Online e gratuito, documentário “À Luz Delas” entrevista diretoras de fotografia

Um documentário sobre o trabalho das mulheres na direção de fotografia no Brasil agora pode ser visto online e gratuitamente. Dirigido por Luana Farias e Nina Tedesco, À Luz Delas chegou em dezembro à plataforma Videocamp e busca falar a um público amplo sobre a experiência e os desafios de quem fez carreira em uma das áreas que mais impõem obstáculos às mulheres do audiovisual.

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No Brasil e no mundo, os dados sobre a participação feminina na área são impressionantes. De todas as obras audiovisuais (incluindo televisão) que receberam o Certificado de Produto Brasileiro (CPB) da Agência Nacional do Cinema (Ancine) em 2018, apenas 12% tinham apenas mulheres na direção de fotografia.

Em Hollywood, a desigualdade também é incontestável: em 92 anos de Oscar, apenas uma mulher concorreu na categoria de direção de fotografia (e isso aconteceu apenas três anos atrás, em 2018); e mulheres representaram apenas 5% de todos os profissionais que trabalharam como diretores de fotografia nos 250 filmes de maior bilheteria nos Estados Unidos em 2019. Embora baixíssimo, o índice na verdade é o mais alto da série histórica registrada por uma pesquisa anual da San Diego State University.

Kátia Coelho e Luelane Corrêa: pioneiras da direção de fotografia no Brasil – Fotos: Divulgação

À Luz Delas também é fruto de uma pesquisa realizada por Nina Tedesco, motivada por suas próprias experiências como profissional da área e, posteriormente, como professora. Na faculdade, quando já queria trabalhar com fotografia, ela percebeu que “as coisas eram mais difíceis” para ela do que para os colegas homens. No set, ouviu as “piadinhas” e passou pelas experiências de assédio tão frequentemente relatadas pelas mulheres do setor. E mais tarde, ao dar aulas de direção de fotografia na Universidade Federal Fluminense, deparou-se com os problemas do material que era tido como referência: livros escritos por homens, que apenas citavam homens e chegavam a definir formas distintas de iluminar homens e mulheres em cena.

“Senti necessidade de fazer uma crítica a tudo isso”, contou Tedesco, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Ao mesmo tempo, percebi que eu mesma não sabia muito sobre as fotógrafas brasileiras ou estrangeiras, porque não via reportagens destacando o trabalho delas, nem tinha estudado sobre elas na faculdade.”


De todas as obras audiovisuais (incluindo televisão) que receberam o Certificado de Produto Brasileiro (CPB) da Agência Nacional do Cinema (Ancine) em 2018, apenas 12% tinham exclusivamente mulheres na direção de fotografia.


A partir desta inquietação, em 2014 ela começou a pesquisa intitulada “Mulheres atrás das câmeras: inícios de uma trajetória”. Como na época a Ancine ainda não reunia dados sobre gênero e cinema (o que começou a ser feito no ano seguinte, mas perdeu continuidade no governo de Jair Bolsonaro), Tedesco sentiu necessidade de fazer um levantamento quantitativo, consultando cópias e fichas catalográficas para descobrir quais fotógrafas tinham trabalhado nos longas de ficção produzidos no Brasil.

À Luz Delas representou uma nova etapa deste trabalho, iniciada em 2017, na qual Tedesco se uniu à codiretora Luana Farias para ouvir diferentes profissionais sobre as dificuldades que enfrentaram para ingressarem e se manterem na profissão. O projeto inicial previa um filme bem diferente do que pode ser visto no Videocamp: a ideia era fazer um curta-metragem, e não um longa, e ter entrevistas apenas como fonte de pesquisa, sem que aparecessem em cena. “No entanto, quando começamos a filmar achamos muito forte ver aquelas mulheres falando e as entrevistas acabaram se tornando a parte mais substancial do filme”, contou. 

Joyce Prado é uma das diretoras de fotografia entrevistadas em “À Luz Delas”

Com 72 minutos, À Luz Delas encadeia depoimentos de oito fotógrafas: Dani Azul, Heloisa Passos, Jane Malaquias, Joyce Prado, Julia Zakia, Kátia Coelho, Luelane Corrêa e Martina Rupp. A seleção de entrevistadas buscou contrapor pioneiras como Coelho e Passos, que já atuavam nos anos 1980 e 1990, e a geração seguinte, que começou nos anos 2000 e 2010, num convite à reflexão sobre o que mudou ou não mudou.

As cineastas buscaram, também, ter diversidade racial e regional para abordar os obstáculos adicionais enfrentados por mulheres negras e fora do eixo Rio-São Paulo, e incluir diretoras de fotografia que se interessam tanto pelo cinema independente quanto pelo cinema comercial e pela publicidade. Isso porque, assim como outras profissionais do audiovisual, também as fotógrafas encontram menos oportunidades nas produções de maior orçamento. “Há um movimento de desnaturalizar o discurso, muito aceito até pouco tempo atrás, de que as diretoras de fotografia gostam mais de filmes independentes”, disse Tedesco.


“Inicialmente, achava que a questão do assédio seria a que viria com mais força nas entrevistas. No entanto, o assédio se mostrou uma barreira mais transponível e menos importante do que a maternidade. Os relatos dolorosos vieram pela questão da maternidade. A dor que a gente encontrou foi essa.”

Nina Tedesco, codiretora de “À Luz Delas”


A questão central do filme, porém, é a maternidade – o debate sobre se é possível conciliar carreira e filhos, e a que custo. É o tema sobre o qual as entrevistadas mais divergem e ao qual o filme dedica mais tempo, refletindo uma importância que se revelou desde as primeiras filmagens e surpreendeu as próprias cineastas.

“Inicialmente, achava que a questão do assédio seria a que viria com mais força. No entanto, o assédio se mostrou uma barreira mais transponível e menos importante do que a maternidade”, afirmou Tedesco. “Os relatos dolorosos vieram pela questão da maternidade. A dor que a gente encontrou foi essa.”

Martina Rupp grávida no set: maternidade é questão central de “À Luz Delas” – Foto: Divulgação

À Luz Delas também aborda a importância do Coletivo de Mulheres e Pessoas Transgênero do Departamento de Fotografia do Cinema Brasileiro, mais conhecido como DAFB. Entre os vários grupos de mulheres do audiovisual que se organizaram no Brasil a partir de 2015, o DAFB é um dos que atua de forma mais consistente e relevante, com eventos regulares e forte trabalho de formação.

Tedesco acredita que o coletivo tem “importâncias diferentes” para cada geração. “Para quem está começando o DAFB oferece formação, apoio e estímulo, a possibilidade de enviar uma mensagem para o grupo perguntando como resolver um problema na câmera”, explicou. Para as profissionais com mais experiência, o coletivo representou um convite para pensarem sobre suas carreiras e sobre como o ambiente masculino do cinema moldou ou não seu modo de trabalhar. “Há quem tenha adotado uma postura dura e ríspida como modo de sobreviver”, contou Tedesco. “Vemos casos de mudança de postura profissional, de maior abertura para os imprevistos e para mudar de ideia no set.”

A vontade da diretora é que À Luz Delas seja exibido em escolas, universidades e cineclubes para que possa ajudar a manter aquecido o debate sobre gênero e cinema. Um debate que se fortaleceu nos últimos anos, mas que ainda está longe de se traduzir em mudança estrutural. “Não é porque se comenta muito sobre essas questões que dá para ficarmos tranquilos”, alertou Tedesco. “Estamos em um momento no qual há abertura para nos juntarmos, reivindicarmos, denunciarmos, para mudar as coisas ou ao menos mover as coisas na direção em que a gente acredita. Mas ainda não nada conquistado”, acrescentou. “Mesmo que às vezes pareça que as coisas estão consolidadas, a briga tem de continuar a ser feita.”


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

Foto do topo: Heloisa Passos no set em 1998 – Crédito: Divulgação

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