Dercy Gonçalves no cinema: a antivedete que foi estrela das chanchadas

Quinze anos após a morte de Dercy Gonçalves (1905-2008), o público tem duas novas oportunidades de conhecer ou se aprofundar no trabalho desta que foi uma das mais populares artistas brasileiras.

Uma das oportunidades está nos palcos: o monólogo Nasci pra ser Dercy, estrelado por Grace Gianoukas, que desde janeiro viaja pelo país. A outra está no streaming: a mostra “Dercy Gonçalves – Vedete Transviada”, em cartaz desde maio na Itaú Cultural Play, plataforma gratuita do Itaú Cultural.

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A mostra reúne seis filmes lançados entre 1957 e 1960, quando a atriz era a principal estrela das chanchadas produzidas pelos estúdios Cinedistri. De forma geral, suas personagens são mulheres da classe trabalhadora que ascendem socialmente por causa de alguma surpresa, fantasia ou confusão. Em A Baronesa Transviada (1956), Dercy é uma manicure que herda fortuna inesperada; em Uma Certa Lucrécia (1957), uma costureira que, num sonho, vira nobre; em Cala a Boca, Etelvina (1958), uma empregada confundida com a patroa; e em Minervina Vem Aí (1959), uma empregada que desperta paixão em um homem rico. Completam a seleção Dona Violante, Miranda (1960), sobre uma dona de bordel que cria uma dama da sociedade; e A Grande Vedete (1958), no qual Dercy interpreta uma famosa estrela do teatro musicado que não percebe o declínio da própria carreira.

Em todos os filmes, a atriz leva para as telas o humor, as improvisações e a atuação de corpo inteiro que já marcavam seu trabalho nos palcos. “O que Dercy nos deixou de sua passagem no cinema foi especialmente sua coragem de enfrentar novos gêneros e meios, sua insistência em personalizá-los, em vez de moldar-se a qualquer custo a eles”, afirmou a pesquisadora Virginia Maisano Namur, professora de humanidades da Faculdade de Tecnologia de São Paulo (Fatec/SP) e autora da tese Dercy Gonçalves – o corpo torto do teatro brasileiro. “Observar o discurso facial ou corporal da atriz nesses filmes é um prazer à parte e nos assombra seu poder de, num cinema ainda incipiente, compreender tão rapidamente para que serviam as imagens.”

A pedido do Mulher no Cinema, Virginia respondeu algumas perguntas por email sobre a carreira de Dercy nas telas. Trechos de suas respostas foram publicados originalmente na coluna Grande Angular, que escrevo mensalmente para o site do Itaú Cultural. Uma versão estendida da mesma entrevista pode ser lida abaixo:

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Me parece que o teatro era o lugar onde Dercy mais gostava de estar, e que a televisão foi o meio que a fez chegar a um maior número de pessoas. Sendo assim, qual espaço o cinema ocupa na carreira dela? O que ele trouxe à Dercy e o que de Dercy ele trouxe para nós?

Não era bem assim. Dercy preferia o teatro por causa da mágica interação palco/plateia, com a qual ela aprendeu a contracenar. Aprendeu no circo, diga-se de passagem, e sempre deixou claro que a única coisa que respeitava em seu trabalho era o público. Mas era um respeito a la Dercy, de intensa relação dialógica, com larga margem para provocações e desaforos e até para pequenos conflitos. Ela adorava estar no palco por isso. Com Dercy, toda sessão teatral era sempre a mesma e, no entanto, única, pois sabia como ninguém tratar com o acaso. Tudo o que de inesperado acontecia dentro ou fora da peça era motivo para improvisações criativas. Ou seja, era um teatro popular, sem quarta parede, riquíssimo de interações.

No cinema não era assim. Ela estava distanciada desse corpo-a-corpo com a plateia, no meio de uma barafunda de equipamentos de filmagem, sob o comando cego do diretor, rodando cenas separadas que só iriam se juntar no final – funcionando “de trás para diante” como ela mesma dizia.

Também não podemos nos esquecer de que o cinema brasileiro estava apenas nascendo e em casa pobre. Para sobreviver, o cinema nacional precisava encontrar uma estética ajustada a essa realidade, precisava assumir suas próprias restrições econômicas e enfrentar a tarefa de se construir de modo quase que artesanal frente a toda aquela nova parafernália tecnológica. E é claro que, do ponto de vista do enredo e da encenação, seu ponto de partida foram as estratégias do próprio teatro de tradição cômico-popular que tão bem praticavam, e que nesse tipo de cinema teve as chanchadas como momento ímpar.

Dercy Gonçalves em cena do filme “Uma Certa Lucrécia” – Foto: Divulgação

Embora Dercy tenha iniciado a carreira cinematográfica com filmes revisteiros, isto é, que tomavam como modelo a estrutura do teatro de revista, foi nas chanchadas que realmente brilhou. Mas mesmo nessas, foi o recurso da metalinguagem da velha revista, que abria a possibilidade de revelar ao público todos os truques de encenação, que lhe garantiu sucesso. Dercy só foi feliz no cinema porque a chanchada lhe permitiu impor, mesmo à distância física do público, uma espécie de aproximação metalinguística com ele. E foi no próprio rastro dessa aproximação – que ocorria quando desmistificava diante dele o grande poder de ilusão das projeções cinematográficas, feitas na maior parte das vezes através de paródia – que ainda conseguiu ganhar certa liberdade de inserir “cacos” ou improvisações, explorando sempre a seu favor as faltas, os erros, os acasos.

O cinema ajudou-a, sim, a ser conhecida. E se ela dizia que era o meio que menos a agradava, era porque dava muito trabalho e pouco dinheiro, num país onde os direitos do interprete até hoje não estão devidamente regulamentados. O que Dercy nos deixou de sua passagem no cinema foi especialmente sua coragem de enfrentar novos gêneros e meios, sua insistência em personalizá-los, em vez de moldar-se a qualquer custo a eles. Também vale falar de sua muito ágil inventividade expressiva, percebendo muito rapidamente que a imagem era um veículo especialmente pródigo para sua cômica linguagem corporal e levando-a ao extremo. Observar o discurso facial ou corporal da atriz nesses filmes é um prazer à parte e nos assombra seu poder de, num cinema ainda incipiente, compreender tão rapidamente para que serviam as imagens. Provavelmente lhe valeu muito ter trabalhado em Madalena, sua cidade natal, como lanterninha de cinema, podendo assistir inúmeras vezes aos mesmos filmes mudos de Carlitos a Theda Bara.


“O que Dercy nos deixou de sua passagem no cinema foi especialmente sua coragem de enfrentar novos gêneros e meios, sua insistência em personalizá-los, em vez de moldar-se a qualquer custo a eles.”


Há um trecho da sua tese que diz: “Não podendo ser vedete, outra entidade de limiar, que usava sua graça e beleza reais para alçar à condição virtual de rainha do espetáculo, [Dercy] enveredou pelo inverso. Tornou-se a sua antípoda: uma antivedete, ou melhor dizendo, uma caricata.” Gostaria de entender melhor este conceito de “antivedete” e como ele se aplica especificamente ao trabalho de Dercy no cinema.

A vedete é a personagem central do teatro de revista de último ciclo. O do primeiro ciclo tinha uma estrutura bem diferente, baseada em personagens fixos como a mulata, o português e o malandro. Visava, através dessas figuras populares, revisitar em diferentes quadros os principais fatos sociais e políticos ocorridos no país durante o ano. Por isso se chamava “revista”, e podemos dizer até que era um espetáculo leve e alegre, de comicidade paródica, mas com toques nacionalistas. Era como um ritual de fim/início do ano: dava adeus ao ano velho e prenunciava a chegada do novo.

Dercy participou apenas dos momentos finais dessa revista, quando o gênero já estava esgotado tanto pelas mudanças sociais ocorridas no país (diante das quais a velha trinca mulata-malandro-português já não significava mais nada), quanto pela chegada de novos meios mais atrativos de comunicação, como o cinema e o rádio. Em seu lugar surge a estrutura espetaculosa e sensacionalista das superproduções carregadas de plumas e paetês, com muitas luzes, cascatas e escadarias, nas quais a beleza e a graça feminina eram as grandes estrelas, e que conhecemos hoje por teatro de revista. Logo, o teatro de revista no qual a vedete é a rainha é o de segunda fase, que herda da primeira o gosto musical e, de certo modo, a presença sensual da mulata (que acaba levando a extremos), mas perde em personagens e enredo, transformando-se numa sequência de quadros cômicos levemente apimentados pela malícia da piada e pela exacerbação da sensualidade das vedetes.

Digamos que Dercy, sem ter sido feia, não era exatamente uma beleza, muito menos sensual. Sabia cantar e dançar bem, mas já que não era este o critério para chegar ao papel principal, por mais esforço que fizesse jamais chegaria à primeira vedete. Como nunca foi de ficar em segundo plano, mas como também não era burra de dar “murro em faca”, navegou na corrente das águas e tratou de buscar no gracejo um nicho próprio. No elenco, a princípio como parte do coro ou vedete menor, foi ganhando espaço com certas graças brejeiras, entre elas a de ousar desfilar na passarela exagerando um tanto o rebolado e trejeitos das vedetes, a ponto de dissimuladamente torná-los caricatos. Ou seja, expunha-se de modo ambivalente: era uma das vedetes, mas também se postava como crítica do gênero em seu esvaziamento da parcela dramática. Acabou dirigindo o elenco e até alguns espetáculos de Walter Pinto, o rei desse tipo de teatro no Rio de Janeiro da década de 1940.

Dercy Gonçalves em cena do filme "A Grande Vedete" - Foto: Divulgação
Dercy Gonçalves em cena do filme “A Grande Vedete” – Foto: Divulgação

Em A Grande Vedete, porém, Dercy “lavou a alma”. Fez o filme em 1958, já com 51 anos, e dizem que o considerava seu melhor trabalho na tela. Talvez porque, embora tenha boas pitadas de humor, o filme esteja bastante próximo dos melodramas que costumavam sensibilizar as plateias mais burguesas. Aliás, nesta época a atriz estava muito preocupada em aproximar-se de um novo público, expandindo seu sucesso para além do teatro popular. Sua companhia teatral praticamente falira, parte por puro esgotamento do teatro musicado a que se dedicara depois da revista, parte porque seu marido, Danilo Bastos – um publicista (como se dizia à época) com veleidades de escritor e produtor de uma dramaturgia mais “alta” do que a que ela fazia -, gastara todo o seu dinheiro montando peças fadadas ao fracasso.

Embora Dercy esteja fisicamente muito bem em A Grande Vedete e surja na tela como uma artista bem-sucedida, refinada e elegante, ainda é como antivedete que se representa. Pois o filme, apesar do final melodramaticamente feliz, é uma história de declínio, não de apogeu. Dizendo em termos revisteiros, não tem apoteose. Nesse sentido, é também a história do declínio do próprio teatro de revista.


“Se examinarmos os filmes de Dercy sob a perspectiva feminista, observaremos que são na sua maior parte bem conservadores. As possibilidades femininas de ascensão social cogitadas por eles raramente têm o mérito como fonte.”


Em vários dos filmes que estão na mostra da Itaú Cultural Play Dercy interpreta uma mulher da classe trabalhadora que ascende socialmente por causa de uma confusão ou acontecimento inesperado. Considerando que o cinema daquela época costumava criar “personas” para suas estrelas, seria este um tipo atribuído à Dercy? E estaria este tipo de certa forma ligado à trajetória pessoal dela? Não digo em termos de ascensão social apenas, mas do fato de ela ter chegado a um determinado lugar apesar de tudo o que estava contra ela.

Acho que não. Dercy não era vista à sua época como “trabalhadora”, a não ser pela classe artística, que conhecia muito bem sua grande disciplina responsabilidade profissional. Não se pode esquecer que a atriz viveu numa época em que, para a “boa sociedade”, ser mulher e ser artista era ser uma desclassificada, ou seja, à margem de qualquer classe social. E a própria Dercy contava e recontava em entrevistas na TV que antes de Getúlio Vargas a carteirinha profissional de atriz era a mesma que a das prostitutas.

Quanto às personagens de Dercy, essas retratam, em minha opinião, o mundo feminino da classe baixa da sociedade da época, em que só mulher pobre trabalhava. Por outro lado, também é um elogio ao trabalho, aos moldes do programa progressista de industrialização iniciado na década de 1940 por Vargas. Portanto, buscam apenas legitimar socialmente essa força de trabalho, muitas vezes dando-lhe até certo glamour.

Se formos examinar os filmes de Dercy sob a perspectiva feminista, observaremos que são na sua maior parte bem conservadores. Por exemplo, as possibilidades femininas de ascensão social cogitadas por eles raramente têm o mérito como fonte. Seguindo a mesma estrutura de “peripécias” e “reconhecimentos” da encenação popular, surgem inesperadamente, como você disse, das confusões e trocas de papel por engano, dos reconhecimentos e heranças ou do casamento com um homem rico. Se há exceções, ou são sonhos ou então resultado de uma vida um tanto “discutível”, como ser uma vedete ou uma prostituta aposentada.

Dercy Gonçalves em cena do filme "Cala a Boca, Etelvina" - Foto: Divulgação
Dercy Gonçalves em cena do filme “Cala a Boca, Etelvina” – Foto: Divulgação

Sua tese celebra Dercy como representante do teatro popular brasileiro, que de forma geral é visto como inferior ou pouco importante, assim como ocorre com as chanchadas no caso do cinema. Treze anos após defender sua tese, e 15 anos após a morte de Dercy, acredita que a arte popular em geral, e o trabalho de Dercy em particular, estão sendo mais valorizados?

Quando escrevi minha tese já estava havendo nos meios acadêmicos uma maior valorização do teatro popular, que em nosso país é praticamente sinônimo de teatro brasileiro. Meu trabalho tinha o objetivo de colaborar com isso, tomando como caso de estudo uma artista extrema como Dercy. Mas isso durou só até a época em que o país esteve em ascensão econômica. Parece que estar econômica e socialmente bem é condição sine qua non para que os cidadãos possam olhar para si mesmos e para suas produções com certo respeito e valor, não é? E nossa história e situação étnica, geográfica, linguística, social e política são tão confusas. Somos eternos colonizados e não sabemos disso; somos mestiços e não avaliamos a riqueza que isso comporta; somos imensamente criativos e temos um pensamento único, cuja estrutura e funcionamento desconhecemos. Há tanta coisa ainda por descobrir em nós mesmos. Depois tudo começou a mudar e finalmente chegamos ao pesadelo dos últimos anos, em que cultura e arte foram desvalorizadas e houve um enorme retrocesso.

Veja o meu caso: a base de minha leitura de Dercy é uma coisa que chamo de “estética da precariedade”, e que é um processo surpreendentemente criativo de suplante de falhas, de faltas e de “aquéns”, sob os quais sempre vivemos e produzimos culturalmente. Ou seja, pontualmente, tenho uma teoria sobre nossas produções estéticas de fonte popular. E evidentemente, essa tem tudo a ver com quem somos e, principalmente, com nosso ambivalente pensamento miscigenado e colonizado, antes pelos europeus, depois pelos americanos e agora pelos ainda misteriosos domínios da internet e do metaverso.

Nos últimos anos essa teoria se tornou extremamente perigosa e eu fiquei sem voz. Porque a falta, a falha e o “aquém”, que muitas vezes se manifestam em nosso fazer estético como elemento impulsionador de criatividade artística, são ambivalentes e também têm outra face, que é horrenda. É a miséria da pobreza, da ignorância e da subserviência, e levam somente à negação, aos preconceitos, aos antagonismos, acabando em geral em violência e morte. Pois foi justamente essa que começou a reger o país, oferecendo cotidianamente seus espetáculos. Diante deles, não havia mais como falar das vantagens da miscigenação porque ela voltara a ser miséria. Nem de “pulos de gato” ante os impasses da colonização, quando esses impasses ganhavam vida através da internet.

Conseguimos, entretanto, reverter a rota. Mas por pouco. E, portanto, ainda nada é seguro. Mas já há outros ventos. Prova é que mal o ano começou, entrou em temporada [o espetáculo] Nasci para ser Dercy, com Grace Gianoukas, e que esta é a primeira entrevista que aceito responder sobre Dercy depois dessa malfadada época.


“O que a diferenciava não só como mulher, mas como pessoa, é que ela tinha princípios próprios e pronto: os seguia. Nem que gerassem paradoxos em sua vida. Simples assim. Sabia pensar muito bem por outra lógica, não linear, heterodoxa, na qual tinham lugar inclusive as contradições.”


Sei que você não pesquisou questões de gênero especificamente, mas gostaria de saber se você vê a “anti-vedete” de Dercy como uma figura transgressora ou de comportamento diferente do que era esperado das mulheres no contexto dos anos 1950, quando esses filmes foram feitos.

Realmente não estudei Dercy desse aspecto, mas posso dizer que sim, Dercy era uma mulher diferente para sua época. Não porque fosse feminista, pois em certas coisas era muito conservadora. Por exemplo, quis criar a única filha longe do mundo artístico no qual vivia e educou-a dentro de rígidos padrões morais burgueses.

O que a diferenciava não só como mulher, mas como pessoa, é que ela tinha princípios próprios e pronto: os seguia. Nem que gerassem paradoxos em sua vida. Simples assim. Sabia pensar muito bem por outra lógica, não linear, heterodoxa, na qual tinham lugar inclusive as contradições.

Isso pode causar a quem a estuda sérios problemas. Como entender, por exemplo, a proteção que ela deu a muita gente durante a ditadura militar, às vezes em risco próprio? O caso mais conhecido é o de Mario Lago, comunista de carteirinha, preso político por várias vezes, a quem ela foi a única a dar emprego porque ele e sua família estavam passando fome. Dizem que chegou a ameaçar a emissora de pedir demissão ali, na hora, caso ele não fosse contratado e entrasse imediatamente num quadro que inserira para ele em seu programa. O que a movia e punha em luta eram a coragem, a verdade, a solidariedade, o senso de justiça e o bom humor.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

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