Uma estreia no longa-metragem ao lado de mais quatro cineastas, todos homens. Luiza Villaça é a única mulher no time de diretores por trás do documentário Pagliacci, que também inclui Chico Gomes, Pedro Moscalcoff, Luiz Villaça e Julio Hey.
“Não dá para negar que foi uma experiência, né?”, brincou Luiza, em entrevista por e-mail ao Mulher no Cinema. “Os montadores e o roteirista também são homens e com todos a convivência foi intensa. Eles são homens incríveis e sensíveis, é verdade, mas a gente sente em variados momentos esse ‘ser a única mulher’, mesmo que em camadas bem inconscientes e sutis. E tudo bem, porque aí nos complementamos como seres humanos.”
O envolvimento da diretora em Pagliacci se deu a convite de seu tio, Luiz Villaça, que há anos pensava em fazer um documentário que refletisse sobre o que é ser palhaço e contasse a história da companhia La Mínima, formada por Luciana Lima, Fernando Sampaio e Domingos Montagner. Pensada em conjunto com o grupo, a ideia foi abalada pela morte de Montagner, que sofreu um afogamento no Rio São Francisco em 2016. Fernando e Luciana, que era casada com o ator, estavam decididos a realizar todos os projetos que ele deixara em aberto, inclusive o documentário.
Villaça, então, decidiu chamar jovens diretores para entrar no projeto com ele. “Os dois eram amigos e parceiros criativos, e é difícil mergulhar na história de alguém tão querido logo após [esse alguém ter morrido]”, explicou Luiza. “O Luiz encabeçou o projeto, lutou para que acontecesse da melhor maneira sempre, mas contou com a gente ali na linha de frente.”
A convivência com Luiz Villaça e sua mulher, a atriz Denise Fraga, fez com que o cinema estivesse presente desde cedo na vida de Luiza. Foi o tio quem lhe deu a primeira oportunidade de estar no set e quem a contratou para os primeiros trabalhos como assistente de direção. Depois de assumir a função também em produções para publicidade e televisão, ela se mudou para Nova York para estudar roteiro. Os planos para o futuro incluem um novo documentário e uma parceria com a produtora Cine, na qual atuará como diretora de cena. Leia os principais trechos da entrevista:
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Como se deu o seu envolvimento em Pagliacci?
O Luiz [Villaça] contou sobre o projeto, a ideia que teve junto com o Fernando [Sampaio] e o Domingos [Montagner], as conversas que haviam tido. Naquele momento, o Fernando e a Luciana Lima, mulher do Domingos e produtora do La Mínima, tinham decidido ir até o fim com todos os projetos sonhados por ele. Era uma hora de muita força e amor. O Luiz estava decidido a fazer esse filme acontecer, mas precisou reorganizar o “como”. Então, chamou Julio Hey, Chico Gomes, Pedro Moscalcoff e eu para codirigirmos com ele e montarmos esse time que estaria no dia a dia, nas imersões e investigações do documentário. Luiz e Domingos eram grandes amigos e parceiros criativos, e é difícil mergulhar na história de alguém tão querido logo após [esse alguém ter morrido]. O Luiz encabeçou o projeto, lutou para que acontecesse da melhor maneira sempre, mas contou com a gente ali na linha de frente, vivendo aquilo profundamente.
Seu tio foi uma figura determinante na escolha profissional? De que forma?
Muito, de maneira direta e indireta. O exemplo dele foi muito encorajador, e também acho que influenciou meus pais, que talvez me dessem ainda mais trabalho com a preocupação deles [risos] Ele me deu minha primeira grande chance: logo que entrei na faculdade, meu tio ia começar a rodar um longa [O Contador de Histórias, lançado em 2009] e sugeriu que eu trancasse o curso, fosse trabalhar no set e depois começasse a faculdade. Isso foi genial, porque me permitiu entender o cinema na prática, e depois ir estudar já com um pouco mais de clareza. A gente sabe muito pouco de cinema como ofício antes de entrar nesse mundo. O cinema é vivência, é você entender onde, em que parte desse sonho de contar uma história você se encaixa. É uma grande experiência de vida fazer um filme. Dois anos depois, quando ainda estava na faculdade, ele me convidou para ser assistente de direção dele, topou me criar do zero. Foi um privilégio imenso, a melhor escola que eu poderia ter. E bem rígida também! Perdi a conta de quantas vezes chorei escondida em banheiro de set de filmagem ou fui pra casa me sentindo um horror, destruída. Tem os dois lados, né? Quanto mais o mestre gosta de você e quer te ensinar a ser o melhor que puder, maior também a cobrança. Ele não me deu moleza, pelo contrário. Mas hoje sou muito grata.
Como foi trabalhar em um projeto que tem cinco diretores?
Nunca tive dúvidas de que daria certo, mas preciso dizer que foi surpreendentemente maravilhoso. O cinema é uma das artes mais coletivas que existe, é um encontro de talentos, uma estrutura que envolve tanta gente, cabeças e corações. Conseguimos trazer essa riqueza do coletivo para dentro do departamento da direção, muitas vezes tão individual. Foi um grande exercício de expandir o olhar, ouvir, somar. Tenho um baita orgulho de nós cinco! Vi cinco diretores agindo com muita paixão e pouco ego, com cooperação e a mesma dedicação entre todos.
Houve alguma divisão de tarefas?
A gente foi se dividindo conforme a necessidade, sem muita divisão estabelecida, com exceção do Pedro Moscalcoff como fotógrafo. Ninguém estava trabalhando exclusivamente no documentário, foi um projeto de mais de um ano de captação e que aconteceu porque todo mundo acreditava muito. A gente começou sem grana nenhuma e sem poder parar com os outros trabalhos. Muitas vezes era um esforço encaixar nas agendas, nem todo mundo podia estar em determinadas diárias. Mas a gente se cobriu, sempre. Foi bonito, não tinha tempo ruim. Hoje eu posso, amanhã você, e no final o sonho não para.
Como foi ser a única mulher neste time de cinco diretores?
Ah, não dá pra negar que é uma experiência, né? [risos] Os montadores e o roteirista também são homens e com todos a convivência foi intensa. Eles são homens incríveis e sensíveis, é verdade, mas a gente sente em variados momentos esse “ser a única mulher”, mesmo que em camadas bem inconscientes e sutis. E tudo bem, porque aí nos complementamos como seres humanos. Acho que dá para a gente ter uma relação bem construtiva, na união, na soma. Nós, mulheres, temos poderes bem fortes que são muito nossos. Acredito que a gente traz uma coisa bonita, que é bem própria e gera uma troca legal. A competência e o talento não têm nenhuma relação com o sexo – meus parceiros nesse filme são talentosos como artistas e ponto. Mas isso aqui é uma atividade muito humana e cada um coloca muito de quem é. Confio muito em ganhar o meu espaço e o respeito por meio das minhas forças autênticas. Desde que entrei neste mercado, tateio este lugar, e acho que tenho conseguido. É muito legal quando a gente encontra essa segurança em ser exatamente quem a gente é.
O filme é muito marcado pela morte do Domingos Montagner. Foi desafiador lidar com este tema?
A ideia foi elaborada com o Domingos, mas o filme só começou a acontecer depois da morte dele. Sempre tivemos muito claro que estávamos ali realizando um sonho sonhado com ele, de contar a história da companhia e de falar do circo, desse ser apaixonante que é o palhaço. Não é em nenhum minuto um filme póstumo. É um filme nosso e dele também, e a morte entra como parte da história que a gente quis contar. Nosso único desafio na edição era deixar isso tão claro para o público quanto era pra nós, e acredito que conseguimos. Com delicadeza e sinceridade fica fácil traduzir nossas intenções.
Sendo seu primeiro longa como diretora, qual a principal lição que você aprendeu durante o processo de Pagliacci?
Fazer um filme é se entregar completamente. Física e emocionalmente. É seu tempo que vai pra lá, sua cabeça que está o tempo todo pensando naquela história, numa solução melhor, no próximo passo. No caso do documentário, tem que ir com todo o seu coração e sua percepção, tem que ser humilde e ser espectador pra entender o universo que está investigando. E no fim você vê que fica tudo impresso ali! Isso chega para o público, sabe? O que as pessoas sentem, comentam, veem. O amor e a entrega mudam a comunicação. Na pré-estreia ouvi gente da comunidade do circo [dizer] que a alma do que eles fazem estava no filme e que estavam gratos por aquele retrato. Existe emoção maior? Recompensa mais alegre? A lição foi fortalecer a crença [de que] a profissão que escolhi é uma que precisa da sua entrega como ser humano, sem economias.
Que conselho você daria para as mulheres que querem ser diretoras?
A primeira coisa que eu diria é “vai fundo”, no sentido mais amplo que você puder entender: estude pra caramba, pesquise, se dedique, tente mesmo, busque trabalhar perto dos grandes, tenha um olhar de respeito pelas estradas já percorridas e agarre toda oportunidade que tiver quando um desses de longa estrada e generosos quiser te ensinar ou falar. Fique firme quando for difícil, escreva, alimente suas ideias, acredite nelas, confie na sua voz e no seu olhar, banque a sua imagem. Diria para aproveitar da nossa intuição, sensibilidade. Confiar que esse é um superpoder. E de jeito nenhum deixar alguém te convencer de [que existe] uma fragilidade feminina. Isso não existe. Existe é uma baita de uma energia poderosa nesse nosso sexo e o mundo está invariavelmente fadado a ter que entender isso. Muitos já entendem.