Uma mulher com uma câmera

Para realizar seu curta-metragem mais recente, A Ordem Reina, a diretora Fernanda Pessoa percorreu sete países que passaram por experiências anticapitalistas ou revolucionárias no século passado: Burkina Faso, China, Cuba, Guiné-Bissau, Rússia, Sérvia e Vietnã. Em todos eles, registrou imagens em uma câmera Super 8mm Nizo Braun, fabricada nos anos 1970, e utilizando quinze rolos de película Super 8mm reversível TRI-X preto e branco. O curta faz sua estreia mundial na competição do Festival É Tudo Verdade e pode ser visto online e gratuitamente na Itaú Cultural Play até 10 de abril. No depoimento abaixo, Fernanda fala sobre a experiência de fazer o filme e trabalhar neste formato:

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No exato momento em que começo a escrever essas linhas, quinze rolos de película Super 8mm, fruto de dois meses de filmagem em cinco países diferentes, atravessam o continente americano de São Paulo a Los Angeles. Eu não as acompanho, como fiz quase diariamente durante os últimos meses. Elas voam levadas por uma alma boa que não se importou com o trabalho que essa carga pequena, porém sensível, daria durante a viagem. Até que suas imagens sejam finalmente digitalizadas, transformando o material físico em digital e o que é único em reprodução, não durmo tranquila. Se algo acontece com esses pequenos objetos até lá, tudo está perdido: não existe backup. Recuo no tempo para esclarecer o peso desses quinze rolos.

No começo de 2019, recebi a notícia de que havia sido selecionada no edital de videoarte da Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ) para realizar um projeto ambicioso, em que viajaria por cinco países em três continentes diferentes. Minhas companhias seriam apenas minha câmera Super 8mm Nizo Braun, fabricada nos anos 1970, e quinze rolos de película Super 8mm reversível TRI-X preto e branco. O Super 8mm é um formato analógico de realizar filmes, menos profissional que o 35mm e o 16mm, e um dos responsáveis pela democratização da captação de imagens em movimento e do registro de filmes familiares antes do VHS. Se antes era democrático, com o advento e expansão do digital a partir dos anos 2000, o Super 8mm se tornou obsoleto e possui um valor quase fetichista – não à toa projetores em desuso funcionam como objeto de decoração em bares hipsters.

Quinze rolos de película correspondem a três rolos por país, ou nove minutos. Cada rolo de Super 8mm equivale a três minutos se filmado na velocidade convencional desse suporte, 18 quadros por segundo – outra diferença com os formatos profissionais de película (que trabalham a 24 quadros por segundo) e com o digital (que trabalha a 24 ou 30 quadros). A velocidade de quadros por segundo é uma convenção estabelecida no final dos anos 1920. Após diversos testes e com a chegada do cinema sonoro, constataram que, a 24 quadros por segundo, o olho humano percebe o movimento dos frames um após o outro como um movimento constante, em velocidade normal, ou seja, simulando a vida real. O Super 8mm, por sua vez, não funciona em velocidade “realista”.

Nove minutos por país. Essa restrição fazia parte da proposta conceitual: eu não seria uma turista comum registrando exaustivamente esses lugares, refazendo várias vezes a mesma imagem com uma câmera digital ou do próprio celular, criando um arquivo de centenas de imagens repetidas em lugares clichês, que provavelmente jamais passariam por uma seleção posterior. Assim que escrevo isso, lembro de Susan Sontag afirmando em “Sobre a fotografia” que todo fotógrafo é um “superturista”, tentando “colonizar experiências novas ou descobrir maneiras novas de olhar para temas conhecidos – lutar contra o tédio”. Se todo fotógrafo é um turista, seria a minha tentativa de não o ser ingênua? Quando Sontag escreveu seu livro, em 1977, o Super 8mm ainda era a promessa da democratização da produção das imagens em movimento. Nos 16 anos que se passaram desde a morte da escritora, penso que vivemos o período mais intenso de mudanças em relação à produção e consumo de imagens. Elas agora nos chegam como um fluxo ininterrupto e ilimitado em todos os momentos do dia, principalmente na internet. Se Sontag visse a forma como criamos e nos relacionamos com imagens hoje, ela manteria sua afirmação categórica ou precisaria reformular parâmetros e definições?

Imagem do filme “A Ordem Reina”, dirigido por Fernanda Pessoa

Essa viagem daria continuidade a um projeto que comecei em 2013, quando visitei Berlim como turista, justamente. Fiquei impressionada com um certo discurso elogioso da vitória do capitalismo após a queda do muro de Berlim como um souvenir. A partir daí, comecei a usar o recurso do Super 8mm em uma tentativa de burlar distâncias temporais e construir um arquivo alternativo de imagens de países que passaram por algum tipo de experiência socialista no século passado. Dessa forma, buscava acessar um momento histórico distante de mim tanto pelo tempo, quanto geograficamente. Me via como uma viajante no espaço-tempo, cujo instrumento de viagem era apenas uma câmera velha dos anos 1970. E assim, de 2015 a 2019, foram sete países, totalizando não mais que uma hora e dez minutos de material.

A ideia na escolha das filmagens também era criar certa confusão temporal, dando ocasionalmente indícios de que as imagens foram na realidade feitas no presente. Nessas imagens que à principio parecem arquivos, em momentos específicos aparecem celulares, acessórios ou roupas contemporâneas, um banner político com o ano corrente. Dou pistas para que o espectador reflita sobre a sua origem temporal, criando uma relação entre esse passado não tão distante e o agora. Penso também no momento em que essas imagens de fato se tornarão passado, e se um pesquisador do futuro por ventura quiser tentar definir quando esses rolos de Super 8mm foram filmados, num primeiro momento tentará data-los pelo suporte da filmagem, deduzindo serem eles dos anos 1970 ou 1980, mas numa análise mais apurada perceberá os elementos que revelam se tratar de imagens da finda década de 2010.

Em 2015, filmei Havana no dia em que o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, anunciava a reabertura da embaixada norte-americana em Cuba. Enquanto no mundo alguns celebravam e outros se preocupavam com as mudanças que isso traria ao país, os cubanos seguiam seus dias normalmente no Malecón e nas ruas de Havana, sem demonstrar qualquer alteração visível. Em 2018, procurei pela arquitetura brutalista socialista futurista iugoslava em Belgrado, Sérvia, e encontrei um tipo de arquitetura completamente diferente da soviética e com um forte senso comunitário, principalmente no bairro planejado de Nova Belgrado, dividido por quadras (como Brasília) compostas por prédios distintos entre si, quadras de futebol, parquinhos e cafés.

Parecia um projeto para toda uma vida ou para mais de um cinegrafista, um pouco como Sans Soleil de Chris Marker, mas os eventos políticos recentes, notadamente a eleição de 2018 no Brasil, me urgiram a acelerá-lo. Não apenas o novo governo acenava para um esfacelamento do patrocínio público à cultura, o que poderia adiar por tempo indeterminado a possibilidade de realizar um projeto desse tipo, mas também sentia uma necessidade de tentar entender como havíamos chegado ao ponto de eleger um governo de extrema direita. Intuía que esse fenômeno estava de alguma forma relacionado à crença de que os projetos socialistas do século 20 haviam falhado, aparentemente não deixando outra alternativa ao capitalismo moribundo de nossos tempos. O edital da FUNDAJ era uma oportunidade única de condensar essas filmagens e realizar meu filme, mas também me obrigava, por suas condições orçamentárias e de cronograma, a viajar por Rússia, China, Vietnã, Burkina Faso e Guiné-Bissau em apenas dois meses.

Fernanda Pessoa filma “A Ordem Reina” no Vietnã

Muitas pessoas (na verdade, minha mãe) se preocuparam com o aspecto “uma mulher jovem viajando sozinha por todos esses países supostamente exóticos, distantes, autoritários e/ou perigosos”. Sobre isso, apenas tenho a dizer que ser mulher não me impediu de fazer nada nesses países e que na maioria deles me senti bastante segura caminhando com minha câmera em zonas históricas e oficiais, mas também fora das rotas turísticas comuns.

Eu tinha preocupações que me pareciam mais importantes. Primeiro, entender onde conseguiria quinze rolos de película Super 8mm, e onde iria posteriormente revela-las e digitaliza-las em alta qualidade. No Brasil há poucas possibilidades hoje para revelar películas cinematográficas. Muitos laboratórios fecharam nos últimos tempos, mas há uma onda crescente de jovens interessados em revelar suas próprias películas – eu mesma já havia revelado um Super 8mm como teste, que acabou manchado. Para esse trabalho, me parecia necessário um laboratório profissional, com capacidade para processar uma quantidade grande de películas da forma mais segura possível e também de digitalizar esse material em formatos profissionais de finalização de vídeo.

Parece contraditório filmar em Super 8mm e depois digitalizar o material para 2k, sendo que o suporte não possui resolução suficiente para isso, mas o processo faz sentido para a exibição e distribuição. O Super 8mm é um material muito sensível, que não aguenta ser projetado em loop, no caso de uma instalação, e que tampouco é aceito na maioria dos festivais, pois não possuem mais projetores analógicos em suas salas. Dessa forma, o blow up (aumento de tamanho de um suporte a outro) se justifica e se torna linguagem também. Assim como no filme que leva esse nome, de Michelangelo Antonioni, o que é detalhe e minúsculo na película se tornará gigante no formato final. Decidi optar por um pacote com uma companhia de Los Angeles (onde se não na meca do cinema comercial encontraria o que eu precisava?) e, então, os quinze rolos fizeram sua primeira viagem de
avião, no sentido oposto ao que fazem nesse exato momento, acompanhados por um amigo cineasta que vinha dos Estados Unidos.

Surge então a segunda preocupação. O raio X é um dos maiores inimigos da película, seja fotográfica ou cinematográfica. Ao viajar de avião, deve-se sempre levar a película na mala de mão e tentar ao máximo que o filme passe por uma inspeção manual ao invés de passar pela máquina de raios X, o que implica principalmente em ter que chegar muito antes ao aeroporto, ser extremamente simpática com os seguranças, que olham as películas com curiosidade ou indiferença, e ter paciência e cara de pau para ser a pessoa que empaca uma longa fila de segurança. Em tempos de paranoia e terrorismo, não é fácil convencer o segurança do aeroporto a realizar uma inspeção manual de quinze rolos. Dos quatorze voos que peguei nesses dois meses, fui obrigada a submeter os rolos a cinco radiografias – sendo duas no mesmo dia, no mesmo aeroporto em Moscou. A segurança russa foi totalmente contra qualquer coisa que fugisse do protocolo oficial.

Ao chegar na China, percebi que todas as estações de metrô e principais edifícios possuem máquinas de raios X em suas entradas. Como o metrô era meu meio de transporte preferencial, a cada saída pelas ruas eu precisava encontrar formas de esconder ao menos um rolo de película. Ao visitar a Praça da Paz Celestial (Tiananmen) uma semana antes das comemorações oficiais dos 70 anos da Revolução Chinesa, me deparei com um aparato de segurança acima do normal, que me obrigou a passar mais de duas horas em uma fila no sol a pino do verão chinês com um rolo de película escondido em meu sutiã. O problema não era registrar em imagens aquela que um dia foi a cidade proibida e hoje é amplamente fotografada por turistas, mas sim conseguir explicar a importância de não sujeitar aquele objeto estranho à radiografia. A tensão de cruzar por aqueles portões históricos com algo escondido me fez sentir uma terrorista da imagem, que carrega algo ainda mais perigoso ou explosivo: registros de imagem obsoletos. Relembrando esse momento, me pergunto o que prejudicaria mais a película – a dose de radiação eletromagnética ou as gotículas de suor que permearam em sua emulsão durante essa espera? Talvez eu descubra quando os rolos voltarem para mim. Apesar disso, em nenhum aeroporto chinês tive que passar pelos raios X. Ao chegar munida de uma frase pronta em mandarim no meu celular, escrita por Dora, nome ocidental de uma chinesa que morava no hostel em que me hospedei em Shenzhen, sempre encontrei sorrisos e compreensão daqueles que antes me pareciam assustadores agentes da segurança chinesa.

No Burkina Faso, o medo constante dos ataques terroristas, muito recorrentes após a queda do ditador Blaise Compaoré em 2014, fez com que nenhuma astúcia fosse capaz de convencer os militares trabalhando na segurança do aeroporto e do hotel, munidos de metralhadoras. Foi também o único país em que precisei de uma autorização especial do Ministério da Cultura para poder filmar, e que foi conferida em três ocasiões diferentes. Na Guiné-Bissau, já estava pronta para trabalhar minha simpatia brasileira em português mesmo, língua oficial do país desde os tempos da colonização, apesar de apenas 15% da população domina-la, quando me avisaram que a máquina de raios X do aeroporto não funcionava já havia alguns dias.

Imagem do filme “A Ordem Reina”, de Fernanda Pessoa

Comprovarei a resistência do Super 8mm à radiação quando as películas voltarem reveladas, o que me leva ao segundo grande desafio desse projeto: filmar sem saber ao certo o que se filma. Na contramão dos registros digitais abundantes atualmente, não tinha como checar se as imagens que registrava estavam de fato sendo impressas na película, nem se as exposições, contrastes e enquadramentos estavam como esperava. É preciso ter certa fé na imagem e na câmera. No Vietnã, ao passar alguns dias no delta do rio Mekong, principal região de aquicultura do país e cenário recorrente de batalhas da Guerra do Vietnã (que lá é chamada de “Guerra americana”), visitei de madrugada o mercado flutuante. Os turistas comigo no barco, que registravam tudo sem limites e em mais de um aparato, se surpreenderam com a baixa quantidade de vezes com que eu mirava minha câmera. Os mais jovens não entendiam como não era possível ver o que aquele aparelho curioso captava. “Os turistas, em sua maioria, sentem-se compelidos a pôr a câmera entre si mesmo e tudo de notável que encontram”. Durante a viagem, lembrei diversas vezes de Sontag, que dizia que o ato de fotografar dava forma à experiência. Mediar a realidade com a presença da câmera, transformando-a em uma imagem ou souvenir, é também uma forma de apaziguá-la ou tentar controlá-la.

O fotógrafo norte-americano David Burnett, de 76 anos, espantou a todos recentemente quando escolheu fotografar a primeira audiência do pedido de impeachment de Donald Trump com uma câmera de grande formato, em película 4×5. Em meio às dezenas de flashs por segundo dos colegas que registravam o evento histórico em digital, a figura deslocada de Burnett, que parecia se mover em uma velocidade diferente do resto do mundo, chamou a atenção. No total, ele tirou apenas 16 fotos durante a audiência. O fotógrafo, que vem trabalhando com câmeras de grande formato desde 2003, disse que essa escolha o faz “pensar duas vezes antes de apertar o botão do obturador”.

Me identifico com Burnett. A preocupação em decidir exatamente o que tinha que filmar nos nove minutos disponíveis para cada país, sem ter muita margem para erros, mas ainda tentando deixar um espaço para o acaso mágico necessário às imagens em movimento, fez com que eu praticamente não tenha tirado fotos digitais com meu celular. O teórico inglês John Berger escreveu que a mensagem de uma fotografia é sempre “eu decidi que a visão disso vale a pena ser registrada” e que, por isso, sempre remete ao que não foi visto ou fotografado. Não há registros alternativos dessa viagem. Está tudo nas películas, ou não está.

A incerteza do que era registrado de fato foi agravada por um incidente em Shanghai, quando minha câmera caiu no chão e quebrou. Descobri então que de todos os lugares por onde passaria, esse era o melhor para que isso acontecesse. Shanghai possui um lugar conhecido como o “Palácio da Fotografia”, um complexo de dois prédios com cinco andares inteiramente dedicados a câmeras e seus acessórios. Se não encontrasse alguém lá que pudesse me ajudar, não encontraria em nenhum outro lugar. Cheguei com minha câmera e confirmei um senso comum: os chineses são muito ligados nas últimas tecnologias. Entre drones, gimbals, osmos e outros aparatos ultramodernos, eu entrava em todos os pequenos stands que pareciam ter formatos mais antigos de fotografia, mas quando mostrava minha Super 8mm, os atendentes me olhavam assustados e faziam sinais negativos com as mãos, quase enxotando a mim e minha velharia.

Foi só numa última tentativa mais insistente e desesperada que um deles me levou para o quinto andar de um puxadinho e lá encontrei minha salvação. Em uma mesa comprida, três chineses mais velhos trabalhavam consertando dezenas de câmeras das mais diferentes épocas. Ele me levou diretamente ao que trabalhava com as mais antigas delas e, através de um aplicativo de tradução simultânea, tentei explicar o que tinha acontecido. Depois de um bom tempo de trocas de frases que não pareciam fazer muito sentido, ele escreveu “Preciso de três horas. Se puder ser consertado, vai custar 300 yuanes, se não puder, não cobrarei nada.” Enquanto ele examinava a câmera, institivamente saquei meu celular e discretamente tirei uma foto dessa cena, como numa tentativa de transformar aquilo em passado, algo para olhar depois e lembrar do sufoco já resolvido. A foto no
celular era uma forma de tentar garantir que tudo acabaria bem.

Percebo a contradição de estar aqui escrevendo uma espécie de ode à película e, no primeiro momento de desespero, recorrer ao digital. Espero que essa contradição revele que não nego as qualidades e benefícios do digital, nem idealizo o analógico. Eles apenas parecem ter usos e possibilidades diferentes. Sai de lá apreensiva e perambulei pelo bairro sem saber se poderia continuar as filmagens. Eu estava ainda no meio da viagem. Já havia filmado Rússia e Vietnã, faltava terminar a China e seguir para os dois países africanos. Passado o tempo estabelecido, ele me garantiu sorridente que tinha encontrado o problema e a câmera estava funcionando perfeitamente. Não tive outra opção a não ser confiar naquele mestre de câmeras chinês, de quem nem anotei o nome, e seguir filmando, com fé cega, faca amolada.

A diretora Fernanda Pessoa durante filmagens de “A Ordem Reina” em Shangai

Esse caso reafirmou para mim uma ideia de que a câmera fotográfica ou de filmagem é praticamente autônoma, não dependendo tanto de quem a está operando. Ao contrário da pintura ou das outras artes que dependem muito da técnica de quem as realiza, a captura de imagens fotográficas (paradas ou não) tem certa vida própria. Minha câmera pareceu funcionar muito bem até o último dia em que estava na Guiné-Bissau, meu último destino, quando começou a emperrar, como se dissesse “basta”. Ela não aguentava mais o ritmo e as temperaturas que eu lhe impunha, e a verdade é que eu também não. Minha companheira de viagem decidiu que eu não poderia fazer nada nesse último dia, quando tinha planejado filmar a Praça Che Guevara no centro de Bissau, e tive que aceitar. Ao visitar a praça sem poder fazer minhas imagens, lembrei de quando Che Guevara foi ao continente africano, à Republica Democrática do Congo, em 1965 e à paisana, numa tentativa de ajudar nas lutas revolucionárias pela independência. Sem a barba característica, não o reconheciam por lá, e achavam estranho um branco, supostamente vindo de Cuba, estar à frente das guerrilhas. O episódio é pouco conhecido e parece mais mito do que fato, mas há registros fotográficos de sua presença, comprovando a veracidade da história.

Ao voltar para o Brasil, sentia um peso imaginário nas costas e uma preocupação desnecessária com algo que deveria estar carregando. É estranho andar pelas ruas sem levar comigo minha câmera e os 15 rolos de Super 8mm, que estiveram sob minha guarda todo esse tempo. A responsabilidade e o medo de acontecer alguma coisa com esses registros únicos eram constantes. Imaginava diversas catástrofes possíveis, como a bolsa térmica com os rolos caindo no rio Huangpu, os oficiais burquinabês confiscando as películas, alguém no quarto compartilhado do hostel achando que aquilo poderia ser valioso, ou mesmo uma falta de atenção minha pelo cansaço, esquecendo as películas para trás em alguma cidade.

Enquanto aguardo as imagens, escrevo como uma forma de ter algum registro dessa viagem, tentando suprir a falta da imagem fotográfica com a minha memória. Caso a primeira falhe, tenho a segunda. Escrevo também por não poder começar a montar esse filme, e penso que montar é como escrever com imagens, selecionando os elementos em contrastes, variações, continuidades e rupturas, sabendo onde se estender e onde ser objetiva. Monto com palavras por ainda não ter imagens.

Trabalhar com película hoje parece ir contra todos os preceitos do tempo contemporâneo. Não há imediatez de resultados, não é possível registrar imagens sem refletir e sem limites, não é adequado passa-las pelos meios de segurança e não há reprodutibilidade técnica instantânea. Assim como as experiências históricas anticapitalistas parecem não ter mais espaço em nosso imaginário, mas talvez sejam justamente elas capazes de trazer novas perspectivas, esperanças e apaziguamentos para nossas questões. Sontag escreveu que a sociedade capitalista requer uma cultura baseada em imagens e a produção de imagens também abastece uma ideologia dominante. Sobre isso, Berger comentou que talvez seja possível começar a usar as imagens de acordo com uma prática dirigida a um futuro alternativo. O alemão Walter Benjamin já havia apontado essa ambivalência da fotografia, que para ele representava a síntese da política econômica destrutiva e consumista do capitalismo, ao mesmo tempo que era o primeiro meio de produção realmente revolucionário. Filmar em película e refletir sobre esses momentos recalcados da história representam para mim uma volta formal e teórica ao passado, que coloca em perspectiva o presente e um futuro possível.

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Duas semanas depois de começar esse texto, recebo a notificação do Fedex de que minhas películas voltaram. Busco um pacote grande com os rolos revelados e um HD contendo as imagens digitalizadas. Consigo ver pelos quadradinhos minúsculos do Super 8mm que há imagens, a película imprimiu algo. Me preparo para ver o resultado de dois meses de trabalho pela primeira vez, como em um ritual sagrado, tentando manter uma espécie de aura da película viva mesmo em sua versão digital.

A película está morta. Viva a película!


Fernanda Pessoa é uma cineasta e artista visual brasileira, que trabalha principalmente com documentário, cinema experimental e videoinstalações. É doutoranda na ECA/USP com pesquisa sobre o cinema experimental feito por mulheres na América Latina, e mestre em Audiovisual na Sorbonne Nouvelle, sob orientação de Philippe Dubois. Em 2017, lançou seu primeiro longa documental, Histórias que nosso cinema (não) contava, exibido e premiado em diversos festivais internacionais. Seu segundo longa, Zona Árida, recebeu Menção Honrosa no Dok Leipzig. Participou da Berlinale Talents 2019. Mais informações aqui.

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