A roteirista e diretora Marcela Lordy faz sua estreia no longa-metragem de ficção com O Livro dos Prazeres, adaptação do romance Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, publicado por Clarice Lispector em 1969. Coprodução entre Brasil e Argentina, e escrito por Lordy em parceria com Josefina Trotta, o filme tem Simone Spoladore no papel da professora Lóri, uma mulher que prefere encontros casuais à possibilidade de conexão afetiva. Ela passa por uma profunda mudança ao conhecer Ulisses (Javier Drolas), um professor de filosofia egocêntrico e provocador. Abaixo, o Mulher no Cinema publica um depoimento de Marcela Lordy sobre sua relação com a obra e o que motivou o desejo de adaptá-la para o cinema. O texto foi originalmente publicado como posfácio da nova edição de O Livro dos Prazeres, lançada pela Editora Rocco.
*
Um livro revolucionário e inspirador. Uma das maiores escritoras da língua portuguesa. Uma jornada de aprendizado e aceitação de uma protagonista feminina forte e complexa. Uma diretora estreante mulher. O desejo de transformar uma narrativa sensível, do campo do pensamento e da imaginação, numa obra cinematográfica autoral vibrante, capaz de abrir o cinema e a literatura brasileira para um público ainda maior. Esses são os pontos de partida do filme O Livro dos Prazeres, uma livre adaptação para os dias de hoje do romance Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, de Clarice Lispector, publicado em 1969.
Em sua dissertação de mestrado em estudos da linguagem pela Universidade Estadual de Campinas, a jovem chinesa Ma Lin defende que Lóri sente uma “dor” profunda que vem da ansiedade e vontade de se identificar como mulher independente numa sociedade patriarcal. Através dela, a escritora Clarice Lispector constrói pela primeira e única vez uma mulher-protagonista que realiza seu destino obtendo a autoafirmação e a autorrealização. Algo difícil, não só na literatura da época, mas ainda nos dias de hoje, mais de 50 anos após a publicação do livro.
Se o prazer sempre foi um tabu para a mulher, escrever ou falar sobre isso ainda hoje é problemático. Como as mulheres foram acostumadas a ler sobre o próprio corpo sob uma ótica masculina, o erotismo feminino parecia sublimado, incapaz de se expandir em direção a um crescimento individual. Por isso, esta obra escrita em 1969, em seguida da revolução cultural de Maio de 1968 e num momento crítico da política brasileira, foi extremamente ousada ao propor uma revolução feminista para o lado de dentro da mulher. Um ano após o AI-5, o quinto de dezessete grandes decretos emitidos pela ditadura militar.
“Lóri busca aventureiramente sua identidade real, aprende a se libertar dos outros, a se despir da máscara social e a viver corpo-a-corpo com a banalidade da vida.”* Vindo de Clarice, tudo isso acontece de forma extraordinária, claro. A autora que revela em sua obra intimista um olhar extraordinário a partir do ordinário propõe aqui uma viagem ao consciente através de um processo de individuação que só se completa na transcendência através do outro, mas de um outro humano, real e não divino.
A trajetória de Lóri é a de toda mulher em busca de autonomia. Não só da mulher, mas de toda pessoa que tem coragem de olhar para dentro e enfrentar o que nem sabe que existe. Vivemos com Lóri o encontro com suas sombras e o mergulho profundo em sua crise existencial. Da escuta silenciosa à descoberta de sua própria voz, Lóri aprende a se colocar atravessando uma jornada de autoconhecimento que culmina na expressão do seu canto de sereia. Ao mesmo tempo selvagem e suave.
Lóri é uma femme fatale. Adora se maquiar, se vestir de forma sexy para seduzir, atrai os homens, mas mata qualquer possibilidade de amor dentro de si. No entanto, a ascese dessa alma nesse corpo que não se permite sentir se dá através do afeto e culmina numa grande explosão carnal. De pura epifania. Nesse livro otimista Clarice abre uma exceção em sua obra e torna o amor possível. Estamos diante de um final feliz, ou melhor, de sua primeira história com começo meio e “gran finale” seguido de silêncio e de chuva caindo.
É no espelho-Ulisses que Lóri se reconhece. Como um psicólogo, ele a conduz pacientemente ao longo de sua jornada de crescimento. Mas, apesar do tom professoral e da petulância, ele faz isso sem se colocar no papel de dominador, ainda que Lóri o veja inicialmente como um Deus grego. É preciso que ela se descubra plena para enfim reconhecer o prazer de estar com o outro. E enquanto ele tenta compreender suas verdadeiras pulsões, aconselhando e apontando o isolamento de Lóri, esta aprende a dar seus passos sozinha e descobre o direito de ir e vir. De igual para igual.
Como uma onça enjaulada, Lóri dá voltas, encara o silêncio, percorre seu mundo interior para finalmente mergulhar na sua verdade. Na imensidão do seu oceano, ela perde o medo de sua profundidade e passa a ser o que se é. Depois, emerge plena. Flutua. Fora do mar do inconsciente ela passa a ter coragem de assumir e viver conexões afetivas reais. Com sua família, alunos, Ulisses, com o mundo e consigo mesma.
Mas essa transformação só acontece quando Lóri sai do papel de vítima e se torna responsável pelos seus desejos. Quando ela enfrenta suas sombras e se liberta do papel de objeto para ser sujeito do seu próprio prazer. E é nessa equidade alcançada por Lóri que Ulisses também se humaniza e desce do seu pedestal. E o amor humano real torna-se possível, para além do mito romântico.
“Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente”, diz Ulisses. Esta relação bem particular, confusa emocionalmente, por fim nos revela a complexidade do existir, a solidão e a necessidade de se relacionar apesar de tudo. Compreendemos com eles que, para além do caos que habita a essência de cada um, vale a pena tentar ser feliz.
A história de Lóri e Ulisses também é comparada ao mito grego de Eros e Psiquê, onde “o amor, como expressão da totalidade, é impossível nas trevas da inconsciência paradisíaca, onde dois se confundem com um. Só se torna possível quando os amantes conquistam a luz da consciência sofrida de si mesmos como indivíduos únicos, separados um do outro”.** Uma história de humanização por meio do desenvolvimento da consciência. Onde a morte enquanto passagem é necessária para um novo começo. Para um relacionamento humano, consciente e individual.
Ao mesmo tempo O Livro dos Prazeres é a Odisseia de Homero às avessas, onde temos um Ulisses que espera uma “esposa” que realiza uma grande viagem para dentro de si. Mas é ele quem seduz, preso no mastro da sua consciência, a “sereia” Loreley. Ulisses está em plena aprendizagem e, segundo ele mesmo, muito além de Lóri, por isso é capaz de a desejar e esperar, com paciência, até que ela fique pronta com a alma também.
Neste livro a autora não reproduz padrões tradicionais de oposição masculino/feminino. Ao processar sua investigação existencial a partir da sua condição de gênero, Clarice acaba por estabelecer articulações que vão muito além da diferenciação sexual. Ela toca o lado humano dos personagens brincando justamente com o feminino e o masculino de cada um. Nesta inversão ousada, Clarice mistura os papéis predestinados a cada gênero nas narrativas clássicas e faz com que a mulher saia em busca de aventura para ganhar o mundo. Algo corriqueiro nos dias de hoje.
Diante de Ulisses, Lóri resgata seu feminino e é capaz de perceber que o seu olhar distante, inaugural, que também é um olhar de espanto, é a sua força. Com Ulisses, ela aprende a ter coragem de estar viva e percebe que não se pode cortar a dor, senão, ao contrário, se sofre o tempo inteiro. As aproximações e afastamentos que se sucedem entre os dois fazem com que a aprendizagem dela se proceda com avanço e retrocesso. Como na vida. O que também se reflete na estrutura formal do livro, cheio de idas e vindas e repetições.
Na nota introdutória, Clarice afirma: “Este livro se pediu uma liberdade maior que tive medo de me dar. Ele está acima de mim. Humildemente tentei escrevê-lo”. Não à toa, a tarefa de adaptação de uma obra literária de tamanha ousadia estética tenha provocado certo temor, tanto em mim, uma diretora de cinema novata, quanto na coroteirista argentina Josefina Trotta, especializada em adaptação literária. Entretanto, curiosamente, as palavras da autora convidam ao máximo de liberdade. Então partimos do pressuposto de que a tradução livre demais perderia a força e de que a adaptação que nos interessava deveria ser capaz de restituir o essencial do texto ao espírito do espectador. Ousadia essa que – para além dos personagens “psicanalisados” ao longo do processo – vem também da sua forma narrativa peculiar, um fluxo de pensamento contínuo que começa com uma vírgula e termina com dois pontos atravessando passado, presente e futuro com total liberdade.
Embora escrito em 1969, esta história tem hoje um grande apelo, por se tratar da independência feminina e o aprendizado do amor, da lenta iniciação de uma mulher e seu amado, numa onda crescente de erotismo, quando justamente ninguém mais tem paciência para o tempo do outro e vivem-se amores supérfluos, líquidos.***
Após um ano de espera, Lóri aprende a viver através da humanização dos desejos, onde o amor não é mera satisfação dos instintos, mas algo muito além de uma relação puramente animal. Foi isso o que chamou a minha atenção para adaptar a história para os dias de hoje. Assim como a possibilidade de uma relação afetiva estável, que desconstrói o mito do amor romântico, na qual a obrigação de fazer o outro feliz sai do cônjuge e vai para o indivíduo e suas escolhas.
O estado amortecido em que encontramos Lóri – uma mulher fechada, que decidiu não se inquietar, não sentir dor e evita entrar em contato com sua própria intensidade – e a forma como ela se reconecta a sua natureza humana é de grande força espiritual e lirismo. Trazer a público a necessidade de aceitar a nossa solidão, entender e respeitar a do outro para viver em comunhão, foi a grande motivação para encarar essa difícil tarefa de adaptação.
Vídeo: Saiba mais sobre a realização do filme O Livro dos Prazeres
Recém separada de um casamento de dez anos, percebi o quanto as relações afetivas se tornaram voláteis. Morando sozinha, num apartamento pequeno, uma verdadeira onça tentando entender quem sou eu sem ficar completamente perdida, nasceu a coragem de fazer o filme. Passei por muitas provações, como autora, diretora e de certa forma personagem desta história. Mas a trajetória de Lóri me abriu para o afeto e me ensinou a ficar bem, antes de colocar o colete salva vidas em quem está ao meu lado.
Por outro lado, levar este livro de rara densidade sensorial para o cinema foi a concretização de um sonho conquistado ao longo do tempo. A vida voou enquanto realizava os meus desejos que, assim como os de Lóri, passavam longe do projeto casamento e filhos. Existia antes uma vontade imensa de encontrar a minha voz, de me expressar artisticamente, uma pulsão incontrolável para entender como eu era por dentro. Uma investigação sem fim, que começou ainda adolescente, na fotografia, quando um olhar humanista me foi revelado numa viagem ao Peru. Prosseguiu na escrita em forma de poesia e, já na idade adulta, no prazer de contar histórias através de imagens e sons.
Depois de anos pude perceber que o cinema, apesar de ter sido inventado e realizado de forma ostensiva pelas elites culturais e econômicas, é uma arte que atravessa diversas classes sociais. Pode haver um abismo entre a pessoa que compra o pão do café da manhã e a que fala “ação”, no entanto, todos têm a mesmíssima importância na complexa engrenagem coletiva que é fazer um filme. Isso sempre me trouxe alívio e a certeza de estar no lugar certo, onde também, sob a pressão do set, conhecemos a verdade de cada um. Imagino eu, algo próximo da experiência da Lóri como professora numa escola pública.
Seguiram-se anos trabalhando como assistente de direção num universo extremamente machista até conseguir um espaço na criação. O que demorou o dobro do tempo dos meus colegas homens. No país do nepotismo declarado, com ou sem talento, os “filhos dos donos” passam na frente de muita gente, sobretudo das mulheres. Apesar disso, falar do extraordinário de dentro do ordinário sempre teve um apelo grande para mim que gosto de poesia e tenho afinidade com autores cuja obra gira em torno da pesquisa estética, especialmente a pesquisa em torno da linguagem.
Eu tive a sorte de encontrar ressonância nas produtoras Deborah Osborn, Natacha Cervi, Camila Nunes, na atriz Simone Spoladore e em dezenas de homens e mulheres sensíveis que trabalharam na realização do filme. No fundo, todos sentiam falta de espaço para as narrativas femininas e sabiam que, nesse mundo tomado por distopias cada dia mais incompreensíveis, falar de amor e de afeto é um ato radicalmente necessário.
Para a nossa alegria, a pensadora do audiovisual Ilana Feldman escreveu ao ver um dos últimos cortes: “Seu filme, uma espécie de fábula audiovisual sobre a solidão da posição feminina, nos instiga a cultivar um certo feminino que, nesse mundo bruto, a gente recalca, esquece até. Para isso, ele tem a imensa coragem de afirmar o amor como um lugar que ainda é – e que mais do que nunca pode ser – uma das poucas experiências dessa vida realmente compartilhadas. Mesmo que, para Lóri, amar signifique comparecer ao próprio desencontro”.
Assim como Lóri, aprendi a amar e a me afirmar nesse meio tão masculino que é o do cinema. Este livro me trouxe a coragem de fazer um filme autoral à flor da pele em pleno 2019, num momento igualmente crítico da política brasileira. Talvez daí a adoração incondicional que toda adolescente tem por ele. Talvez daí o poder transformador de Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres atravessar o mundo até a China. Afinal, assim como Clarice, toda mulher tem uma Lóri dentro de si. Basta ler este livro para encontrá-la.
Marcela Lordy é diretora, roteirista, produtora e amante da literatura. Graduada em cinema pela FAAP, estudou direção de atores na EICTV, em Cuba, e transita entre o cinema, a televisão, o teatro e as artes visuais. É diretora de Sonhos de Lulu (2009), A Musa Impassível (2010), Aluga-se (2012), Ouvir o Rio: uma escultura sonora de Cildo Meireles (2012), Ser O Que Se É (2018) e O Amor e a Peste (2022). O Livro dos Prazeres é seu primeiro longa-metragem de ficção.
Notas:
* A Formação da Mulher em Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, de Clarice Lispector/ Ma Lin. – Campinas, sp: (sn), 2015.
** SILVA, Teresinha V. Z. Mito em Clarice Lispector. Interdisciplinar (online), v.7, p.1 – 10, 2008.
*** Inspiro-me no conceito de Zygmunt Bauman sobre a facilidade de esquecer o outro, de se desconectar numa sociedade de extrema descartabilidade, onde não se arrisca, por exemplo, a amar sinceramente (se entregar). Amores Líquidos, 2003.