Laura Samani fala sobre “O Pequeno Corpo”: “É um conto de fadas sombrio”

Um “conto de fadas sombrio” é como a diretora italiana Laura Samani define seu primeiro longa-metragem, O Pequeno Corpo, que foi exibido no Festival de Cannes e está em cartaz nos cinemas brasileiros. Ganhador do troféu de melhor estreia no David de Donatello, a premiação cinematográfica mais importante da Itália, o filme mistura mito e realidade para narrar a épica jornada de uma jovem mulher para salvar a alma da filha.

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A trama ficcional partiu de uma pesquisa histórica que Samani começou a fazer em 2016, pouco depois de lançar seu primeiro curta, La Santa che Dorme. Na ocasião, ela descobriu algo que nunca soube sobre a região de Friuli Venezia-Giulia, onde nasceu e cresceu: o local abrigara um santuário católico onde, até o final do século 19, acreditava-se que bebês natimortos eram trazidos de volta à vida por alguns segundos. Após darem um breve respiro, as crianças poderiam ser batizadas. Do contrário, suas almas ficavam condenadas ao Limbo. 

Samani ficou fascinada pela história e logo descobriu a existência de vários outros santuários similares nos Alpes. Sua pesquisa mostrou que geralmente eram os homens quem levavam os corpos dos bebês até estes locais, enquanto as mães se recuperavam do parto. Mas e se uma mulher encarasse tal missão?

Esta indagação norteou o roteiro, escrito por Samani em parceria com Elisa Dondi e Marco Borromei, que também foram seus colaboradores em La Santa che Dorme. A trama de O Pequeno Corpo é ambientada em 1901 e centrada em Agata (a ótima Celeste Cescutti), moradora de uma pequena ilha no nordeste da Itália. Quando sua primeira filha nasce morta e o padre se recusa a batizá-la, ela tenta conseguir apoio do marido para levar o corpo da menina até o santuário milagroso. Ele se recusa, e Agata parte sozinha numa viagem perigosa, durante a qual encontrará Lynx (Ondina Quadri), figura misteriosa que promete lhe servir de guia.

Em busca de autenticidade, Samani privilegiou locações reais e escalou principalmente pessoas da própria região de Friuli Venezia-Giulia. A maior parte do elenco, inclusive a protagonista, nunca tinha atuado antes, e todos os diálogos são falados nos dialetos Veneto e Friuli.

Leia, abaixo, a entrevista que Laura Samani concedeu ao Mulher no Cinema.

*** Atenção: a conversa revela detalhes sobre acontecimentos importantes da trama. ***

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O Pequeno Corpo é um filme comovente e contido: não há grandes arroubos de emoção, cenas de choro e desespero ou conversas sobre sentimentos. Gostaria que você falasse um pouco sobre como trabalhou a emoção para achar esse equilíbrio – ou seja, para conseguir comover o espectador contando uma história na qual as personagens não se expressam abertamente.

Sou uma pessoa muito emocional e calorosa, que geralmente compartilha o que está pensando e sentindo, mas nem sempre isso se conecta ao que me interessa no cinema. Nesse caso, acho que aconteceu por acaso, e especialmente por causa do encontro com Celeste. Quando estávamos escrevendo o roteiro, Agata era uma personagem intensa e ansiosa. O teste de Celeste foi como um tapa na cara. Ela tem muita dignidade, não compartilha muito logo de início, é quieta e cuidadosa com seus pensamentos e sentimentos. E ela é da região onde a história se passa. Encontrá-la me fez lembrar de como dizemos que, nesta região, as pessoas rezam em silêncio. Claro que há a oração na igreja, mas se compararmos a outras partes da Itália, especialmente o Sul, onde vemos as pessoas chorando nos enterros…não temos isso aqui. Então o comportamento de Celeste era coerente [ao da região]. E acho que o comportamento natural dela, que se colocou na personagem, deixa bastante espaço para o espectador projetar seus sentimentos.

Cena do filme “O Pequeno Corpo”, dirigido por Laura Samani – Foto: Divulgação

Celeste nunca tinha trabalhado no cinema, enquanto Ondina é uma atriz conhecida. Como foi trabalhar com protagonistas que tinham níveis de experiência tão diferentes?

Foi algo sobre o qual pensei bastante. Ondina me foi sugerida por um amigo que temos em comum. Desde o momento em que eu estava escrevendo o roteiro ele já tinha certeza de que ela era a pessoa certa, mas eu não estava nada interessada. Primeiro, por ela não ser da região [na qual o filme se passa] e depois por ter experiência como atriz. Como Celeste já estava escalada, tinha medo de que essa diferença impedisse o filme de funcionar. Mas eu estava errada, de novo [risos], porque ela realmente era perfeita para o papel. Ondina é uma pessoa muito generosa e inteligente, que se conecta muito facilmente às pessoas. Se Celeste é um pouco fria, Ondina é super calorosa, então elas formaram uma combinação perfeita e se conectaram facilmente.

Como foi seu trabalho com elas?

Eu não tinha um método, até porque era meu primeiro longa. No entanto, sabia que queria estar cercada de pessoas que se entregassem ao projeto e criar momentos que pudessem ajudá-las. O primeiro encontro de Celeste e Ondina não foi em um bar, mas, sim, na mesma floresta em que ocorre o primeiro encontro das personagens do filme. Levei Celeste a um lado da floresta enquanto a assistente de direção levou Ondina ao lado oposto, e as duas foram caminhando em direção à outra até se encontrarem. Eu não estava lá, então não sei o que elas disseram, mas foi um momento entre elas. Nós não pegamos o roteiro logo de cara – nós chegamos até o roteiro. Trabalhamos muito nas locações reais e em meio à natureza, e elas também tinham um preparador de elenco dedicado especialmente ao corpo e à postura. Já os dialetos elas aprenderam não com professores oficiais, mas sim, com pessoas que já estavam envolvidas no projeto. Ondina se deu bem com a atriz escolhida para interpretar uma bandida, então falamos: “Ok, você vai falar o dialeto dela”. Já Celeste aprendeu o dialeto de seus professores de remo: eles traduziram as falas para ela, que ia aprendendo enquanto remava.

Cena do filme “O Pequeno Corpo”, dirigido por Laura Samani – Foto: Divulgação

O filme se passa em 1901, mas a personagem de Lynx dialoga com discussões contemporâneas sobre fluidez de gênero. Fale um pouco sobre a personagem e o motivo de criá-la dessa forma.

É a personagem que mais se comunica conosco. Agata está presa ao mito, Lynx é a personagem moderna. Inicialmente, a ideia era que Agata fizesse a viagem sozinha, mas sentimos a necessidade de que ela estivesse acompanhada de alguém que a completasse de alguma forma, seguindo aquela arquitetura fácil do buddy movie ou do road movie. Aos poucos, fomos acrescentando camadas e chegamos a essa personagem. Queríamos que ela representasse um arquétipo masculino, para contrabalançar Agata, que é o arquétipo feminino, o arquétipo da mãe. Mas com a pesquisa história, percebi que ela tinha de ser mulher. E aí entrou a pesquisa histórica: naquela época, se você quisesse viver de acordo com suas próprias regras, ou de acordo com regra nenhuma, você tinha de ser homem. De certa forma isso continua sendo verdade, mas certamente naquele momento a única chance [para uma mulher] era fingir ser homem. Ao fazer isso, Lynx esconde sua real identidade. E aí ele, ela ou elu sente-se terrivelmente só. É claro que vemos a personagem como fluida porque estamos em 2023 – e começamos a escrever o roteiro em 2017, que não foi um ano qualquer, se pensarmos, por exemplo, no movimento MeToo. Então diria que [desenvolver a personagem desta forma] não foi algo super consciente, mas uma necessidade que foi desabrochando de alguma forma.

O filme tem visual realista, mas também um certo clima que remete aos contos de fadas. Como colaborou com a equipe de fotografia, e de arte em geral, para criar essa estética?

Sempre falava [do filme] como “conto de fadas cru” ou “conto de fadas sombrio”, pois queria que a história pudesse ser facilmente contada também a uma criança. Não tenho filhos, então talvez esteja errada, mas acredito estar havendo uma mudança de comportamento no sentido de proteger muito as crianças. Sou de uma geração que ouvia histórias assustadoras antes de dormir, como as dos irmãos Grimm, por exemplo, e está tudo bem comigo agora que sou adulta [risos]. Essas histórias nos assustam, mas treinam nossa imaginação e nos preparam para o mundo, nos fazem experimentar a adrenalina, despertam reações no corpo, no cérebro, no coração. Foi esse tipo de coisa que compartilhei com todos os departamentos da equipe. Por um lado, tínhamos de estar ancorados na realidade e em coisas práticas: precisávamos sentir a passagem do tempo e a dificuldade de andar naquele terreno, já que a Agata vem da água e nunca tinha visto neve na vida. Ao mesmo tempo, estávamos falando de vida após a morte, que é algo muito subjetivo. A maior dificuldade foi criar o imaginário do Limbo, mostrado na cenas embaixo d’água. Afinal, quem já viu o Limbo? Não sei se no Limbo tem chamas, se tem nuvens, se tem outra coisa. Queríamos criar nosso próprio Limbo, então voltamos a algo super físico, que é o líquido amniótico [fluido que envolve o bebê durante a gravidez]. Esse foi o tipo de discussão que tivemos.

Cena do filme “O Pequeno Corpo”, dirigido por Laura Samani – Foto: Divulgação

Me surpreendi ao saber que o filme foi rodado em ordem cronológica, primeiro porque quase nunca é o caso, mas principalmente porque grande parte das cenas se passam ao ar livre e em condições climáticas desafiadoras, como a neve que você citou. Por que você quis filmar em ordem cronológica e quais foram as condições de filmagem?

Nenhuma produtora em sã consciência permitiria uma filmagem em ordem cronológica – só a minha. Por sorte, esta era uma das raras ocasiões em que filmar desta forma era conveniente, porque estávamos fazendo a mesma jornada das personagens e excluindo [locações] progressivamente, já que Agata não volta para casa. O grande problema foi a pandemia. Começamos a filmar uma semana antes de a Itália entrar em lockdown, ou seja, rodamos por uma semana e ficamos parados por oito meses. No que diz respeito às condições climáticas, tudo é real. Não tínhamos dinheiro para alugar máquinas de chuva e neve, então quando está chovendo [no filme], é porque estava chovendo [de verdade], e quando está nevando, é porque estava nevando.

Que conselho você daria às mulheres que querem trabalhar no cinema?

Diria para se cercarem de pessoas nas quais confiam e que não voltam à questão de gênero toda vez que querem explicar alguma coisa. Podemos falar sobre gênero quando se trata de empoderamento mútuo, entre irmãs, mas não queremos mansplaining [quando um homem explica algo a uma mulher de forma condescendente e supondo que ela não entende do assunto]. Por isso, é importante procurar as pessoas que nos ajudam a crescer, e não as que nos colocam para baixo, que nos chamam de frágeis ou ficam querendo ajudar sem que tenhamos pedido ajuda. Também diria para tentarem se lembrar de que é um mundo difícil, mas não estamos sozinhas e nossas vozes são importantes. E que há sempre três elementos: coragem, sorte e persistência.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

Foto do topo: Daniela Baldasarre/Divulgação

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