Maíra Oliveira: “A criação é indissociável da atuação política”

A roteirista Maíra Oliveira - Crédito da foto: Thais Ramos

Quem se dedica a conhecer a obra da roteirista Maíra Oliveira logo percebe seu interesse pelo universo jovem e por histórias protagonizadas por mulheres e pessoas negras. Percebe, também, que ela anda ocupada: neste ano, cinco projetos nos quais colaborou chegaram ao streaming, e outro está previsto para os próximos meses.

Na Netflix, a estreia foi a comédia romântica Ricos de Amor 2. No Amazon Prime Video, os longas Verão e Primavera, que fazem parte da coletânea adolescente Um Ano Inesquecível, e Papai É Pop, originalmente lançado nos cinemas. Já no Disney+, Maíra integrou a equipe da série Mila no Multiverso e se prepara para lançar A Magia de Aruna, da qual é criadora e roteirista-chefe.

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Este momento agitado parece combinar com a personalidade da roteirista carioca de 36 anos, que também é educadora, dramaturga, autora de livros infantis e diretora (seu primeiro curta, Encruza, foi realizado em 2019 em parceria com Bruna Andrade, Gleyser Ferreira e Uilton Oliveira).

Maíra ainda tem se envolvido de forma direta em algumas das principais discussões do setor: foi presidente da Associação Brasileira de Autores Roteiristas (ABRA) e, agora, é conselheira para a região sudeste da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (APAN). Para ela, não há como separar política e criação. “Atuar nessas instituições tem me permitido ler melhor os cenários, dialogar com o mercado, entender o que se deseja”, afirmou, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Isso faz parte de uma habilidade que todo roteirista tem de ter, que é repertório, e fortalece e embasa as histórias que a gente conta.”

Na entrevista, Maíra falou também sobre os caminhos que costuma seguir para criar protagonistas jovens e os possíveis impactos da greve dos roteiristas de Hollywood nos contratos de profissionais brasileiros com plataformas de streaming. Ela ainda deu mais detalhes sobre A Magia de Aruna e sobre Carolina, adaptação para o cinema do livro Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), que será escrita por Maíra e Simone Mota, protagonizada por Maria Gal e dirigida por Jeferson De.

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Muitos dos seus trabalhos no audiovisual e na literatura são centrados em jovens. Você tem especial interesse por esse universo ou sua carreira seguiu esse caminho por acaso?

Me formei em pedagogia e atuei na contação de histórias, principalmente de literatura infantojuvenil negra. Sem nunca abandonar a literatura, entendi que, independentemente do meio, a história sempre tem essa responsabilidade educadora. E aí fui buscar onde e com quem conseguia contar histórias que fossem educadoras sem serem moralizantes, que tivessem a possibilidade de criar mudança pelo sensível, pela emoção. Foi de propósito que cheguei às narrativas que dialogam com os jovens, porque eles são mais permeáveis do que nós, adultos, que temos mais preconceitos, barreiras e opiniões fechadas sobre tudo. Adolescentes e crianças me interessam muito não só como público, mas como personagens, porque têm mais direito a errar, e o erro é um dispositivo dramatúrgico fundamental para a transformação e o amadurecimento. Ao mesmo tempo em que essa foi uma busca constante minha, também foi [nesta área] que encontrei mais oportunidades. O público jovem é muito ligado ao audiovisual, e não à toa o mercado tem investido nessas narrativas. Poder aliar meus interesses pessoais e criativos com o que o mercado quer tem sido muito bacana.

Seu processo criativo é diferente quando desenvolve personagens jovens? Há algum lugar de onde costume partir ou elementos que considere especialmente importantes?

Como disse, o erro é um dispositivo fundamental para a dramaturgia, então gosto de começar a criar os personagens pensando em quais decisões erradas eles tomariam. E pensando, também, em quais são seus objetivos – objetivos simples ou menores, não no sentido de inferiores, mas de factíveis e imediatos, por meio dos quais conseguimos acessar grandes questões da humanidade. Começo assim: pensando em objetivos simples e nas formas mais erradas possíveis de se chegar até eles. Uma vez que tenho a personagem, com esses objetivos e erros, como faço para isso ser uma mensagem sobre algo maior? Como isso pode ser uma metáfora sobre não pertencimento, identidade, cultura, luto ou papéis de gênero? É claro que também é preciso ter cuidado para não deixar o personagem bobo, para não ter a perspectiva de que crianças e adolescentes não sabem o que fazer ou o que pensar. Eles têm sua intelectualidade e uma forma própria de ver o mundo, que tem de ser validada como tão importante e complexa quanto a adulta.

Imagem da série “A Magia de Aruna”, criada por Maíra Oliveira – Foto: Divulgação

Um dos seus próximos projetos é A Magia de Aruna, série do Disney+ que também tem uma protagonista jovem. O que você pode contar sobre o programa?

É uma série para o público a partir de 14 anos, que fala sobre entender a diferença como potência. É a história de uma menina, a Mima, interpretada pela Jamilly Mariano, que tem hipersensibilidade às emoções, ou hiperempatia, e consegue sentir o que os outros sentem. Ela tenta esconder isso, porque no contexto em que vive, quem é diferente sofre perseguição. Estamos falando de um universo afetado por uma crise solar, no qual quem tem dinheiro consegue acessar produtos que sanam os efeitos maléficos da falta de sol, e quem não tem, sofre as consequências. Existe também uma comunidade descendente de bruxos que acessou meios ancestrais de sobreviver à falta de sol, mas neste universo é proibido praticar o que é entendido como magia. Quando Mima começa a manifestar a hiperempatia, desperta, sem querer, três bruxas seculares, interpretadas por Cleo, Erika Januza e Giovanna Ewbank. Essas bruxas vão ajudá-la a se entender como alguém que tem hiperempatia e a entender os motivos da crise solar. Então é uma metáfora da diferença como força, como algo a ser explorado para o bem, e não condenado a viver em subalternidade. Criei o argumento da série e fui roteirista-chefe, trabalhando junto com Ana Pacheco, parceira em outros projetos, e também Rodrigo de Vasconcellos, Bruna Trindade, Clara Meirelles e Leandro Mattos. Nos empenhamos muito, ficamos muito felizes com o resultado e estamos ansiosos para a estreia e para ver a receptividade do público.

E o que você pode contar sobre Carolina e a experiência de adaptar O Quarto de Despejo?

Tem sido um desafio gostoso e intrigante, e também uma honra. Carolina é um dos principais nomes da literatura brasileira, e no entanto sabemos as dificuldades que teve não só para ser reconhecida como escritora, mas para sobreviver à fome e à miséria. Mesmo neste contexto, ela conseguiu fabular e criar uma estética da língua. Então é um desafio por conta de todas essas camadas – ela como pessoa, ela como criadora de uma linguagem, ela como escritora. E também porque queremos, a partir do imaginário dela, contribuir para um imaginário que seja contemporâneo. Ou seja, [é preciso pensar em] como trazer tudo isso para um contexto em que ninguém mais quer ver uma mulher negra sofrendo. Minha preocupação, agora, é estética: é a de como adaptar para o audiovisual a forma como ela via o mundo. Nosso desejo é imprimir o conceito de uma mulher plural, que via o mundo numa perspectiva positiva, apesar de crítica. É não perder essa crítica, mas também não perder os olhos de sonho, que acho que foi o que a manteve viva e ativa. 

Em que pé está o projeto?

Estamos trabalhando no desenvolvimento do roteiro e, ao mesmo tempo, na captação. Uma parte [do orçamento] já foi captada para a produção, que deve começar no ano que vem, mas a gente ainda busca [outros recursos] porque queremos que o filme tenha a dimensão da Carolina. Queremos que a grandiosidade da Carolina se reflita no roteiro, na produção, no elenco e na circulação também, porque de nada adianta [realizar a obra se ela] não chegar onde tem de chegar. Participar de festivais nacionais e internacionais é super relevante, mas também é fundamental [que o filme possa] ser distribuído em lugares onde ainda se vivem realidades parecidas com a ela, não só no Brasil como no mundo.

Imagens dos filmes “Um Ano Inesquecível: Verão” e “Um Ano Inesquecível: Primavera”, que têm Maíra Oliveira na equipe de roteiristas – Foto: Divulgação

Você foi presidente da ABRA e é conselheira da APAN. O que te motiva a participar de instituições como essas e atuar no audiovisual também desta forma, e não apenas escrevendo?

Essa é a mentira que contamos a nós mesmos: “eu só queria escrever”. Porque, na verdade, [a atuação política e a escrita] são indissociáveis. Nosso corpo, nossa vida, nossa atuação – tudo é político. Entendo que todo mundo tem apenas 24 horas no dia e que se preservar é fundamental para se manter ativo artisticamente, porque a arte em si já é política. E sei que algumas pessoas que trabalham com a escrita têm dificuldade de estar em um espaço com muitas pessoas, de negociar, de argumentar. Tenho algumas habilidades, como [a capacidade de] dialogar e de realizar mais de uma tarefa ao mesmo tempo, então sempre me lancei em grupos ativistas e políticos com objetivos diversos, incluindo associações [do setor audiovisual]. Não descarto, inclusive, a possibilidade de estar em esferas maiores de representação num futuro não tão distante.

Você quer dizer entrar para a política?

Sim. Não é um objetivo, não acordei e falei “quero ser presidente”, mas enquanto enxergar minhas possibilidades como úteis para a transformação na qual acredito, vou seguir fazendo. Obviamente tenho aprendido que isso requer energia, tempo e saúde. Muitas vezes tenho dito “não”, mas sempre que possível, digo “sim”. A gente vive em batalha com o contexto no qual estamos, e quem tiver forças que lute. Em dado momento outras pessoas virão, e assim o movimento segue acontecendo. Então, na minha perspectiva, realmente a criação é indissociável da atuação política. Ser integrante dessas associações e ter ocupado essas diferentes posições só enriqueceu minha visão criadora. Não apenas no [sentido do] processo criativo, mas [também] pensando em público e em janelas [de exibição], por exemplo. Atuar politicamente tem me permitido ler melhor os cenários, dialogar melhor com o mercado, entender o que se deseja. Faz parte de uma habilidade que todo roteirista e escritor tem de ter, que é repertório, bagagem. Às vezes parece que essas coisas não vão nutrir a gente – “ah, você está perdendo seu tempo sendo conselheira ou presidente dessa associação”. Não. Isso também fortalece e embasa as histórias que a gente conta.

Imagem do filme “Papai É Pop”, que tem Maíra Oliveira na equipe de roteiristas – Foto: Divulgação

Tem se falado bastante no Brasil sobre a greve dos roteiristas de Hollywood, que buscam contratos mais justos com grandes estúdios e plataformas de streaming. No entanto, pouco se fala da situação brasileira, ainda que a pauta prioritária da ABRA seja, segundo diz em seu site, “o fortalecimento da classe de roteiristas diante do contexto dos novos players de mercado e novas formas de consumo e tecnologias, o que vem ocasionando a imposição de cláusulas abusivas, ilegais, desproporcionais em direitos ou que implicam em retrocessos frente às conquistas que os autores conquistaram historicamente no mercado audiovisual”. Fale um pouco sobre a realidade brasileira e a relação profissional dos roteiristas com as plataformas.

Antes da chegada do streaming, nosso audiovisual era basicamente [realizado] por meio de leis de fomento, o que trazia a possibilidade de independência criativa e de detenção dos direitos patrimoniais e autorais de uma obra a partir das produtoras. Com o streaming, entramos em um novo contexto, no qual o consumo audiovisual é mais rápido, sob demanda, e no qual há uma procura cada vez maior por novidades. Isso mudou a indústria do mundo, e não seria diferente no Brasil, que representa um mercado muito grande. As plataformas chegam aqui querendo explorar primeiro a audiência e, em segunda instância, os profissionais. E chegam num contexto já de crise política [a primeira série brasileira da Netflix, 3%, estreou em novembro de 2016], quando muitos mecanismos de incentivo ao audiovisual independente começam a parar ou a serem revistos. Há uma queda nos incentivos e investimentos e no próprio diálogo com a sociedade, que depois [no governo de Jair Bolsonaro] vai chegar a quase zero. Esse cenário de falta de diálogo político e de falta de legislação favorece o crescimento e atuação das plataformas de streaming, que trazem um modelo de negócio internacional para o Brasil. Digo internacional porque o que chega para nós, em termos de contrato e condições, é importado. Dentro do meio, a gente fala que é um contrato de adesão: você tem de assinar do jeito que está.

Entre as cláusulas abusivas das quais a ABRA fala, e das quais outras associações falam, estão a cessão completa de direitos e a necessidade de ser exclusivo daquela plataforma sem que haja garantia de direitos trabalhistas previstos pela nossa Constituição. Estamos falando de uma produtora que empenhou todo o seu trabalho e sua força criativa para desenvolver um obra, e que tem de dar aquela obra para a plataforma. Se a plataforma decidir passar aquilo por dez ou vinte anos, fazer um remake, exibir na Lua – não interessa: a garantia de exploração comercial fica para ela, e toda a cadeia envolvida não recebe nada de residual. Novamente, é adesão: você tem de aceitar ou você não faz. E diante da escassez [de oportunidades], o que você faz? Aceita.

Esta briga por direitos autorais e patrimoniais é longa, mas chega ao limite quando vemos a inteligência artificial ser cotada como possível autora de obras intelectuais, o que obviamente geraria lucro ainda maior para as plataformas e as big techs. Isto agrava a crise e a discussão sobre a quem é reservado o direito de explorar uma obra, e sobre se ainda existem condições justas de negociação. Porque eu posso querer vender minha obra e não estar associada a ela durante a eternidade, mas tenho de ter condições justas de negociação. 

Acho ótimo que a mídia esteja lançando luz a essa discussão, ainda que através de Hollywood. Mas acho fundamental que a gente consiga fazer essa conexão com o que acontece no cenário brasileiro e [pensar sobre] como podemos mudar nossas políticas. É estratégico para o Brasil se colocar para o mundo e já começar a discutir isso, sem esperar que grandes potências como os Estados Unidos se pautem legalmente para aí sim pensarmos em como queremos fazer aqui. Do contrário, teremos o que já se vê na distribuição para sala de cinema, que é a possibilidade de uma mesma obra internacional ocupar 95% das salas. Não queremos que isso aconteça também com as plataformas. Não queremos ter uma ocupação generalizada das obras de fora e o sucateamento da produção nacional em diversas esferas.

Imagens de “Ricos de Amor 2”, que tem Maíra Oliveira na equipe de roteiristas – Foto: Divulgação

Uma eventual resolução positiva da greve de Hollywood pode se refletir no Brasil?

Olha, eu sou otimista. Se as condições forem de fato negociadas favoravelmente nos Estados Unidos, acredito que vamos sentir algum impacto em termos de contrato. É uma crença, apenas, porque pode ser que eles [as plataformas] continuem se aproveitando da escassez de legislação [do Brasil]. Mas posso dar um exemplo de algo que mudou [nos Estados Unidos] e se refletiu aqui: a questão da representatividade. A obrigatoriedade de se ter diversidade de gênero, raça e outras minorias dentro das equipes foi uma diretriz interna das plataformas que impactou a produção brasileira. Sem que isso viesse também por adesão, me questiono se o Brasil teria se aberto para que pessoas como eu estivessem em lugares de poder, fossem chefes de sala ou mesmo roteiristas de sala. É claro que ainda temos muitas coisas para questionar, porque os grandes orçamentos seguem nas mãos de produtoras que têm maioria de homens brancos do Sudeste no quadro societário. Mas este foi um impacto que veio pela política de adesão. E também não porque eles [as plataformas] sejam bonzinhos, mas porque o público está aí, porque ganha-se mais dinheiro quando existe representatividade.

Que conselho você daria para as mulheres que querem trabalhar no audiovisual?

Meu conselho é entender que o audiovisual é feito de panelinhas, e que isso também tem efeito positivo. Precisamos fortalecer nossas redes e nos fortalecer através delas. A sororidade, sobre a qual tanto falamos, tem de ser prática: as mulheres que já estão no audiovisual têm de ser ponte e elo para outras mulheres. Devemos reconhecer isso como potência e não como exclusão. Quais são nossas panelinhas? Como podemos formar grupos de fortalecimento? Busquem seus grupos de fortalecimento, suas redes de apoio de fato, e se apropriem delas. Porque é fácil o contexto patriarcal tirar você e te eleger como topo, [dizendo:] “Olha você aqui sozinha, a única mulher, a única pessoa preta, a única indígena. Você já ganhou, para que continuar discutindo?”. É fácil isso acontecer porque é assim que o sistema se coloca. Mas não podemos nos esquecer de fortalecer a rede, seja quem está no topo da pirâmide, seja quem está buscando esse espaço. E também acho importante entendermos que é nosso direito recorrer a profissionais. Porque a gente pensa: “Se só ganhei tanto dinheiro, será que mereço pagar uma agente? Será que devo ter acesso a uma assessoria de imprensa?”. E às vezes sim, às vezes é um investimento. A gente se boicota dizendo que não é o momento ainda, que isso é só para quando estivermos no momento tal da carreira. E não existe momento tal da carreira. A gente precisa se fortalecer desde o começo.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

Foto do topo: Thais Ramos

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