de morte e teve de deixar o país.
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Os ataques a Muito Amadas estão profundamente ligados ao novo trabalho de Ayouch, Primavera em Casablanca, escrito em parceria com sua mulher, a roteirista e atriz Maryam Touzani. Exibido no Festival Varilux de Cinema Francês e com estreia marcada para 12 de julho, o filme narra a trajetória de cinco cidadãos marroquinos que vivem diferentes realidades, mas têm em comum a constante busca pela liberdade.
Uma destas personagens é Salima, mulher de espírito livre que enfrenta a pressão do marido e da sociedade para que se conforme aos padrões impostos às marroquinas na forma de se comportar e de se vestir. Touzani não tinha experiência como atriz – além de roteirista, ela é jornalista e diretora dos curtas Quand ils dorment (2012) e Aya va à la plage (2015) -, mas decidiu assumir o papel motivada pelas similaridades entre a ficção e suas próprias experiências. “Salima enfrenta as mesmas dificuldades que eu para existir como ser humano completo no espaço público”, afirmou, em entrevista ao Mulher no Cinema durante visita a São Paulo. “Sentia que podia dar voz ao que vivo no meu cotidiano.”
Prestes a estrear na direção de longa-metragem, Touzani considera que a construção de personagens femininas bem desenvolvidas é crucial em qualquer cinematografia, mas especialmente no Marrocos, onde o alto índice de analfabetismo dá maior peso ao que se transmite por imagens. “O exemplo é muito importante”, opinou. “Acho que as mulheres podem se inspirar ao ver outras mulheres defendendo seus direitos.”
Leia os principais trechos da entrevista:
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Você disse em entrevistas que é muito parecida com sua personagem. Em que sentido?
Enfrentamos as mesmas dificuldades para existir como ser humano completo no espaço público. No Marrocos, é fácil ser quem você é a portas fechadas, mas do lado de fora é outra história. É uma sociedade muito patriarcal que está se tornando muito dura com as mulheres, porque a religião está se tornando muito opressiva, o que não acontecia há alguns anos.
O que mudou, por exemplo?
Vestir-se do jeito que você quer já não é algo tão simples. Usar shorts porque está calor, por exemplo – é preciso pensar dez vezes antes de fazê-lo. Os fundamentalistas invadiram a sociedade e vejo que mulheres da minha idade – também as mais velhas e mais novas, mas convivo mais com as da minha idade – têm se submetido por medo. Às vezes, é muito difícil resistir. Mas a resistência não vem sempre por grandes atos, às vezes é apenas usar a roupa que você quer. Porque impôr um dress code também é impôr ideologia. Também é impedir que você seja quem quer ser, que você se apresente da forma que quer. Você passa a existir pelo prisma deles. Como mulher, passo por essas coisas, e me senti próxima à Selima. Também por isso quis assumir esse papel, e não apenas escrever. Sentia que podia dar voz ao que vivo no meu cotidiano.
O movimento feminista ganhou força em muitos países, e durante a Primavera Árabe houve certa esperança quanto ao avanço dos direitos das mulheres na região. No entanto, as coisas estão piorando no Marrocos?
Houve alguns avanços, mas não ligados à Primavera Árabe, que não era realmente sobre as mulheres. Mas sim, houve avanço no que diz respeito aos direitos legais das mulheres no Marrocos, porém todos muito pequenos. E o problema é que a lei pode mudar, mas se a mentalidade não muda, é como se nada tivesse acontecido. E a mentalidade não está mudando, o modo como as mulheres são vistas não está mudando. Além disso, o fundamentalismo tem tomado conta do país, e nós não sabíamos [desta força] há alguns anos. Isso pesa muito. Estamos regredindo em um ritmo assustador.
E o que pode ser feito?
Acho importante que as mulheres reajam. Se uma cede, outra cede e outra cede, acabou, perdemos a batalha. Mas se cada uma resistir, do seu jeito, em um ato pequeno, da forma que conseguir, acho que pode haver grande resistência. As mulheres precisam saber que não estão sozinhas. Hoje, há um sentimento de solidão. Mas se elas sentirem que há muitas mulheres passando pela mesma coisa, podem se unir e realmente fazer a diferença. E a mudança real no Marrocos só virá pelas mulheres. Elas estão no coração da transmissão, e são também aquelas que vão educar os homens do futuro.
Nesse sentido, criar personagens femininas bem desenvolvidas no cinema é importante? Na sua opinião, aquilo que se vê na tela pode ter algum tipo de impacto na sociedade marroquina?
Definitivamente tem impacto, especialmente em países como o Marrocos, onde 40% da população é analfabeta [o censo de 2014 coloca a porcentagem em 32%, contra 42% registrados uma década antes]. Então muita coisa pode ser passada pela imagem. Você precisa construir modelos que empoderem as mulheres, que possam ir contra a atual direção da sociedade. O exemplo é importante: acho que as mulheres podem se inspirar ao ver outras mulheres defendendo seus direitos. Para mim, escrever personagens assim é crucial. Também dirigi dois curtas e vou dirigir meu primeiro longa em outubro, e em todos esses filmes as protagonistas são mulheres. Não é que eu queira excluir os homens. Mas há coisas que quero dizer como mulher, e só posso fazer isso com personagens mulheres.
Conte um pouco sobre como é ser mulher no cinema marroquino.
Como no resto do mundo, não há muitas diretoras e roteiristas. Mas ser atriz no Marrocos não é a mesma coisa que ser atriz em outros lugares. O público pode ser muito duro com você. Por exemplo, em Muito Amadas a atriz interpretava uma prostituta e por isso foi espancada e teve de deixar o país. As pessoas não conseguiam diferenciar o personagem de quem ela era na vida real. E, claro, ela poderia ser o que quiser e ninguém teria nada a ver com isso. Mas é muito difícil, e por isso a maioria das atrizes tem medo de se arriscar. Muitas trabalham na televisão e precisam manter uma imagem aceitável o bastante para que possam seguir trabalhando. É muito complicado.
Primavera em Casablanca é essencialmente sobre cinco personagens que buscam a liberdade. O filme é uma resposta à reação provocada por Muito Amadas no Marrocos?
Sem dúvida. Este filme está totalmente conectado a Muito Amadas. Depois do que aconteceu, da loucura e da violência, Nabil poderia ter optado por ir embora do Marrocos ou deixar de fazer filmes por lá. Mas ele ama muito o país e [o episódio] só fez com que ele tivesse maior clareza sobre quais histórias queria contar. E então surgiu Primavera em Casablanca.
O que você pode contar sobre seu primeiro longa na direção?
É sobre uma mulher solteira que está grávida de oito meses. No Marrocos, é ilegal ter filhos fora do casamento, portanto é muito difícil uma mãe solteira ter a criança e permanecer com ela. No filme, não sabemos de onde ela vem nem o que aconteceu em sua vida, apenas que está grávida e quer entregar a criança após o parto. Ela acaba sendo acolhida por uma viúva que vive com a filha de dez anos, e que trabalha muito duro para sobreviver. O filme é sobre o encontro dessas duas mulheres e sobre como elas vão mudar a vida uma da outra, e também a vida da garota. É uma história feminina, mas, no fim das contas, acho que não existem histórias femininas ou masculinas. Existem histórias humanas, e isso transcende tudo.
Que conselho você daria para as mulheres que querem trabalhar no cinema?
Façam o que vocês realmente querem fazer e digam o que realmente querem dizer. Nunca pensem sobre quais serão as consequências: se vem do coração, ponham para fora. Deixem que o seu desejo venha para fora – seu desejo de contar uma história ou de defender alguma coisa. Ponham para fora, deem voz a isso. E não deixem que ninguém diga que não há espaço, porque se vocês querem expressar alguma coisa, ela tem direito de existir.
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Veja o trailer de Primavera em Casablanca:
Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema