Imagine se você dirigisse um documentário sobre a sua própria família, incluindo as brigas durante o jantar, os silêncios constrangedores e uma série de entrevistas nas quais você pedisse que seus irmãos e seus pais confrontassem histórias do passado. Agora imagine que esse passado inclua não apenas pequenos conflitos do dia a dia, mas traumáticos episódios de violência.
Foi o que fez a diretora italiana Beatrice Segolini em seu primeiro longa-metragem, As Boas Intenções, documentário que integra a Competição Novos Diretores da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo [veja horários de exibição abaixo]. Por causa do comportamento violento do pai, aos 17 anos ela deixou a casa da família. Sete anos depois, decidiu voltar, agora acompanhada de uma equipe de cinema que incluía o codiretor Maximilian Schlehuber. A proposta deles: fazer um documentário sobre a vida de Beatrice, seu dois irmãos mais velhos e seus pais, agora divorciados.
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A ideia surgiu durante pesquisa da dupla para outro trabalho. “Quando contei sobre a minha família para o Max, percebi que ele, um observador externo, tinha entendido que havia algo errado”, contou Segolini, em entrevista ao Mulher no Cinema durante visita a São Paulo. “Isso fez com que eu sentisse que tudo aquilo era mesmo real, e que seria possível retratar esta história e mostrá-la para o resto do mundo, pois são questões comuns.”
De fato, As Boas Intenções é ao mesmo tempo um filme pessoal e universal, um retrato sincero dos efeitos da violência doméstica e dos complexos relacionamentos de uma família como outra qualquer.
Leia a entrevista com os diretores:
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Qual foi a reação da sua família quando propôs a ideia do filme?
Beatrice Segolini: A história da minha família, como muitas outras, é complexa, e há muitas camadas de relacionamento que pensamos em investigar. No começo, sabíamos que a história do meu pai teria um papel importante, mas outros aspectos também teriam bastante espaço, como a morte da minha irmã e o efeito que isso teve nos meus pais, o isolamento em que vivíamos e o papel do basquete [os irmão da diretora competiam no esporte], que era nossa única ferramenta de comunicação. Então no começo foi: “Oi, estou de volta após sete anos, esse é o Max e vamos fazer um filme sobre nossa família e nosso passado.” A princípio todo mundo ficou super feliz. Primeiro porque eu estava de volta e também porque finalmente todo mundo poderia se expressar. Eles também ficaram muito felizes em ter o Max ali, pois era alguém de fora. Estavam entusiasmados, queriam se abrir. O breaking point foi quando falei sobre meu pai.
Então no começo você disse que seria um filme sobre a família, de forma geral.
Beatrice: Sim. Claro que eles sabiam que haveria algo sobre meu pai, e esperavam por isso. Mas no momento em que falei sobre o assunto, a magia se quebrou. De repente, foi como se tivéssemos voltado para quando fui embora, quando tinha 17 anos e era a pessoa má que ficava apontando para o problema. Neste momento eles perderam toda a confiança em mim e começaram a criticar a ideia do filme, a dizer que não havia nada a se discutir. E embora soubéssemos que estávamos certos, foi impossível não acreditar um pouco no que diziam.
Maximilian Schlehuber: Começamos a nos perguntar se era correto fazer o filme. Era a vida deles, a vida privada deles. [Pensamos:] “Será que é voyeurismo? O que estamos fazendo?” Mas seguimos em frente e logo recuperamos a confiança de que estávamos fazendo um documentário sobre algo maior do que esta família.
Neste sete anos longe você manteve contato com sua família ou cortou relações completamente?
Beatrice: Ainda falava com eles. De certa forma, sair de casa foi o que me salvou. Estudei sociologia, filosofia, me interessei por questões de gênero e violência e pude traçar meu próprio caminho. Mas só eu fui embora – eles ficaram no mesmo lugar. Meu pai deixou de viver com eles, a violência física acabou, mas todo o resto era igual. Por estar em outro país e ter esse distanciamento, pude começar a conversar com cada um. Nos três, quatro anos antes da filmagem iniciei essas conexões, adicionei meu irmão no Facebook…quando vivíamos juntos, não havia afeto ou carinho: éramos inimigos um do outro. Não lembro de minha mãe me abraçar quando era pequena, mas quando voltei pude abraçá-la e dormir com ela.
Depois de ter filmado, editado e exibido o filme, como avalia o resultado desse trabalho? Você sente que está num lugar melhor do que estava quando começou o projeto?
Beatrice: É muito difícil dizer. De certa forma, sim. Sinto que fizemos algo bom para a minha família. Tenho certeza disso. E acho que contribuímos com nossa pequena gota no mar: tentamos fazer algo bom para nossa geração, nossos relacionamentos e nossa comunicação como sociedade. Me sinto muito grata pelas pessoas que, depois da projeção, vêm me dizer que reconheceram a si mesmas. Acho que isso é muito importante. Do ponto de vista pessoal, é claro que foi muito difícil. Acho que estou no processo de me curar deste filme. Preciso ter paciência e a certeza de que fizemos a coisa certa.
E qual foi a reação da sua família após assistir o documentário?
Beatrice: Primeiro mostramos o filme para minha mãe e meu irmão mais velho, que tinham sido os principais críticos durante as filmagens. Conforme nos aproximávamos da casa, sentia uma sensação crescer no peito, e só aí percebi o quanto temia machucá-los. Tinha muito medo de que todo aquele sofrimento tivesse sido para nada. É claro que foi um momento emotivo – tivemos de parar a projeção várias vezes porque todo mundo estava chorando. Eles ficaram muito emocionados e, pela primeira vez, puderam ver e ouvir um ao outro, e a si mesmos também. Foi difícil para todos, mas eles ficaram felizes e até me agradeceram. Foi muito melhor do que a minha expectativa, então no dia seguinte, quando íamos mostrar o filme para o meu pai, estava com menos medo. Quando você sabe que não é a única pessoa vendo alguma coisa, pode parar de ter medo, confiar mais em si mesma. É claro que foi difícil. Durante a exibição meu pai protestou muito, disse que o que estava sendo dito era mentira. Depois de assistir, começou a discutir e estava muito nervoso, dizendo que todo mundo o detestava e que o filme era um ato de ódio contra ele. Como tinha tido o apoio da minha família na noite anterior, pude ficar calma. E Max também pôde dizer o que achava e o meu pai ouviu. Explicamos que o filme não é um ato de ódio, pelo contrário: a família o defende muito. Conseguimos acalmá-lo e conversar no mesmo nível. Parou de ser um duelo, uma briga, e virou uma conversa de verdade, de alto nível. Pudemos identificar pontos importantes, ele admitiu que tem problemas de raiva e que isso machuca as pessoas ao redor dele. Sei que no dia seguinte ele teve uma conversa longa e emotiva com a minha mãe ao telefone. Acho que ele se sente arrependido e culpado, e parece que está tentando melhorar. Mas não sei se é possível ou não. Em certos aspectos, ele continua igual. Mas pelo menos pôde entender meu ponto de vista.
A cena em que você confronta seu pai sobre o passado é bastante intensa. Me impressionou o modo como você e ele ficam indo e vindo dentro daquele estábulo, quase como se fosse uma peça teatral ou uma coreografia ensaiada. Max, era você quem estava operando a câmera?
Max: Sim.
E como foi?
Max: Estávamos com muito medo dessa conversa. Era um momento importante para nós, para a vida da Bea, para o filme. Tentamos prepará-la de todas as formas possíveis para contornar a dinâmica e as construções do pai. Mas assim que a conversa começou, rapidamente tudo foi embora e ficamos com o relacionamento de pai e filha. No filme a cena dura entre 15 e 20 minutos, mas na verdade foram duas horas e meia de um quase transe, com a gente dançando ao redor do outro. Foi uma tomada só, não teve corte ou parada. Acho que se a conversa não tivesse sido tão forte eu talvez tivesse ficado cansado, cometido erros ou tido um colapso. Mas foi mesmo uma coreografia da vida real.
Beatrice: Assim que entramos no estábulo foi como se entrássemos em outro universo, outra dimensão. Não vou dizer que foi mágico porque estava mais para pesadelo [risos] Todos sofreram muito, mas algo aconteceu ali. Me orgulho do trabalho do Max porque, quando fui editar o material, percebi que a câmera esteve realmente ali por duas horas e meia. Na época ele estava começando a falar italiano, então não entendia tudo. Mas a energia era tão forte que ele estava sempre no lugar certo. Depois da conversa, fiquei muito triste. Honestamente, levou meses para que eu entendesse o que aconteceu ali. Só me lembrava de sair do estábulo às lágrimas, e de Max estar às lágrimas também. Foi um dos momentos mais difíceis pois senti que falhei um pouco, que poderia ter sido mais direta. Não foi uma conversa lógica: você consegue ver as táticas de manipulação e que eu fui me perdendo. Foi difícil aceitar que eu de novo me perdi naquela merda psicológica. Foram meses analisando, transcrevendo. Tivemos de trabalhar racionalmente e colocar tudo no papel.
Também gosto muito da primeira cena, na qual vocês fazem um teatro de bonecos para introduzir a história da família e dar o contexto necessário. Como chegaram a este formato?
Max: Depois de editar o filme todo, tivemos que decidir o que fazer com o começo e encarar a questão de como introduzir a si mesmo como cineasta e assunto do filme. É algo bem difícil. Tentamos muitas coisas diferentes: Bea em frente à câmera contando a história, narração em off com imagens de arquivo…um dos problemas é que ela sempre soava como Deus, como a editora poderosa que podia contar a verdade que quisesse, e não queríamos isso. Outro problema é que é muito difícil falar sobre violência e um passado difícil sem se emocionar. Você começa a falar e imediatamente está chorando. E essa emoção, que é muito forte, ficava parecendo patética. É uma questão interessante. Você teme que, se parece fraco no começo do filme, as pessoas vão pensar que você é fraco ou que não podem confiar em você.
Beatrice: A violência é um assunto delicado e dizer que você é uma vítima é difícil. Qual é o jeito certo de fazer isso? Não existe. Fizemos várias sessões de teste com começos diferentes e foi estranho perceber que algumas pessoas realmente se incomodavam em me ver. Tanto como cineasta quando pessoalmente, foi muito difícil confrontar plateias que perguntavam: “Mas isso aconteceu mesmo?” “Você realmente é uma vítima?” “O que você está querendo dizer?” Um amigo veio até mim, com boas intenções, falar sobre o começo, que era apenas eu lendo um papel e contando o que aconteceu. Ele disse: “Bea, gostei do começo, mas a gente consegue ver que você está usando maquiagem”. E eu perguntei: “E daí?” E ele: “Você está dizendo coisas duras, mas está usando maquiagem, não parece uma vítima.” Neste momento entendi que era preciso mudar. A reação das pessoas diante de histórias de violência e do papel da vítima é tão estranha que você precisa contorná-la. Um dia estava super frustrada pensando no que poderíamos fazer, pois já tínhamos tentado de tudo. E disse: “O que precisamos fazer para eles entenderem? Usar bonecos?” Foi assim que surgiu a ideia. Desta forma, ninguém é vítima, há uma atmosfera doce com um pouco de ironia, que te faz perceber que algo está errado.
Isto de certa forma se encaixa no debate sobre o escândalo do produtor Harvey Weinstein, sobretudo no caso da atriz italiana Asia Argento…
[interrompendo] Lamento muito o que a Itália está fazendo com ela.
Depois de ter falado sobre o assédio que sofreu, ela recebeu duras críticas e disse que “a Itália está muito atrás do mundo em suas visões sobre a mulher”. Você concorda?
Completamente. Este é um dos motivos de eu não morar na Itália. É realmente…Querida Asia, lamento que você esteja passando por isso. É só mais um sinal – como se precisássemos de mais algum – de que realmente há um problema no modo como as mulheres são vistas na Itália. Sinto muito que você tenha tido de se mudar. Li que ela se mudou para Alemanha, eu também moro lá. Asia, se você passar por Hamburgo, vamos nos encontrar e conversar [risos] Mas, de verdade, estou muito chocada. E não é o único exemplo, li também que alguns centros para mulheres vítimas de violência estão sendo atacados na Itália. Honestamente, não sei o que dizer além de que estou realmente enojada com o que tenho lido em jornais e nas redes sociais, mesmo [no caso de] jornalistas importantes. Me desculpe, Asia.
Que conselho você daria para as mulheres que querem ser diretoras?
Vão em frente, por favor! Sem dúvida precisamos de diretoras. Somos metade da população, mas estamos muito menos representadas . Precisamos falar umas com as outras, precisamos nos ver representadas em nossa diversidade e nossas lutas. Não sei quem disse essa frase, mas acredito muito nela: se você quer mudar o mundo, precisa mudar as imagens do mundo. A Coca-Cola sabe disso, mas a gente também precisa saber.
Veja o trailer de As Boas Intenções (em inglês):
Sessões na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo:
- 26/10, às 20h40, no Museu da Imagem e do Som
- 01/11, às 17h30, no Reserva Cultural
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