Dulmaa Purev-Ochir: “Não existe imagem coletiva da Mongólia moderna”

Lkhagvadulam Purev-Ochir, também conhecida como Dulmaa Purev-Ochir, é uma jovem diretora e roteirista da Mongólia que tem chamado a atenção nos festivais internacionais. Seu primeiro curta, Mountain Cat (2020), foi exibido em Cannes; o segundo, Snow in September (2022), foi premiado em Veneza e Toronto; e o longa-metragem de estreia, City of Wind (2024), recebeu o troféu de melhor ator na mostra Horizonte do festival italiano e foi escolhido para representar a Mongólia no Oscar.

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Nascida em 1989 na capital mongol, Ulan Bator, Dulmaa vive em Portugal há oito anos, desde que se mudou para Lisboa para fazer mestrado em roteiro na Universidade Lusófona. Hoje, se dedica ao doutorado e leciona como professora convidada nesta mesma instituição.

City of Wind é uma coprodução entre seis países, incluindo Portugal, onde o filme estreou nos cinemas em novembro com o título de O Jovem Xamã (no Brasil, ainda não há previsão de estreia). A história acompanha um adolescente (interpretado pelo estreante Tergel Bold-Erdene) que tenta conciliar a rotina de estudante do ensino médio com a responsabilidade de xamã, que se comunica com o mundo espiritual.

“Queria mostrar a vida desse jovem por meio de cenas e encontros cotidianos que compõem um mosaico da vida mongol moderna”, afirmou a cineasta, em entrevista ao Mulher no Cinema

Dulmaa escolheu sua cidade natal como cenário, mas colocou o foco na região das yurt, como são chamadas as cabanas circulares que eram tradicionalmente utilizada por pastores mongóis nômades. “No cinema mongol, geralmente os distritos de yurt são retratados como pobres, atrasados e subdesenvolvidos”, disse a cineasta. “Com este filme, queria que o universo central fosse o distrito de yurt, e o centro da cidade fosse a margem.”

Na entrevista ao Mulher no Cinema, Dulmaa falou sobre as inspirações por trás de City of Wind, as cineastas que admira e a importância das coproduções para que os filmes de seu país circulem pelo mundo. “Quando comecei a fazer meu longa, percebi que não havia uma imagem coletiva da Mongólia moderna”, afirmou. “As pessoas pensam na Mongólia em relação à história ou em relação aos cavalos e à natureza. A identidade do povo mongol moderno, o som da língua mongol e o cenário da cidade de Ulan Bator estavam ausentes no imaginário coletivo do mundo. E eu queria preencher essa lacuna.”

Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista com a Dulmaa Ochir:

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Em City of Wind, você usa a história de um jovem xamã para retratar a juventude mongol de hoje com certo otimismo. São jovens que estão sobrecarregados – alguns preocupados em ganhar dinheiro, outros querendo deixar o lugar onde vivem – mas, ao mesmo tempo, têm a vida inteira pela frente. Qual foi o maior desafio na criação desta narrativa?

Queria dar ao filme uma sensação de final aberto, mas também a de que, de alguma forma, a vida seguirá em frente com força e comunidade. Talvez os personagens não estejam onde o público queria que eles estivessem no final da história, mas espero que haja uma sensação de que, como você disse, eles têm a vida inteira pela frente. O que pode ser mais otimista do que isso?

Ao escrever o roteiro, o desafio para mim foi não enterrar os personagens em drama e conflito. Em um coming of age [termo usado para filmes que retratam um processo de amadurecimento da personagem], a narrativa esperada é a de que uma criança passe por camadas de conflito – com os pais, a sociedade, seu próprio corpo, seu interesse amoroso etc – para nascer como um adulto. No entanto, como o tema do meu filme era a tradição no mundo moderno, não queria que a narrativa passasse por um conflito direto. Queria que a tradição e a modernidade coexistissem de maneiras complexas, mas mundanas. Queria que houvesse tensão em todos os aspectos da vida do protagonista, mas que o filme não fosse sobre fazer uma escolha dramática entre amor e xamanismo. Queria mostrar a vida desse jovem por meio de cenas e encontros cotidianos que, em última análise, compõem um mosaico da vida mongol moderna.

Imagem do filme “City of Wind”, de Lkhagvadulam Purev-Ochir

Você filma a capital da Mongólia, Ulan Bator, de uma forma muito bonita e contemplativa. Para você, quão importante foi mostrar as yurts em relação ao centro da cidade e os diferentes desejos dos jovens em ambos os lugares?

Para mim, era importante posicionar o universo central do filme nos distritos de yurt, que são as margens em expansão de Ulan Bator. Nos últimos trinta anos, mais e mais nômades abandonaram o campo para dar oportunidades modernas aos seus filhos na cidade. Existem outras razões para sua migração, como as mudanças climáticas e a destruição de pastagens, que são muito importantes para os nômades que pastoreiam animais. Então, no cinema mongol, geralmente o distrito de yurt é retratado como pobre, atrasado e subdesenvolvido.

Com este filme, queria que o universo central fosse o distrito de yurt, e que o centro da cidade fosse a margem. O centro da cidade é o lugar para onde o protagonista deve fazer a jornada, saindo de sua zona de conforto e de sua vida cotidiana. Com isso, eu esperava unir a cidade e diminuir a divisão entre a crescente “diferença de classe” entre esses distritos. Queria retratar pessoas vivendo com dignidade e pessoas que não perderam sua humanidade vivendo no distrito de yurt.

Em relação à espiritualidade retratada no filme, você acredita que a juventude mongol se divide entre aqueles que buscam o xamã e aqueles que, como a personagem Maralaa (interpretada por Nomin-Erdene Ariunbyamba), veem o xamã como um vigarista?

Acho que na Mongólia moderna há de tudo. A Mongólia é uma sociedade extremamente progressista e de mente aberta, o que leva a todos os tipos de influências. Só na minha família, por exemplo, minha mãe e avó são budistas/xamanistas e meu pai é ateu. Meus pais falam russo e minhas irmãs e eu falamos inglês. Muitos jovens agora estão interessados na língua coreana devido à influência do K-pop e do K-drama. O que estou tentando dizer é que não há uma divisão simples na juventude mongol em relação à espiritualidade. Há xamãs adolescentes na Mongólia – como o protagonista, Ze; há aqueles que acreditam que xamãs são vigaristas – como Maralaa; e há aqueles que nunca foram a um xamã e nunca pensam sobre xamanismo – como Tergel, o ator que interpretou Ze. Tergel nunca tinha ido a um xamã antes de fazer este filme. Já eu sou uma jovem mongol que vai a xamãs e acredita em xamanismo, pensa sobre xamanismo e faz filmes sobre xamanismo. O filme é baseado na minha própria experiência indo a um xamã. Então, na Mongólia moderna, há todos os tipos de relacionamentos com o xamanismo. Não é uma divisão muito simples.

Você disse em algumas entrevistas que sente falta de filmes que melhor representem a Mongólia e sua cultura. O que poderia nos contar sobre a indústria cinematográfica do país? Como funcionam as escolas de cinema?

Filmes sobre a Mongólia geralmente são sobre nômades e o campo, cheios de imagens de cavalos e águias. Quando quis fazer este filme e comecei a falar sobre o roteiro, percebi que os estrangeiros não tinham ideia de como era a cidade de Ulan Bator. Percebi que não há uma imagem coletiva da Mongólia moderna. As pessoas pensam na Mongólia em relação à história – o império mongol e Gengis Khan – ou em relação aos cavalos e à natureza. A identidade do povo mongol moderno, o som da língua mongol e o cenário da cidade de Ulan Bator estavam ausentes no imaginário coletivo do mundo. E eu queria preencher essa lacuna com meu filme.

A indústria cinematográfica na Mongólia é local e próspera, produzindo cerca de 30 filmes por ano. Ela morreu completamente após a queda do comunismo, porque o aparato de financiamento estatal acabou. Mas nos últimos 35 anos, os cineastas construíram uma indústria do zero. Estes filmes são feitos com orçamentos muito baixos e para o público local. Os filmes mongóis estão apenas começando a viajar para festivais e a formar seu público internacional, graças a mais oportunidades de coprodução com o resto do mundo.

Imagem do filme “City of Wind”, de Lkhagvadulam Purev-Ochir

Em termos de igualdade de gênero, há desafios na indústria cinematográfica da Mongólia? Como é ser uma mulher mongol e fazer filmes?

Na Mongólia, as equipes de filmagem são compostas principalmente por homens, e as de produção, principalmente por mulheres. Acho que isso ocorre porque, tradicionalmente falando, a vida no set de filmagem é fisicamente árdua e o equipamento é pesado e, portanto, visto como destinado aos homens. E também porque as mulheres, além de exercerem seus empregos, estão cuidando de seus filhos e casas e, portanto, cargos gerenciais são tidos como mais adequados a elas. Há, no entanto, disparidade de gênero em cargos de direção. A história do cinema mongol é composta principalmente por diretores homens. Mas, nos últimos anos, isso mudou. Mais e mais diretoras estão se destacando na Mongólia e até mesmo sendo reconhecidas internacionalmente. Este é um ótimo sinal do que está por vir.

Você também leciona na Universidade Lusófona. Como tem sido esta experiência? 

Ensinar é uma atividade que me mantém alerta. Como diretora, não consigo exercitar muito meus músculos porque os projetos levam anos para serem financiados. No intervalo entre os projetos, sinto que ensinar é a maneira perfeita de pensar e falar continuamente sobre cinema. Não consigo me imaginar fazendo outra coisa na minha vida no momento.

Você está trabalhando em outros projetos como diretora?

Atualmente, estou desenvolvendo vários projetos: um em Portugal, um nos Estados Unidos e um na Mongólia. Espero que um desses filmes seja feito nos próximos anos!

Quais cineastas mulheres você admira ou qual foi a última coisa que você viu feita por uma mulher que realmente te emocionou?

Admiro muito a Lynne Ramsay. Vejo tudo o que ela faz porque ela está constantemente se reinventando. Ela é tão aventureira em suas escolhas, e ainda assim sempre sinto um fio condutor poético e lírico que liga seus filmes. Acho que é isso que a torna uma autora. Só queria que ela fizesse mais filmes! Sinto o mesmo sobre a Valeska Grisebach: queria que fizesse mais filmes, porque tudo o que ela faz mexe comigo. E a última coisa que vi de uma mulher foi Expats, série da HBO dirigida por Lulu Wang. Simplesmente maravilhosa.

Que conselho você daria às mulheres que querem trabalhar com audiovisual?

Tenha tudo. Faça o bolo e coma-o também. Seja cineasta e também seja mãe e tenha uma família grande e linda se desejar! Será muito, muito difícil conciliar família e carreira, mas acredito que não devemos ter de escolher entre as duas coisas. Estou determinada a ter tudo.


Letícia Mendes é jornalista, pós-graduada em estudos sobre as mulheres na Universidade Nova de Lisboa e co-criadora da agenda Elas no Cinema em Lisboa

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